segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

1982 - capítulo VIII - Vinicius de Moraes

"Na mais medonha das trevas
Acabei de despertar
Soterrado sob um túmulo.
De nada chego a lembrar
Sinto meu corpo pesar
Como se fosse de chumbo.
Debalde tentei clamar
Aos habitantes do mundo."
      (Vinicius de Moraes: Balada do Enterrado Vivo, RJ, 1946)

Seu José começava a se preparar para deitar. Estava preocupado. Recebera um comunicado, no final da tarde. Na próxima terça-feira, haveria a mudança de uma família para o sétimo andar, último andar do edifício. Iriam mudar para o apartamento duplex de cobertura. Passara por grandes reformas, que perduraram mais de seis meses. Paredes demolidas, salas aumentadas; outras erguidas, surgindo novas divisões no ambiente. Dentro de um estilo mais moderno, predominando o branco, sofás fixos de alvenaria, muito espelho e aço. A cozinha não se reconhecia mais. Até uma despensa surgira. Quanta coisa não se consegue fazer com gosto, criatividade e ... dinheiro!

A família era formada pelo casal e cinco filhos. O zelador já conhecera todos e sua preocupação recaíra sobre o penúltimo filho do casal. Ricardo era deficiente mental e por vezes necessitava de cadeira de rodas para se locomover. Todos os demais eram crianças normais. O impacto com seu nascimento foi grande. No início não se conformaram. Optaram por ter mais um filho, que nasceu perfeito. No que se referia a Ricardo, parece que, ao nascer, a enfermeira, que recebera o bebê em seus braços, custara a lhe dar o oxigênio e parte de seu cérebro ficara afetada. Seus pais custaram a aceitar o fato do filho ser imperfeito e retardaram seu encaminhamento ao médico especializado. Atrasaram, com isso, mais ainda, sua já difícil evolução. Com os remédios, novos tratamentos, boa alimentação, exercícios e muito carinho, conseguiu deixar de ser um bichinho retraído e agressivo, que afastava as pessoas. Suas reações seriam, no entanto, totalmente infantis, em muitos aspectos.

Os pais sabiam que sempre teria que contar com alguém, para cuidar dele, o resto de sua vida. Esta ideia, embora os angustiasse, não causava mais pânico. No momento, faziam o máximo pelo filho. Quanto ao resto, lhes fugia das mãos. Era esperar e torcer pelo melhor. Dedicavam-lhe boa parte de seu tempo. Esse fato dividiu um pouco a família, causando problemas aos outros filhos. Os mais velhos se sentiram relegados a um segundo plano. Eram muito inteligentes, o que, para tantos pais, passa a simbolizar que não necessitam tanta atenção e cuidados. Isso não é verdade! Afastaram-se logo dos problemas do irmão, formando turmas longe de casa. Lutavam contra os sentimentos de raiva, vergonha e ciúme, que os dominavam, para depois se reaproximarem.

A única menina, entrando na adolescência, com seus doze anos, encontrara sua fuga e abrigo para suas carências na comida. Compensava a falta de carinho que sentia, se empanturrando de chocolate. Se sentia rejeitada por todos, inclusive pelos outros irmãos que, pouco a deixavam entrar nas brincadeiras de suas turmas, agora menos ainda. Também não tinha nem condições de acompanhá-los, tiravam um "sarro" dela. Ela era a "gordinha", a "balofa", e por aí seguiam nos rótulos.

O que tranquilizava um pouco aos pais era a atenção dada a ela pela escola, professores e orientadores. Sempre por perto, procuravam apoiá-la da melhor forma possível, estimulando o fortalecimento de sua autoestima, com o intuito de ajudá-la a lutar contra esses sentimentos depreciativos e buscar sua inclusão social. Trabalho vagaroso e não muito fácil. Precisavam despertar sua vontade, conquistar sua confiança, fazê-la entender o preço que estava pagando tentando fugir da realidade. Insistiam, sobretudo, quanto ao fato dela ser capaz de aprender a lidar com os fatos à sua volta. O colegas, nessa faixa etária, não perdoam! Pretendiam fazer com que ela conseguisse ultrapassar a sensação de impotência e angústia, ocasionadas pela rejeição. Teriam que ensiná-la a pensar e administrar suas emoções usando sua "razão".
Para todos, os tratamentos de "choque" eram considerados desumanos, seja por meio de palavras ou atitudes. Podiam condicionar o indivíduo ou causavam danos em outros setores de sua vida. A ela não adiantaria afastar todo chocolate de sua frente, se não fosse sanada a origem de sua "fome" ou vontade compulsiva. Qualquer tratamento invasivo, com chantagens sentimentais e ameaça de retirada de afeto, deixavam marcas muito profundas.

