quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Cinquenta Tons de Liberdade

Encerro a leitura da trilogia "Cinquenta Tons" de E.L.James e me ponho a digerir sobre o que ficou dentro de mim.

Começo por três pontos, a meu ver, básicos:

Primeiro, dou ênfase à qualidade da publicação da editora Intrínseca e à escolha das capas, não só pelas imagens, mas pela textura das mesmas.

Segundo, realço o estilo de escrever de James com sua objetividade, frases curtas, indo direto ao que quer transmitir, sem a necessidade que o leitor tenha muitas elucubrações e interrogações do tipo "o que será que o autor quís dizer com isso?". Acredito que, além do conteúdo instigante, essa forma suscinta e direta, tenha atraído tantos leitores "internautas do mundo atual", que se dispuseram a comprar seus livros e a seguir avidamente suas idéias, bem articuladas dentro do que a autora se propôs.

Terceiro, leitores em busca de pornografia, podem ter se deparado com muitas lições de como atuar sexualmente, ante descrições tão detalhadas e ricas sobre a relação sexual entre duas pessoas "afins uma da outra", que se perceberam com uma química semelhante, com seus corpos respondendo a estimulações específicas de forma idêntica - sintonia que aumentou a atração entre eles - e com suas mentes se permitindo  se embalarem no aumento de prazer, pela excitação advinda da atuação da faculdade de imaginar, fervilhante de inovações consensuais impeditivas a que o tédio da mesmice contamine o tesão que  apimenta a relação; digo melhor, que poderia apimentar o tesão de qualquer relação humana nesse sentido.

Agora chego ao que me causou grande surpresa: Quanta coisa sobre o "amor" , para os que se dispuserem a ver +além das meras aparências!

"Data venia" aos que tenham opinião contrária, chamou minha atenção, logo no início da leitura da trilogia, a autora usar a expressão "fazer amor" em vez de fazer sexo. No sexual temos o êxtase do prazer orgástico, explosão de energias através da entrega a uma união de corpos que se abre ao estímulo de áreas eróticas e à excitação pela fricção das mesmas. No "fazer amor" temos a entrega ao prazer de duas almas afins, o "sentir", em breves momentos, o clímax (apogeu) de energias em campo que irradia paz, aconchego, amor.

Refletindo sobre a repercussão e o estouro nas vendas da trilogia "Cinquenta Tons", mais me convenço sobre a pobreza da fantasia no erotismo atual. Ao ler não se sobressaiu o encontro sadomasoquista e a relação de prazer ante dores físicas e/ou psíquicas, mas o consenso e a curtição de um casal no encontro de jogos eróticos, que liberam a sintonia da excitação de suas libidos. Inclusive, quem se dispôs a ler e confrontar a obra com tantas críticas cruéis, deve ter notado que entre o casal existia um código: o uso da palavra "vermelho", indicava o 'Pare!', simbolizando, naquele momento, a interrupção de como chamavam de seu "desafio de limites". Meu foco recaiu na preocupação de um com o bem-estar do outro, na enorme vontade de agradar e preservar, no afetuoso e raro cuidar das respectivas integridades psíquicas.

Notem como a autora articulou suas idéias, sempre mobilizando o interesse para o "quero saber mais" e a curiosidade no "e agora, o que vem?" , dentro de situações banais que poderiam ocorrer com qualquer um, e sob uma abordagem bem passo a passo da relação sequencial das cenas, que levam a seguir seu pensamento e o desenrolar das ações dos protagonistas.

Analisem o "subjugar": não implica em causar sofrimento, mas aumentar o prazer da entrega, após o jogo da resistência e controle das reações imediatistas, impulsivas. Verifiquem a "função da submissão" onde o aumento do tesão vem do tentar se esquivar, sem impedir a ação restritiva do outro, mas encorajando-a. É incrível como os casais menosprezam suas capacidades de imaginar e fantasiar, apimentando a vida sexual, e  se permitem cair no marasmo tedioso da mesmice.

