domingo, 27 de janeiro de 2013

"Amour" : i m p a c t a n t e !

Procurando isolar comentários que ocorrem com todos os filmes candidatos a premiações, ou que já tenham recebido algumas delas, busquei um adjetivo que pudesse sintetizar as impressões que o filme "Amour" me provocou, bem como as que carreguei comigo.

O diretor Michael Haneke, premiado inclusive por seu desempenho, a meu ver, foi magistral documentando a realidade prática da velhice, condição humana à espreita de todos que ultrapassam os 80 anos, onde a vida vai lhes sendo "roubada" aos poucos com limitações físicas gradativas, ou num rompante, como no caso de sérias sequelas ante derrames e AVC (acidentes vasculares cerebrais como isquemias paralisantes).

"Amour" foi escrito e dirigido por esse cineasta austríaco de 70 anos, já vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2012, e concorrente ao Oscar de 2013. Recebeu dessa vez 5 indicações:

*na categoria principal de melhor filme (poucas chances, produção austríaca,alemã e francesa mas falado em francês - meus ouvidos se deliciaram com a sonoridade do idioma!);

* melhor filme estrangeiro (grandes chances de levar a estatueta do Oscar);

*melhor atriz Emanuelle Riva (soberba em seu desempenho com mais de 80 anos, vale reparar além de sua postura perante paralisia lado direito de corpo "sendo destra", fato que chamou minha atenção, sua "performance no desvio de rima labial, dificuldade para engolir e falar", uau!);

* roteiro original ( nos propicia grandes reflexões sobre a temática do envelhecimento e sobre o despreparo social para a manutenção do respeito e dignidade à condição humana nessa fase da vida. Foi-me "impactante" comprovar que o fenômeno amoroso traz consigo a força para a plena dedicação e cuidados do parceiro, com respeito e defesa de sua dignidade humana. Foi-me "impactante" perceber que, bem no fundo de meu coração, ante e por um grande amor, teria grandes chances de agir da mesma forma que o protagonista.)

* melhor diretor (seu estilo logo se destaca como sendo seu diferencial. Embora um filme com pouca ação, parcimoniosamente lento tanto quanto os passos trôpegos e andar por vezes desequilibrante do protagonista, foi prendendo minha atenção com o recorte das cenas e foco nas expressões faciais, mobilizando reflexões sobre o profundo conteúdo que sobressai dos diálogos, sem entregar respostas prontas às questões suscitadas. Senti minha sensibilidade sendo envolvida e cativada logo no início, e meu lado racional seduzido por indagações como: "A serviço de que está a cena da porta arrombada, logo no início? Ameaça de roubo visando a sensibilização do espectador ou como alerta que poderá haver talvez um roubo em alguma parte de seu imaginário?" ; "A serviço do que está a cena do pombo: entra pela janela aberta, foge e se debate ao ser capturado, desperta o carinho humano e ..." agora é assistir e conferir se terão impressões semelhantes às minhas).

O núcleo central do filme gira ao redor de um casal de idosos octogenários. Professores de música aposentados. Fica visível o destaque dado à qualidade da "relação amorosa" entre eles e a história de vida construída ante tantos anos de convivência baseada em "prazeroso recíproco cuidar", que vai servir de estrutura para enfrentarem os obstáculos, que as circunstâncias inesperadas imporão a cada um deles, e se adaptarem às transformações práticas, que demandam grandes mudanças na vida e no elo afetivo do casal.

O cuidado do diretor se faz presente em muitos detalhes. Até os móveis do pequeno e simples apartamento, onde viviam, guardavam esse aspecto de conservarem viva a memória de suas ricas vivências. As posições das poltronas, os livros em desalinhos nas prateleiras, o som e o piano na sala, a pia cheia de louça ... mostravam que havia vida por alí, que não eram ociosos aposentados, hienas  irônicas melancólicas e queixosas; de não viverem em busca de louros mantenedores da vaidosa  superficialidade das aparências, ou de imperar na relação estratégias para ter um vencedor no invejoso jogo de quem tem mais poder sobre o outro.

Foi-me "impactante" observar a digna nobreza de "se soltar" da presença física do amado, conservando a altivez da lembrança atemporal que o mantém vivo na memória. Muito me comoveu a cena do protagonista sentado na poltrona ouvindo música (estilo clássico, não me recordo o nome nem a autoria) tocada ao piano pela esposa, seu olhar contemplativo sobre ela se desvia e volta-se para o aparelho de som que, ao ser desligado interrompe a música, quando seus olhos retornam ao piano só o vazio e a imensa tristeza. Isto faz parte da sensibilidade do diretor.

A nível familiar, eles possuem uma filha que mais vive em viagens com o marido pelo exterior, dentro de um casamento que tudo indica passar por várias crises. Têm dois netos: uma em colégio interno e outro com 26 anos, que já cuida e dá conta da própria vida. Esses dois personagens são só citados em conversas sem terem papel focado, além de nos servirem, como referencial para delinear o contexto pessoal distante, imaturo e a fragilidade de um "cuidar maternal" por parte da filha.

É "impactante" a constatação de como um interlocutor pode, estando insensível à angústia do outro, aumentá-la, ao descarregar suas preocupações pessoais. E eis um pai se reportando à filha: "No que me é útil saber que esteja preocupada com sua mãe e com o que nos ocorre?"; "Cobra seriedade em minhas decisões, como se eu não estivesse agindo de forma responsável, mas, vamos lá, que alternativas práticas  você propõe: vai cuidar de sua mãe, vai colocá-la em um asilo?" . Quem não identifica aspectos semelhantes em seu cotidiano de relações?

Termina esse texto, termina o filme em seu desfecho "impactante"; retorno às cenas de abertura do filme, retorno à frase de abertura do texto:
 " Ao terminar de assistir, busquei  dentro  de  mim  um  adjetivo, que englobasse minhas impressões, e logo se  destacou  o  termo  i m p a c t a n t e."

Agora é aguardar, com curiosidade, a cerimônia do Oscar em 24 de fevereiro próximo. A quem assiste ao filme, "Amour" já demonstra a que veio com todos os louros que lhe cabe.

Aurora Gite