O menor, ainda era muito pequeno para entender o que se passava ao redor. Vivia com a babá. Além do que, como caçula, ter todos voltados para suas graças. Era uma criança muito simpática e sorridente.

Não sabia seu José, como os demais meninos do condomínio iriam aceitar e reagir ante esse problema. Não gostaria de vê-los ridicularizados pelos demais. Às vezes, não eram nem as outras crianças que assim se portavam espontaneamente. Eram impelidas a assim agir pelos próprios adultos que, dentro de sua ignorância e falta de compaixão, acentuavam as diferenças com seus receios e temores.
- "É, balbuciou seu José, acho que não adianta pensar mais nisso. Era esperar o fato acontecer e tentar resolvê-lo, quando e se acontecer. Se deixarmos nossa imaginação leva nossos pensamentos longe dos fatos reais. Se não a controlarmos, ela leva antecipa e aumenta, em muito, nossa ansiedade!"

Pela cabeça de seu José, um turbilhão de pensamentos eclodia. Outro dia lera no jornal que, na Inglaterra, estavam em julgamentos dois cientistas que pretendiam criar "bancos de bebês", com embriões fertilizados e congelados. Este fato o horrorizara. Acreditava na tecnologia sim, desde que o próprio homem não permanecesse inativo e passivo ante ela. É inegável os benefícios, que pode trazer, em diversos campos, propiciando maiores facilidades e comodidades à humanidade. Mas, reconhecia que se, com o desenvolvimento da ciência tecnológica e das máquinas inteligentes, o homem não soubesse estabelecer firmes e claros limites éticos em suas atuações, e se reapropriar do espaço que cedera aos robôs, poderia, com o tempo, se destruir também por esse lado.

Os bebês de proveta iniciaram uma nova era. No entanto, o ser humano não é simplesmente um composto químico, para que um mero laboratório possa dele se incumbir e produzir "clones". O terreno, que estavam trilhando, era muito perigoso. Selecionar genes? Interferir no destino dos embriões? Pensar em raças mais perfeitas? A mim aterroriza!
Tanto ainda a ser descoberto nos seres já existentes. Por que não se voltaram para o que existe de forma insatisfatória, como o provam as guerras, revoltas, destruições, fugas do próprio mundo ante o uso de drogas, banalização da violência, aumento de suicídios?
Uma coisa tinha como certa, torna-se muito incômodo, a uma boa parte das pessoas, esse retorno a si mesmas. É sempre mais interessante observarmos, tentarmos mudar o que está fora de nós. Acabamos enquadrando até a felicidade em critérios padronizados. O inferno não são os outros, somos nós mesmos!

Talvez Ricardo viva um mundo interno mais feliz. Dentro de "nossa perfeição" é que nos penalizamos por ele, e o rotulamos de diferente de nós, o excluindo de nosso convívio e das vivências sociais a que está apto. Não simplesmente nos entristecemos e tentamos sua reintegração na sociedade, levando em consideração o enorme esforço dispendido por essas crianças especiais, para conseguirem ser aceitas e, dentro do possível, se tornarem menos dependentes. Entretanto, nós, seres perfeitos, cada vez mais cultivamos nossas dependências a drogas, bebidas, ilusões, fantasias destrutivas, tédio e depressão...
Tantas discussões sobre gerações, educações, modificações onde os jovens eram os mais atingidos. Precisavam ser melhor educados, precisavam mudar, precisavam... precisavam... Esquecida ficava a enorme gama contida entre a adolescência e a velhice, que, esses sim, precisavam se "reeducar" para melhor educar. Duplo trabalho, que exigia muito esforço e principalmente "boa vontade".

