domingo, 22 de julho de 2012

"O que fazer com minha neta?"

Fazia tempo que não tinha notícias dessa paciente. Sem dúvida, o fato de tê-la acompanhado por um bom tempo, ter contribuído para sua busca de autoconhecimento, ter presenciado seu grande esforço em seu processo de individuação e busca de um aprimoramento evolutivo constante, lhe abriu um espaço perene em minha memória. Seria difícil não me recordar dela. Como foi difícil não me envolver como ser humano em sua busca de resposta para a questão "De onde o homem extrai sua dignidade?", segundo ela fonte da autovalorização e auto-estima do homem.

Lá estava ela na minha frente com o problema trazido por sua filha: "Não sei o que fazer com minha filha. Você precisa falar com ela!".

Agora procuro usar as palavras da própria paciente:
"Minha filha falava de minha neta, uma adolescente de 17 anos. Perdeu o pai de câncer aos 4 anos de idade. Perdeu sua idealização de proteção com o irmão, quando com sua idade atual, ele escolheu quebrar tradições  e ser feliz ante opção sexual, que ela ainda não aceitava, e com isso ambos se excluíram de uma convivência fraternal. Não quero trazer nessa sessão a relação dela com a mãe, ambas precisam vivenciar o papel de filha, ambas estão presas ainda a essa teia de dependência e falta de dignidade que as impede de se construir como pessoas. Acho que é daí que vem a dificuldade de lidarem com os problemas atuais.Mas não quero ir por aí não!

Muitas vezes me perguntei "Por que minha neta teve que passar tanta coisa com tão pouca idade?"
Parei quando percebi que estava misturando minha vida com a dela; os argumentos dentro de minha cabeça com os que íam dentro da cabeça dela - tão distantes da minha linha de raciocínio; os desejos, que só podiam pertencer a mim, sendo projetados nela; a motivação pessoal e busca de concretizar sonhos - desenhados por mim - graças a minha imaginação, estendidas quase que simbioticamente a imaginação dela.

Dezessete anos... se considerando um "nada", confronto direto com uma das mais sofridas angústias existenciais... não desejando nada, na evitação com quem se é realmente, com a própria alma, fonte dos sonhos, das alegrias, do ser em sua singularidade e autenticidade. Parece que está prestes ao "encontro marcado com ela mesma", inevitável a todo ser humano, dentro do sofrimento da solidão. Tudo encaminha para ela se ver como é no espelho da vida, só... e nessa solidão encontrar seu real potencial a ser desenvolvido em seu viver no mundo. Coisa que só ela pode fazer, ninguém mais pode ajudá-la em sua missão de "viver sua vida" dentro da angústia de um livre arbítrio, pois são muitas possibilidades para que haja a responsabilidade sobre a decisão mais acertada. É conviver com o saber que se não der certo, pode-se tomar outros caminhos, sempre à nossa disposição, se quisermos enxergar outras alternativas de vida.

Reconheço que é difícil, ante o crescimento, os pais soltarem os filhos, para o aprendizado com a vida; mais difícil ainda são os filhos soltarem os pais. Ainda mais quando os pais jogam sobre eles as expectativas frustradas para se realizarem através deles. O sofrimento de ter que se enquadrar na moldura social imposta pelos pais, ou ser quem se é realmente e conviver com a rejeição deles, entendida como falta de amor e aceitação pela pessoa que se é, não é fácil de ser enfrentado.

Minha vontade é gritar que os pais não são responsáveis pelos filhos, que proclamam independência em alguns aspectos, mas querem continuar a ser dependentes em outros. Quando os pais reconhecem que os filhos têm condições de serem criados pela vida, sua função não é mais de controle diretivo e exigências castradoras. É passar a tutela para a vida.

A tutela da vida é vitalícia. É confiar na capacidade dos filhos se tornarem responsáveis pelos acertos e erros de decisões tomadas por eles. É acreditar que se tornem hábeis para lidar com frustrações ante desejos não realizados e tolerantes o suficiente para postergar sua satisfação, buscando substituir suas fontes de prazer. É entregá-los e soltá-los para a vida. Isso implica que se a vida decidir que, para aprender, vão ter que cair, se ajoelhar, se machucar... os pais não vão impedir, aliás não vão poder evitar. E se tentar vão se "ralar", por si mesmo.

Pais e filhos, no momento certo, depositando essas funções, que deverão ser  entregues à tutela da vida. Não podem ser responsáveis pelo "viver" do outro. Minha filha e minha neta estão com as próprias vidas parada nesse turbilhão, onde uma tenta viver e comandar a vida da outra. Nessa eterna disputa, o tempo passa como um trem segue rumo às próximas estações... entrou, entrou... perdeu a hora, perdeu a oportunidade que a vida oferece... e o preço de futuras passagens é alto, talvez não tenham cacife depois para embarcar rumo ao lugar que gostariam. Ninguém consegue pular de um patamar a outro sem cair nos trilhos e ter que conviver com as consequências de tal queda, sejam quais forem.

O que fazer com dezessete anos vividos? É confiar nos valores que foram passados. É torcer para que tenha forças de sair do "nada", areia movediça na qual está mergulhando. Não quer mais estudar... nada mais a fazer, para que continuar pagando se recusar a ir a escola, se está descontente com a forma de ensino... Não quer trabalhar... desejo da filha ou receio da mãe? Quer ficar enfurnada no quarto...vai fazer o quê, além de se apoiar em diagnóstico médico sobre depressão primária ou secundária. Não quer ir ao médico para essa avaliação? Ah, nessa consulta vai! Como? Zere qualquer ajuda financeira! Liberdade ou livre arbítrio também tem seu limite, quando esbarra em prejuízo ao outro, ou a própria vida física.

Eu me sinto triste por não poder fazer nada concreto. Não tenho como ajudar sem cair nas malhas da relação dual delas, tão conflitiva há tantos anos. Não quero nem proximidade com o problema das duas. Sinto que nesse envolvimento posso me machucar, pelo vínculo afetivo que me prende às duas.

Agora sou eu comigo mesma... não na função mãe, não na função avó, não na função humana de ter empatia, ter simpatia, ou dever de cuidar de deficientes físicos ou mentais... mas como ser humano que tem por obrigação se autoproteger, se disciplinar para ter coragem e correr o risco da audácia de se dizer: "Basta! Não é com você. Não é sua vida!" . E ousar soltar, sem culpa, o que não é meu!

Antes de sair deixou no ar a questão: "Continuo lutando pela minha dignidade como ser humano. Se me envolvesse perco meu autorrespeito, pois invado duas vidas que têm que viver por si, encontrar dentro de si mesmo seus talentos, seus dons, seu sentido na vida e buscar desenvolvê-los por si mesmo, encontrando seu espaço para viver dentro do que a vida tá direcionando e ainda não perceberam, não estabeleceram relações com o que lhes ocorre. O mais difícil é ler, interpretar e compreender os fatos que nos cercam, principalmente aqueles dos quais não podemos fugir ou evitar, e que não são tão por acaso assim."

Aurora Gite

P.S. : Indico, para leitura e muitas... muitas reflexões, o livro "A revolução do amor: por uma espiritualidade laica", do filósofo francês Luc Ferry (Rio de Janeiro: Objetiva, 2012)