A expressiva vendagem dos livros ("pornografias para mamães?", subtítulo que receberam) e o interesse de tantos jovens, podem sugerir a possibilidade de maior união da "sensualidade" à "sexualidade", ou seja, que a mera satisfação dos instintos sexuais se acopla à grandeza das descobertas dos prazeres sensuais, pela entrega gradual aos estímulos sensoriais: aumento da percepção sobre as sensações físicas. O que me parece um bom sinal para impedir a alienação do mundo da ilusão,  com suas criações em que impera a falácia fantasiosa sobre as sensações reais.

Termino a leitura e me recordo que a autora se permitiu "criar", concretizar suas idéias, sob o som da música clássica, fato que também atraiu minha atenção. Minhas pesquisas sobre os dinamismos energéticos de nossa energia psíquica, os associando a processos bio-quânticos (bio-eletromagnéticos) estavam sendo direcionadas para os efeitos internos da acústica dos sons: de um som lírico e suave (mais atrativo à nossa alma) e sua diferenciação com um rock da pesada ( mais estimulante a movimentos corporais). Começo a ler de Otto Maria Carpeaux, "O Livro de Ouro da História da Música", onde o autor "traça a história da música erudita através de sete séculos.

Ao fechar "Cinquenta Tons de Liberdade" e me por a pensar sobre o trajeto dos personagens, vejo delineado o caminho por onde a autora impulsiona seus personagens a percorrer, que pode ser experienciado por duas pessoas viventes quaisquer. No possibilitar essa identificação também reside parte do sucesso da obra.

Mentalmente faço um retrospecto das articulações das idéias de James, que me levaram a refletir sobre:

* "a arte de amar", ou o respeito pelo cuidar das diferenças individuais e o encontro do prazer no ser diferente do outro e crescer nessa relação, preservando as individualidades;

* "a arte de fantasiar em consenso" como fator enriquecedor da relação;

* "a arte de criar expectativas", ou saber aguçar o prazer da espera de algo imprevisível e fora de controle;

* "a arte da entrega", ou o de se capacitar para o relaxar necessário a que a mesma ocorra com prazer;

* "a arte de confiar", de confiar no próprio taco para manter a relação e na capacidade do outro para lidar com adversidades circunstanciais do cotidiano, ambos preservando a relação para que não se contamine.

Essas reflexões me levam a recordar como algumas pessoas - como os personagens de James - ao se encontrarem circunstancialmente têm algum tipo de conexão energética ativada. É um reconhecimento inexplicável : "Não me pergunte o porquê, mas sinto nele a dignidade do diamante; se algum dia o souber 'solitário' e 'só'. vou estar por perto"; contrapondo a um " Ou ela é muito boa, ou muito..." já permitindo antever suas ansiedades antecipatórias, seus "cinquenta tons" a serem acolhidos.

Aqui já tirei da prateleira os "Diálogos de Platão" : "Banquete" ( com todo seu louvor ao amor) e "Fedro" (que prolonga o Banquete e vai +além) . Li o "Banquete" em 1976. Só de folhear percebo sua importância pessoal, por me permitir observar meu caminhar em relação ao fenômeno amoroso. Mas, de repente, em Fedro, do "mito do carro alado, no qual o cocheiro é a razão e os corcéis, a vontade e a concupiscência", me surge a percepção de que ansiedades antecipatórias em suas roupagens de medos do porvir, não só serão afastadas pela oposição ao que é no presente e pelo reforço ao confiar na própria capacidade de atuar sobre circunstãncias "conforme forem se concretizando no real", mas quando se alçar a categoria do cocheiro: da "razão" para a da "sabedoria".

Os mitos dispersos pela obra de Platão me fascinam. Talvez ouse estabelecer um código secreto, para quando se possa, ou se queira, acolher a privacidade de uma relação a dois, e falar "me too" (eu também).

Aurora Gite






segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Violência da vida, será? "Eu desisto...desisto!"

Tinha como certo que iria revê-la antes do ano terminar. Tudo indicava que as circunstâncias ao redor dela a mobilizassem a chegar até mim. Esse fato não é raro de acontecer com antigos pacientes. Também não implica necessariamente em retrocessos e demanda de novos períodos de psicoterapia. Todos nós, em constante e dinâmico processo de autoconhecimento, nos deparamos com circunstâncias adversas de vida, que vão demandar um maior esforço de nossa parte, para nos mantermos centrados em um protetor eixo interno autoreferencial.