Puxou as cobertas e se lembrou de dona Rita. Sua imagem lhe dava forças. Recordava seus dias finais, quando, em meio a tanta dor, conseguia sorrir e ter esperança. Foram dias de muito sofrimento e desespero para ele. A doença a atingira de forma brutal. Primeiro tiraram-lhe o seio esquerdo. Grande choque, dois anos antes de sua morte.
Passado algum tempo, conseguindo reunir suas energias, se esforçava por enfrentar tal fato com otimismo. Chegava a brincar com ele: - "Meu velho, vamos lá, o que é isso? Parece que você é o doente! Sinto-me um pouco estranha sim, uma parte de mim foi tirada, não é? Mas, como se sentirão as pessoas que perdem os dentes? É uma parte deles também, não? Vou usar uma prótese e quantos não usam dentaduras? Tenho é que cruzar os dedos para que pare por aqui. Você vai ver, tudo dará certo!"

E, por um ano e meio, tudo ocorreu como pensaram. Contudo dona Rita teve recidivas. As dores recomeçaram, agora na região do estômago. Metástases! Emagrecera muito. Mudara de cor. Mas nunca se entregou totalmente, a não ser no "finzinho". Muito enfraquecida, seu sofrimento físico aumentara. A dor se generalizou por seu corpo, e tornou-se cada vez mais forte. Quantas noites não rolava na cama, gemendo baixinho. Às vezes não aguentava e gritava por ele, para que a acudisse e levasse seu medicamento. Prepara então seu remédio, ajudava-a a tomá-lo, e tentava, conversando, distraí-la até que fizesse efeito. Olhava sua fisionomia, desfigurada pelo sofrimento, ir aos poucos se acalmando. Colocava-lhe compressas na testa e esperava que o sono, embora agitado na maioria das vezes, possibilitasse algumas horas de descanso.

Nunca a ouviu praguejar ou blasfemar contra qualquer coisa.
- "Tudo bem, querido. Eu aguento. Vocês, homens, é que são uns patifes ante qualquer tipo de dor. A natureza foi bem sábia, concedendo às mulheres o privilégio de dar a luz aos filhos. Como sinto, José, de não ter engravidado mais depois da morte de nosso filho. Isso é algo que, por muito tempo, pensei que a vida ficar me devendo. Aí comecei a olhar ao redor vendo como me tinha compensado de outra maneira. Os sentimentos de desespero que me dominavam, a desilusão, a raiva... se transformaram numa tristeza doída, como a que sinto agora."
Um jato de dor mais violento, impedia-a de continuar falando. Seu suor se intensificava. Sua tez embranquecia. Era como se um punhal a fosse retalhando por dentro, bem devagarinho, com toda frieza e dureza da lâmina. Sentia-o penetrar até em seus ossos.

Chegar a hora que, em casa, não podia lhe dar os cuidados necessários. Relutara em levá-la ao hospital Há tanto tempo não se separavam. Ficar amedrontado ao imaginar como poderia viver sem ela. Nem por um momento deixara de amá-la. Esse amor sempre lhe dera muita força nos piores instantes por que passara. Agora, o que faria?
Nos seus últimos dias, permitiram visitas mais frequentes. A lembrança daqueles corredores, brancos e gelados, arrepiavam ainda. O cheiro de éter parecia impregnar suas narinas, mesmo depois de tanto tempo passado. A solidão, que começara a sentir, fazia-o ter a sensação de estar perdido e isolado no mundo. Porém, também se recordava que, ao entrar em seu quarto ouvia:
- "Olá, tive saudades suas! Não chore, por favor! Não quero vê-lo tão abatido. Um de nós partiria primeiro, não é? Mas, sabe, não vou deixá-lo sozinho, não! Se bem reparar, estarei sempre presente, em sua lembrança, em cada coisa que toquei, cada trabalho que realizei ou teci. Estarei em todo e nenhum lugar ao mesmo tempo. Perto de você, pelo tempo que quiser e quando assim o desejar. Mas sempre com um sorriso nos lábios, nunca com lágrimas de sofrimento nos olhos. Entende o que quero dizer, querido?"

