domingo, 25 de setembro de 2011

Uma paciente especial

Não acreditava que iria vê-la novamente. E lá estava ela, com suas ruguinhas a mais e seu cabelo mais grisalho, contrastando com o brilho terno e infantil, que ainda emanava através de seu olhar, e o sorriso encantador, que continuava a me cativar. Cada vez que me fazia sentir sua presença, ou a impunha diretamente, meu peito se enchia de alegria, pois sabia que muito me valeria esse contato. De cada encontro, virtual ou concreto, o rastro que me ficava era de aprendizado e crescimento. E lá estava eu a elucubrar qual seria meu lucro virtual dessa vez! Ainda não tinha me apercebido de que a procura era por minha pessoa, por quem eu sou!

Sua primeira frase: "Nossa, quanto tempo! Mas parece que foi ontem que me aproximei procurando ajuda." Também assim me sentia. Ante algumas pessoas, não necessariamente pacientes significativas, não é o tempo cronológico que impera. Talvez algum dia ainda possamos compreender melhor esse fenômeno, e descobrir a força que une algumas pessoas por empatia, por sintonia, por sincronia, por sinergia ou outros "sin", que envolvem a sinceridade de uma entrega verdadeira e o singelo afeto, que brota de dentro do peito e não de nosso racional. A percepção da dignidade do caráter do outro emana de outro nível de aproximação interpessoal, de um elo intuitivo que reforça a singularidade do vínculo e nos espanta a ponto de questionarmos: "Será que ela existe assim como estou intuindo? É melhor considerar e estar atenta: ou é muito boa, ou é muito ruim!"

Lembrava, com clareza que me assustava, detalhes que contara sobre sua história de vida, e de sua fragilidade contrastando com uma força interna, fato que me causava enorme admiração e espanto por ainda conservar sua integridade psíquica. A vida lhe confrontara com tantas rejeições; hoje me parece que para fazê-la enfrentar sua vulnerabilidade e insegurança rumo ao, que mais prezava, ser livre e feliz. Brincava sobre a forma que gostaria de ser lembrada: "Aquela que conseguiu que seu "ser livre e feliz" emergisse de dentro de si, e lutasse em prol de uma sociedade com mais "justiça e dignidade", com uma Justiça que pudesse ostentar a Verdade ao espelhar sua transparência legal e humana".

E lá vinha ela a me provocar... "E aí, minha permissão já teve, ainda não colocou no papel minha história e como o fenômeno transferencial contaminou nossa relação paciente/terapeuta?" Parece que nossas histórias de vida não foram tão diferentes no que nos trouxeram de sofrimento pela solidão e isolamento afetivo a que nos remeteram, e pelas ambivalências afetivas, pois embora muitas relações superprotetoras, as mesmas mais nos afogaram com seu amor que nos remeteram a uma liberdade de "ser", nos jogando na masmorra camuflada de atenções e cuidados, que reforçavam nossa dependência, nossa insegurança e nossa inferioridade. Como crescer sem cortar esses vínculos dentro de nós e nos tornarmos independentes?"

Nessa altura já desconfortável, mudava minha posição em minha cadeira de terapeuta. "Quem ela pensa que é?" Vi que meu emocional respondia direto às suas colocações e que aspectos contratransferenciais se faziam presentes. Acionando meu racional, podia constatar o quanto de veracidade existia em suas palavras. De repente, lembrei de um sonho que ela me colocara várias vezes quando em terapia onde se via atravessando uma ponte, sentia minha presença a seu lado, mas podia me observar físicamente lá na frente, no término da travessia. Talvez devesse ter trabalhado mais essas representações, conforme elas foram se apresentando, talvez...

Fato concreto: como terapeutas, nem sempre temos condições de abarcar o todo contextual ao redor dos pacientes e de prever suas reações frente a suas vidas cotidianas; muito menos ações de familiares, que modificam totalmente o rumo de vida dos pacientes, e lhes imputam derivar as mesmas de conselhos do próprio terapeuta... nova carga pesada, muito pesada, segundo a paciente já havia me colocado há alguns anos atrás. Na prática, foi obrigada a carregá-la perante filhos, familiares e amigos. Mas conviver com injustiça e rejeição se constituía para ela em lugar comum. Sobreviveu! Como colocava: "Vou desabar quando tiver que conviver com um amor sincero em suas afinidades, lealdades e cumplicidades."

E aqui me via, buscando me proteger internamente de mim mesma, pois sua aproximação me remetia a vários questionamentos sobre minha própria vida, opções ante várias alternativas e o convívio com decisões tomadas pela insegurança e medo... Não posso escapar do confronto com o "talvez obsessivo" , que me acompanhou a vida toda e me impediu de correr riscos e me impeliu a buscar controles racionais, jaulas protetoras imaginárias.

Hoje tenho plena consciência que não podemos tornar o desconhecido controlável, não podemos amordaçar e vendar o destino colocando nossa segurança a toda prova, aliás... o maior risco está em não aprendermos a conviver conosco mesmo, a respeitar e admirar quem realmente somos, sabendo que podemos alterar ou controlar nossos aspectos internos que desgostamos; em desistirmos de ser "heróis" perante nós mesmos, pois a tarefa acima envolve honestidade, coragem e humanidade direcionadas a nós mesmos.

Gosto de contemplar meu ser livre e feliz, digno moralmente, sabendo que a cada minuto tenho que enfrentar vários dragões sociais e de meu mundo interno, para preservá-lo. Tenho também como certo, aliás minha única certeza, minha intenção de soltá-lo, reconhecendo que é capaz de enfrentar essas feras, às quais nossa imaginação atribui dimensões gigantescas. Não mais preciso mantê-lo na masmorra interna onde o enclausurava, nem isolá-lo em seu "existir no mundo" e em seu "ser do mundo".

Agora, lá vou eu, desarmada, receptiva e confiante, buscar o significado desse novo contato para nós duas, pessoas humanas, não mais paciente e terapeuta.

Aurora Gite
25/09/201 postado às 14:20h