Lá estava ela, na sala de espera, segurando um vasinho de flores, presença constante nos finais de ano quando ainda tínhamos um vínculo profissional-paciente. Não se esquecera de como eu gostava de flores e da representação do vaso nas variadas relações, cujo cultivo depende de constantes cuidados dos envolvidos para florescer e desabrochar. Então procurava manter acesa a chama do afeto aproveitando essas datas festivas.

Dessa vez, no entanto, seu semblante trazia um misto de tristeza, apreensão... agonia? Será que estava perdendo minha sutileza de apreender seu estado de espírito? Que projeções transferenciais e contra-transferenciais estariam atuando entre nós? Reconhecia que meu peito se enchia de angústia... por que?

De repente, em um sussurro gutural, grito doído quase silencioso vindo da profundidade do peito, aproveitando um  resquício de ar inalado, ouvi: seu: "Eu desisto... eu desisto... eu tenho que desistir... agora não tem jeito. São projetos, planos de vida, cultivados desde 1976. Acredita? Como soltar tudo isso?

Mudei para esta casa em 21 de agôsto de 1976. Casa bonita... o que atraiu de inveja, a senhora não vai acreditar! E eu firme, recebendo a rajada de toda essa energia negativa. Em 1979 me separei. Fiquei firme dentro dela! Voltei à minha faculdade, sabia que iria precisar de trabalhar para mantê-la. Meu sonho era transformá-la em um clínica e montar uma equipe transdisciplinar. Na época tinha até escolhido o nome: TEHPPP (Terapia e Estudos Humanísticos em Psiquiatria, Psicologia e Pedagogia). Só não contava que era filha que casava e se separava e para lá voltava com netos; genro desempregado e eram acolhidos por mim, o casal, mais um bebê e um dentro da barriga; genro que falecia decorrente de um invasivo câncer e filha viúva estava de volta com dois netos até se reestruturar. Aí ex-marido avisa que vem mais um filho a caminho... e imagine se a mulher não ía querer que mexesse em pensão e coisa e tal. é a hora em que compromisso legal, honra pessoal, dignidade de caráter vão para o lixo.

Não sou muito boa para lidar com dinheiro, a senhora deve se lembrar. A falta de dinheiro embalou meu nascimento. Meus pais moravam com minha avó. Cheguei na hora errada, no momento errado, e ainda vim com o sexo errado para minha mãe ter que se confrontar com o fato de ser mulher e com a relação conturbada com minha avó. Meu pai só veio me conhecer quando já tinha uns 20 dias. Ante o vício do jogo, sumiu muitas vezes por semanas. Essa época foi uma delas. Na mesa de jogo se esquecia de tudo. Na maioria das vezes perdia tudo. Aí vinha a vergonha de voltar para casa, sem o sustento da família. Desde pequena convivi com a percepção do poder do dinheiro, ou de sua ausência, e das fantasias queimando as mãos da gente. E como queimam! Hoje reconheço a barra que minha mãe enfrentou sozinha.

Com o falecimento de meu avô (não conheci nenhum deles) minha mãe, como irmã mais velha, teve sua vida interrompida e se viu tendo que trabalhar para ajudar no sustento de quatro irmãos. Embora reconhecessem seu papel de liderança, nas constantes brigas familiares deixavam entrever o misto de admiração e raiva. Ah... um agravante, minha avó desenvolveu verdadeira obsessão pelo filho caçula, mais carinhoso. Todos os demais preteridos.Nossa, lembra quando me falava dos estudos de três gerações? Prato cheio, a minha família! Não deu outra ao meu redor. Meu irmão como o preferido (assim, como o foi, meu tio para minha mãe) e eu ocupei o lugar de preterida . Uma diferença , que só vim a saber após sua morte, foi que ao estar longe de mim ela expandia sua admiração... parecia saber quão semelhantes éramos: duas mulheres guerreiras! Mas perto de mim sempre ironizava que eu tinha o sangue de barata de meu pai. Fazem parte dos desencontros afetivos na vida: ela... meu irmão que não vejo, nem falo, há uns 3 anos.