Seu José não suportava mais ouvi-la. Seu pranto contido o sufocava. Tinha que sair um pouco do quarto, retornando quando tivesse se acalmado. De nada adiantaria transmitir a ela seu sofrimento. Ficaria preocupada e aflita por ele. Isso não desejava que acontecesse.
Estava do seu lado quando tudo aconteceu. O tudo que precede o verdadeiro nada!
- "José, sinto mais frio, minha vista está escurecendo. Tô envolta em trevas, mas tem um pontinho de luz bem distante. Tenho um pouco de medo, mas muita confiança, que o sobrepuja. Vou fechar os olhos e tentar dormir. Sinto-me fraca, tão fraca... Como uma nuvenzinha que o vento vai empurrando, empurrando. Não me acorde, sim? Cuide-se sempre, ouviu?"
Aos poucos não se ouvia mais seu balbuciar. Muito tempo depois percebia que ela se abandonara a um longo e "irretornável sono".

Como somos sozinhos no mundo, assim nascemos e assim morremos!
O desespero e a agonia ameaçaram dominá-lo, mas por um breve período. Nunca, dona Rita, esperaria essa atitude dele. Iria lutar contra essas sensações. Teria forças para transformá-las, como ela teve, em diversas ocasiões. A dor e a raiva, em tristeza; a revolta, numa aceitação obrigatória, resignação perante nossa pequenez em mudar o que nenhum humano conseguiria, perante a impotência em alterar algo tão grandioso, como o próprio destino das pessoas.
Não fora fácil retomar sua vida, de onde a deixara. Era com se não fosse a mesma vida. Houvera uma grande interrupção. Com os últimos meses, restara-lhe a sensação de ter vivido anos e anos. Sentia-se muito envelhecido.

Dona Rita tinha razão, ela ainda estava ali. Sua lembrança muito viva no momento, iria se tornando mais nublada, até sua fisionomia desaparecer, suas feições se embaralharem em sua mente. Mas o que ela deixara ficaria. A sensação do amor e carinho a ele dedicados, e a ternura contida em cada gesto faziam parte dele. Nunca o abandonariam. Olhando o velho agasalho feito por ela, sabia que ainda o aqueceria por muito e muito tempo. Passaria a ter uma doce e agradável recordação dos momentos passados juntos. A vida dele ainda continuava. Tanto ainda a fazer...
Não podia se entregar e parar, transformar-se em um "morto-vivo", ou um "enterrado-vivo" como tantos existiam por aí. Verificou que ainda podia sentir o cheiro agradável da manhã, ver a beleza contida no colorido das flores; contemplar um céu azul; ouvir o alegre cantar dos pássaros, que se equilibravam em um galho para poder pular, quase em seguida, a outro, demonstrando que a fragilidade deles não era tanta assim; sentir o calor do Sol, que atingia seu corpo o esquentando. Isso e tudo o mais era vida. Ele estava vivo e queria viver. Amava viver. Usaria sua imaginação como aliada fiel e leal, nesse sentido.

Os poucos recursos que tinham foram gastos em seu tratamento. Ainda bem que a nova família do sétimo andar era muito rica e podia cercar Ricardo e os demais filhos que demandassem de cuidados específicos, sem se preocupar com a parte financeira.
Seu José acertou o relógio, pondo-o para despertar às cinco horas. Sem desligar o abajour, fechou os olhos. Quantos não apelariam nesse instante a soníferos, ligariam um som, ou procurariam ver alguma imagem na tevê, que os distraíssem.
Novamente, pensou em "seu" prédio. Acreditava que todas as janelas já deveriam estar fechadas. Poucas luzes indicariam os que ainda não se tinham acomodado. Era um pequeno mundo, sem dúvida. Esse era um pensamento sempre recorrente de seu José. Pessoas tão diferentes com suas alegrias e tristezas, ali habitavam. Cada uma em seu canto. As famílias bem divididas, cada qual no seu apartamento. No entanto, todas se cruzariam se saíssem de seu casulo, de sua opção por se isolar. Tinham todas as mesmas opções para se locomoverem normalmente. Entravam e saíam pelo mesmo lugar. A mesma e única passagem para todos, para sair deste mundo e para entrar nele!

