domingo, 7 de outubro de 2012

"Data Venia", Cinquenta Tons Mais Escuros...

Início meu comentário com "data venia", termo da linguagem jurídica, expressão latina que significa "com todo respeito",  pelas minhas argumentações divergirem de tantas opiniões contrárias à trilogia "Cinquenta tons...", tantas desqualificações à obra de E.L.James, tanta inveja nas entrelinhas de algumas considerações que li e ouvi, tanto preconceito dificultando críticas impessoais . Muito me assustou diversos profissionais, em entrevistas televisivas realizadas em vários canais, começando seus comentários com frases do tipo "Nem li, só me bastou o que ouvi falar de negativo!", "Comecei a ler e logo abandonei!", evitando exposições outras. Mais chocante foi a frase: "Uma bosta, só esse termo define Cinquenta tons mais escuros", expressão emitida em programa televisivo de domingo à noite, e assim continua essa profissional da área de saúde mental e das artes: "Não gostei e não entendi nem o porquê dos títulos da trilogia" (?!).

O que senti ouvindo tudo isso? "Vergonha!". Quando muito um escritor, que dá sempre a cara à tapa, expondo suas ideias e sua pessoa através de sua obra, deveria merecer consideração respeitosa por parte de um leitor, ainda mais da área da psicologia, do teatro, ou colega da área literária. Repito: "Senti vergonha!"

Como coloquei ao comentar "Cinquenta tons de cinza" procurei, como leitora, não me envolver nos tentáculos da mídia, que promoviam a obra como atraente pornografia, que se espalhava numa velocidade alucinante. Realmente logo se tornou  um "best seller", fato inexplicável (?) segundo os profissionais citados.

Em "Cinquenta tons mais escuros" acompanhei o personagem central ao lado mais obscuro de seu mundo interior, escuridão onde os demônios pessoais de todos nós, humanos, se escondem. James nos leva a reflexões sobre como essas sombras fantasmagóricas sempre vão existir dentro de nós, interferindo em nossas reações afetivas presentes, em nossos medos e angústias. Ao mesmo tempo, nos confronta com o fato de que podem se constituir em oportunidade para um repensar escolhas e tomadas de decisão. James coloca, inclusive, na trama de seu romance, a possibilidade de discipliná-los e, talvez, soltá-los rumo ao passado ao qual pertencem, e assim alcançar um estado interno de liberdade.

Um casal construindo sua relação afetiva com os obstáculos e dúvidas que atingem a qualquer um que inicie essa trajetória amorosa: Como conviver com o passado do outro do qual não se fez parte? Como controlar a vontade de impor limites ao contato do outro com as pessoas que fazem parte do patrimônio afetivo de vida? Como integrar o outro ao próprio existir, respeitando sua história pregressa?

O conteúdo do baú subjetivo contendo vivências afetivas e experiências pessoais em variadas áreas, sempre vai poder ser ativado se for estimulado por circunstâncias externas, que fogem ao controle do sujeito em questão. Não há relação a dois que se sustente se os envolvidos permitirem que fantasias e medos contaminem a qualidade de vida do presente existencial. O casal, a meu ver, surge como o terceiro elemento  a ser considerado e fortalecido sempre que necessário. Já leram "A Matemática de um Casal", postagem de maio 2009, abordando essa temática?

Acredito que a linha divisória de invasões desrespeitosas aos limites do outro é sutil, quer sob a forma de controles, quer sob falseta do relevar/tolerar. O fato de ser outorgado ao outro a função de "cuidador" e por ele for assumido esse papel, já traz consigo grande armadilha; ainda mais se for delegada a ele fazer escolhas e tomar decisões por você, saber o que é melhor para você,  Uau! "Vou cuidar de você... por amor!" suscita dentro de mim a imagem de uma enorme pata de elefante sobre minha cabeça, e eu sem saída.

Percebem a enorme diferença com "Vou cuidar de nossa relação"? Ops! "Vou cuidar de nossa relação, dentro do limite do que me cabe dentro dela". O parceiro é sempre responsável por sua parte dentro do "nós". O terceiro elemento da relação, o "nós", é corporificado pelo "consenso de escolhas e decisões do casal" em prol do bem comum visando a qualidade da vida a dois.

James coloca a descoberta por seus personagens das afinidades que os cercam, sejam relacionadas às fantasias ou formas de se satisfazerem sexualmente, sejam em seu modo de existir aventureiro assumindo riscos como pilotar planador, andar de helicóptero, exposições abertas a terceiros ...etc. Realça esses aspectos que constituem particularidades específicas desse casal. Essa atração por afinidades logo se faz sentir em pessoas onde a sintonia é quase que intuída no primeiro encontro. A autora, nesse volume, propicia que seus personagens reflitam tal fato, sobre como e quando começou seu envolvimento.

Aqui faço um parentese, realçando como é preciso estar atento para esses encontrões entre afins, onde se mesclam características positivas e negativas não tão comuns. Por exemplo, não gosto de altura, seja em planador, roda gigante, mesmo em elevador panorâmico não me coloco na linha de frente; não tenho preferência por estímulos a minha adrenalina, seja em rachas ou montanhas russas; gosto de uma vida pacata, busco um bem-estar sereno, circunstâncias que aumentem minha serotonina...mas meu mundo das ideias, minha capacidade de imaginar e fantasiar alça voos ... Nesse sentido, ocorre uma solidão muito sofrida quando na parceria não existe campo para troca de fantasias! Compartilhar vivências é bem diferente  de partilhar afinidades.

Agrego à "arte de amar" e à "arte da entrega", trabalhadas em Cinquenta tons de cinza com suas múltiplas facetas de duas personalidades, duas maneiras de ser a se engrenar respeitando suas diferenças, a necessidade agora de aprimorar a "arte de criar expectativas" ou "arte de fantasiar em consenso", tempero apimentado da vida a dois.

Pontos importantes que não aconteceram, mas que podem ser inferidos nas descrições de James,  nesse momento da formação do casal, na trama desse romance Cinquenta tons mais escuros:
- a grande frustração quando sobre fantasias ocorrem julgamentos de valores ou críticas, amordaçando a espontaneidade de expressão afetiva do outro na relação dual
- o se deixar levar pela sinfonia tediosa da mesmice na relação cotidiana, sem atenção ao fato de que seu contraponto está na atenção ao prazer dos acordes da sintonia na fantasia criada a dois.

Estou curiosa para ver como James vai articular esse casal que após o encontro e enfrentamento com seus demônios e medos, adotaram nova visão de mundo e da própria vida a dois.  Ouso inferir que passe a nos confrontar com o novo homem e a nova mulher lutando pelo espaço de seu "ser" dentro do "existir a dois".
Agora é aguarda o lançamento de "Cinquenta tons de liberdade".

O termo "liberdade", a meu ver, envolve o respeito de cada um e do outro pela capacidade de fazer escolhas e de tomar decisões a partir delas. Sendo assim, "ser livre" traz consigo a "responsabilidade sobre as consequências" das escolhas, quaisquer que sejam, e a "maturidade" para conviver e ultrapassar possíveis frustrações. O "ser livre" se envolve em seu viver pleno e gratificante, se afasta de toda estagnação nesse fluir; sua energia sempre se renova. Enquadre perfeito para a ousadia e coragem do casal delineado pela autora,

Ops! Relações de casais unidos por conveniência prática, baseadas em consenso e sem a presença de grandes conflitos internos, são "livres opções de vida".

Aurora Gite

Obs: http://auroragite.blogspot.com
        postagem de maio de 2009
        "A Matemática de um Casal"