Pouco antes dela morrer fiquei sabendo que vim num período ruim, em que a união dela com meu pai não estava legal, como viciado em jogo que era perdera muito dinheiro e estava até foragido ainda mais que era procurador do Estado. Era a ovelha negra da família, neto de baronesa, tem nome dele em bairro e avenida famosa daqui... cara bonachão, querido de todos, sempre procurando ajudar os outros... mas consumido pelo vício do jogo. Tornou a vida da família um inferno ... era sempre em busca de dinheiro para comer, pois jogava tudo que ganhava. Ainda me lembro de subir uma escadaria escura, atrás de um senhor judeu, de onde emprestava o dinheiro para nos alimentar e com altos juros... mas era a fonte que contava. Minha infância sempre foi com medo de tudo, até se instalar a raiva inoculada por minha mãe contra a falta de dinheiro e culpa por ter acompanhado suas frases impulsivas desejando a morte de meu pai. Foi assim que Crime e Castigo já faziam parte de minha vida, antes que lesse essa obra de Dostoiévski.

Na época não o via como irresponsável, assim como até pouco tempo não via o pai de minhas filhas como tal. Indício de que não são os conceitos que mudam de significados, nós é que nos posicionamos sob outra perspectiva e renomeamos as percepções de nossas experiências. Não é?

Epa! Parece que abri uma comporta interna e agora as lembranças esquecidas jorram. Nossa! Detesto lidar com dinheiro, me sentir morta em vida no meio, quer seja em idéias, de partilhas entre filhas. Queria a presença de meu genro morto, com ele me sentia um pouco mais protegida. Puxa, tô trazendo perdas e mais perdas... medos e mais medos... mortes e mais mortes. Sinto que estou morrendo por dentro, ao me voltar a um desapego para desmontar o lugar onde vivi por tanto tempo, coisas tristes misturadas com alegria também. Agora abandono meus dois cachorros, o ouvir o cantar de pássaros sob minha janela, o contemplar direto o verde e acompanhar o desabrochar das flores coloridas.

Tô gritando dentro de mim. com os braços levantados, em vias de ser fuzilada: desisto, desisto! Meu coração sangra. Minha alma sente a dor e a agonia da tristeza profunda. Minha razão tenta me convencer com frases como: a desistência encerra uma triste lição de vida, e grande aprendizado ao se acompanhar da sabedoria de ser acolhida pela dignidade. Mas como me agarrar à chama e aos sonhos da juventude? E a razão em meu ouvido: eles é que vão trazer esperança, garra e coragem para iniciar um novo ciclo de vida; e não esqueça que tem no caráter a dignidade, que dá uma qualidade nobre a decisões sofridas e a escolhas virtuosas.

Reconheço que quero correr contra o tempo, pular esses obstáculos, até enfrentar outros ... mas não esses! Sinto que quero o controle das circunstâncias, desejo uma varinha de condão para transformar seus efeitos em minha vida. Percebo que estou dando as costas à vida... tô brigando com ela, não aceitando o que tenho pela frente. Sei que vou perder nessa luta e que a ordem é me resignar. Mas que não precisava mais essa agora. Detesto lidar com dinheiro, com perdas, com todos esses medos que ressurgem através dessa menininha insegura e amedrontada, que pensei não precisasse mais retornar. De braços levantados, surpresa com todas essas sensações dentro de mim, ouço meu próprio sussurro: Eu desisto... desisto. Eu me entrego ao meu viver!"

Dessa vez senti que não podia deixar de acolher sua angústia, abrindo espaço em minha agenda para uma outra sessão antes do final do ano. Não a sinto desamparada, embora só. Aprendeu a conviver com sua solidão real. Mas, ante a realidade adversa, ela teve aberta uma comporta de energias afetivas reprimidas e nesse despejar de fantasmas através das lembranças de um passado, contar com um apoio impede qualquer possibilidade do rompimento indesejável do dique, construção humana no mundo psíquico de todos nós.

Quando saiu não pude deixar de me lembrar do filme "Duas Vidas". Acho até que vou revê-lo hoje à noite.
Também nós, terapeutas, somos assombrados pelas crianças que fomos no passado! Penso que, depois de assistir à mensagem contida nesse filme, seja difícil não serem bem acolhidas.