Em suas fantasias ele se via fazendo parte de um grupo que, inquieto, passava no meio de duas alas formadas por pessoas entorpecidas. Paralisadas, não! Parasitas, não! Os olhos delas estavam abertos e não viam. Seus ouvidos não escutavam o som das próprias vozes. Seus movimentos eram automáticos, sempre no mesmo lugar. Seus sentimentos estavam embrutecidos. Suas sensações estavam enferrujadas. Agiam como se estivessem meio adormecidas.
Junto com os demais que também faziam parte do grupo central, ia de um lado a outro. Uma frase era constante em seus lábios: - "Ei, você, acorde, por favor!". Todos deste grupo procuravam, incessantemente, encontrar brilho em algum olhar. Quando essa conexão se estabelecia, as fisionomias se transformavam. Os semblantes se enterneciam. Quanta ternura transparecia!

As mãos eram estendidas. E essas pessoas começavam a caminhar. Móveis e flexíveis, ocupavam seu lugar no centro, onde ele também estava. Para seu espanto, as atitudes tomadas não se diferenciavam das dos demais. Passavam também a procurar, esperançosos, a mesma chama no olhar que significava "vida".
Suas mãos procuraram o interruptor. A luz foi apagada. Suas pálpebras pesavam. Não era utopia o que passava em sua mente. Ainda havia tempo... Ainda há tempo!

22 de fevereiro de 1982
Lúcia Thompson


* Uau... Hoje é dia 28 de dezembro de 2015!
* Estamos há alguns dias apenas do início do ano de 2016, portanto "Ainda há tempo!" foi escrito há 34 anos?
* Uau!

Aurora Gite
(... pouco a pouco, se despedindo, para que Lúcia Thompson assuma seu devido lugar!)


1982 - capítulo VII - Albert Camus

" Depois de certa idade, todo homem é responsável por seu rosto." (Albert Camus)

Como zelador, seu José punha-se a, como diziam na sua terra, "ensimesmar-se", durante suas andanças pelo prédio onde fiscalizava se tudo estava a contento. Não gostava que os condôminos reclamassem. Pensava neles como constituindo uma teia complexa de pessoas, com maneiras de ser, pensar e agir tão diferentes, presas, no entanto, na rede humana de relações interpessoais, que se esbarravam nas dependências comuns do edifício. Ali dentro todos estavam sujeitos ao mesmo regulamento interno, pagavam mensalmente o mesmo condomínio, eram penalizados de igual maneira se não o fizessem, tinham responsabilidades semelhantes até no que dizia respeito à participação nas reuniões de condomínio e votação no rateio de despesas extras. Ele gostava de acompanhar todos esses movimentos. Sentia-se importante zelando pelo habitat dessas pessoas todas. Eram o seu "mundo", ou como dizia Helena, sua função lhe permitia carregar na mão "grãos de areia" e zelar por sua manutenção. Custou a entender que ela queria dizer o cuidar da "pequenez da grandiosidade humana" em suas várias manifestações da condição humana.

Lá vinha, dona Suzana. Que contraste com muitos moradores! Vivia no centro de uma gangorra que ora pendia para um lado, ora para o outro, punha-se a cismar seu José. Ela se mudara para lá há uns quatro anos. Nessa época sua vida se transformara por completo.Quantos planos e sonhos destruídos! Planeja-se tudo tão bem, de repente, uma lacuna; e, com espanto, caminhos tão diferentes são vislumbrados. Quanto sofrimento, nesses últimos anos, enfrentara! Quem não sofreria, tendo pego em flagrante o marido com outra na cama, na "sua" cama, ou melhor, na cama do casal? No entanto, soubera enfrentar com tamanha dignidade o fato, que isso muito a ajudara a caminhar de cabeça erguida; olhar, quem quer que fosse, bem nos olhos, sem se desviar, sem se envergonhar.

- "Casamento é um só!", era constante ouvir desde pequena.
- "Fulano se juntou com Ciclana, nossa!".
Exclamações desse tipo sempre causavam grande mal estar à Suzana, que passava a refletir sobre elas. "Meu Deus, o que fazemos conosco, ao assimilarmos conceitos rígidos e antigos, sem reavaliá-los de vez em quando. Mesmo reconhecendo que não funcionam mais em nossas vidas, continuamos enquadrando-os no qualidade de autoridade estática colocada em verdadeiros pedestais internos, que devemos seguir e respeitar? Quantas fantasias não tinha feito sobre a estrutura familiar! Só agora, depois de sentir o quanto lhe custou assumir suas crenças, a mentira social que direciona vidas humanas para viver em sociedade, conseguira livrar-se delas. Como se integrar novamente na sociedade em que se vive, cuidando que não a liberdade alcançada não seja destruída?"
- " Boa noite, queridos! Não se esqueçam de fechar bem as janelas e apagar todas as luzes, quando forem dormir."
- "Mamãe, preciso acordar às sete horas. Em ponto, viu?"
- "Eu não! Só entro em aula às oito e meia. Posso dormir mais um pouco. Quero acordar às oito. Durma bem mãe!"
- Até amanhã, bons sonhos aos dois!"

Suzana entrou em seu quarto. Na penumbra destacava-se seu perfil. Contemplou os pés descalços, sentindo o frio do chão. Suas mãos trêmulas tocaram seu rosto. Seus braços envolveram seu corpo, bem delineado pela longa camisola de cetim. Uma bela renda deixava transparecer dois seios, cujos bicos se enrijeciam com a ânsia de amar. Seus olhos se fecharam.
Viu-se envolvida pelos braços de um homem, que transmitia carinho e segurança. Estremeceu ao pensar em seus dedos percorrendo suavemente seu corpo, tocando sua nuca, seu seio, e descendo... descendo... até atingir suas coxas. E aí se detendo. Seguia o trajeto delicado de suas mãos subindo e roçando por suas costas, depois segurando sua nuca e a puxando de encontro a si. Sentiu o calor de seus lábios, tocando seus olhos, sua boca, suas orelhas, seu pescoço; os seios sugados; uma língua ávida percorrendo seu corpo despido. O aumento dos arrepios internos coincidia com o aumento do medo e a antecipação do desejo de prazer, quando mãos firmes a segurassem e a comandassem por mundos desconhecidos dos tesões incontroláveis.

Ajeitando o travesseiro, nele se encostou, esticando as pernas e puxando bem as cobertas. Sentia frio, mas logo se aqueceria. Pegou a caneta, seu bloco de anotações e verificou onde parara de escrever na noite anterior. Sempre gostara de ler. Lia todas as noites, antes de dormir. Entretanto, de uns tempos para cá, sentia uma espécie de formigamento em seus dedos ao aventar a possibilidade de escrever algum dia. Contudo, suas ideias ainda se espalhavam em sua cabeça, quando pensava em transpô-las para o papel. Sabia que a caneta em sua mão deslizava, suave e fluentemente sobre ele. As letras se juntavam, as palavras apareciam, as frases surgiam. Que emoção lhe davam as linhas vazias preenchidas, como por mágica, dando vida concreta a seus pensamentos! Em diversos momentos de seu dia, ante os mais variados motivos, uma indagação surgia em sua mente: "Se eu escrevesse, como descreveria esta cena?". Passou, então, a anotar suas experiências diárias, sem maiores pretensões no momento.

Nessa noite passou a descrever o que acontecera naquele bar, onde por duas vezes na semana, se reuniam solteiros e descasados, pessoas em situações semelhantes às delas. Passou a refletir em como era difícil ainda, numa sociedade como a nossa, encontrarem seu lugar, embora muitos obstáculos houvessem sido removidos a nível legal. Lembrava-se das palavras de seu advogado, na época da separação: - "Não sei o que você vai fazer agora, mas gostaria de lhe dizer que, se quiser reconstruir sua vida, de uma forma mais rápida, tente não se lembrar que pertenceu a essa família, que foi a senhora fulana de tal. Caso contrário, passará a viver de recordações, alimentando mágoas e decepções.
Isto só prejudicará seus filhos e ocasionará uma parada sua, impedindo que cresça e se restabeleça do que passou. A vida continua, talvez eles nem pensem mais em você. Tente fazer novas amizades, frequentar cursos. O importante é não ficar parada. Quando muito, vá a cinemas, teatros, ou outra coisa que goste; talvez futuramente uma faculdade, um trabalho... Pense nisso!"

Estas palavras muito a ajudaram nos primeiros tempos. Procurou sempre se manter ocupada. Quando não tinha vontade de sair, ligava o que chamava de "motorzinho interno", que a impulsionava. Seu grande objetivo era formar um grupo unido de homens e mulheres, que ambicionassem uma amizade sincera e lutassem por consegui-la.
Como pudera ser tão relegado esse sentimento: "amizade". No entanto, tinha para si, que a amizade possuía uma força imensa. Sua fidelidade muito se assemelhava à do amor, como sua lealdade e respeito. Sempre constante, firme e perseverante, enquanto existisse de forma sincera e verdadeira. Sua inclinação também era para unir, através da enorme afeição nela contida. Duas pessoas, duas almas se encontrando... Nela não existe o apego, a posse, o desejo de incorporar ou de monopolizar o outro; mas é imenso o carinho e a liberdade, o zelo e a ternura que a circundam. No entanto, era muitas vezes colocada de lado por pessoas desconfiadas e descrentes de sua simplicidade.

Muitos dos que conversara a respeito seguiam a mesma linha: queixavam-se de sua falta, mas tudo ficava como estava na vida deles. Predominava muito desânimo, muita descrença quanto ao elo de ligação "amigável" entre as pessoas:
- " Por incrível que pareça, não existem muitos grupos, desses que nos falou, para nossa faixa de idade. Você queria saber como são os nossos fins de semana, não é? Acho que se resumem em uma ida ao clube, uma soneca, passeio com filhos, joguinho com algum amigo, ou em um viagem com alguma garota, compromisso sem maiores consequências, quando as crianças ficassem com a mãe. Vez ou outra, uma amiga resolve reunir um grupinho no sábado, ou dar um almoço no domingo, e nos deslocamos para a casa dela. Nossa turma, por volta dos trinta, quarenta anos, se reúne agora, de forma ainda mais dispersa, nesse bar. Então, em duas noites na semana já temos programa."

Suzana o ouvia e ficava mais espantada com a falta de esperança que reinava nesse ambiente. Notava, entretanto, que, normalmente, as pessoas receavam se aproximar afetivamente umas das outras. Colocavam verdadeiras armaduras, quando isso tendia a acontecer. Como se alguém conseguisse nos prejudicar internamente, sem a nossa aquiescência. Quem seria tão poderoso assim? Ou melhor, quem seria tão vulnerável assim, para se permitir ser afetado desse jeito?

Essa era outra sensação que se destacava. Muitos tinham medo de sofrer, achando que, aquele ou aquela a quem amassem ou se afeiçoassem, seria muito mais forte e teria o enorme poder de atingi-los, feri-los ou magoá-los. Ninguém é capaz de fazer com que outras pessoas tenham sentimentos, sintam mágoas ou emoções as mais diversas. Cada um se coloca na posição de vulnerável por querer, por se sentir inferior ou inseguro, ante a pessoa amada. A mente do próprio homem, ainda é , em algumas ocasiões, a sua maior inimiga.
Outro ponto, que também notara, era o esforço para se manter uma relação, quer amorosa ou de amizade. Procurava-se fazer o possível, para que o outro sempre se sentisse bem. Grande ilusão e pretensão esse peso em se carregar a responsabilidade pelo bem estar do outro. Rupturas surgem pela ansiedade e grande expectativa ao tentar se anular nos relacionamentos em prol do outro, para satisfazer a idealização que o outro tenha a nosso respeito. Sempre se erra! Não há acertos se partir dessas premissas. Enquanto persistisse esse modo de pensar, sempre existiria um impedimento a uma aproximação mais aberta e franca entre os seres humanos. Eles estariam constantemente prevenidos contra algo, prontos para defesa e ataque, se necessário. Seus pensamentos sempre de prontidão para revidar avaliações e julgamentos. Sua sensações "amigáveis" colocadas de lado.

Razão e sensibilidade desunidas e, com isso, maior desconhecimento de si mesmo como um todo. A primeira possibilita a confiança, a segunda dá o crédito, para que ela se instale dentro de nós. É difícil confiar sem antes acreditar. E o crer, por sua vez, sem comprovar, se desvanece com o tempo. Nossas partes racional e sensível deveriam caminhar juntas, ou haveria, como atualmente, grande desequilíbrio interno, fator impeditivo para o estabelecimento de interações afetiva estáveis e duradouras.
E, assim, Suzana se perdia em suas reflexões sobre o que presenciava.

Tinham coragem e vontade suficiente para chegar sozinha a esses lugares, o que causava admiração nas amigas. Gostava de conhecer pelo nome, tanto os recepcionistas como os garçons, tornando-se logo simpática a eles, que procuravam ajudá-la a se incluir no ambiente. Às vezes acontecia de se sentir meio deslocada. No entanto, aprendera que, nesses momentos, tinha mais oportunidade de observar o ambiente, como se lá não estivesse, de forma mais neutra. Automaticamente, se integrava nele outra vez. É interessante perceber como as circunstâncias nos puxam e demandam nossa inclusão no que se passa a nosso redor.
Detinha-se nos diversos rostos que desfilavam à sua frente. Observava os menores gestos. Preocupava-se com o que sucedia ao redor dessas pessoas, procurando anotar na memória.

Mulheres que passavam, ansiosas e inquietas, à procura de alguém, lá indo com o único intuito de arrumar companhia para estender aquela noite o mais que pudessem. Seu objetivo transparecia em suas
roupas mais justas e provocantes, sua maneira de andar, na avidez de seus olhares. Suas conversas eram superficiais e maliciosas, sempre se encaminhando para seu objetivo de terminar a noite em algum mote. Nesse ambiente se sentiam diminuídas, se não estivessem acompanhadas, por isso sua pressa na escolha, inclusive. Constituíam o paraíso dos casados, cujo maior pavor era encontrar alguém que lhes "pegasse no pé" de forma insistente.

Na maioria dos homens predominavam os olhares de cobiça, do macho à procura da fêmea. Podiam se dar ao luxo de selecionar, com mais calma, sua presa. O sinal de "status" era a beleza física da acompanhante, fato que os deixava orgulhosos e envaidecidos, invejados pelos demais. Verdadeiros "pavões" que abriam as caudas para impressionar aos demais. Muitos não se importavam com o que lhes custasse, desde que se sobressaíssem através da companheira.
Triste foi a constatação que, entre eles, imperavam os casados, à cata de aventuras passageiras, encontros de uma noite, depois nem conheciam mais com quem estiveram, ou as mulheres que usaram para saciar sua fome sexual.

Outro grupo, que se destacava, era o formado por pessoas que não queriam ficar sozinhas, apreciadoras de um bom papo. Suzana se punha a meditar como a solidão ainda é algo que apavora a tanta gente. No entanto, quantas vezes não estamos sós, embora acompanhados? E que solidão doída
essa! A solidão a dois, então, transmite uma sensação de se estar perdido no espaço, com a alma flutuando em busca de seu complemento amoroso. Pelo menos, ao estarmos sem compromissos assumidos com alguém, temos melhores oportunidades de escolha de companhia, e, o mais importante, podemos aprender a melhor usufruir nossa liberdade para nos situarmos daqueles que nos sejam afins.

A partir do momento, que nos reconheçamos unos e inigualáveis, podemos avaliar nossa importância dentro da nossa condição humana. Nossa estima por nós mesmos, como únicos que somos, é um estímulo e incentivo para procurarmos viver de forma que mais nos gratifique.
Como seres vivos únicos e nunca igualados, a ninguém é permitido saber como pensamos ou sentimos. Isso nos torna mais responsáveis perante nós mesmos, para zelamos pelo nosso bem estar. Nosso olhar, levando em consideração o sentido da visão, leva a que nos observemos pelo que refletimos aos demais; porém existe um outro olhar sobre nós mesmos, sobre nossa alma, ao ser direcionado para nosso mundo interior.
Quem cuidará melhor de mim, do que eu mesmo, ao descobrir o vínculo desses dois olhares? A minha vida passa a ter sentido para mim, e só eu posso fazer uma leitura do que é importante para mim e não uma outra pessoa, com qualquer autoridade que se apresente a mim para me representar."Eu sou importante" e vivo num mundo em que as outras pessoas também o são, não se tornam por terem feito alguma coisa.
Sempre que percebia estar se envolvendo em emoções externas a ela, Suzana tentava penetrar dentro de si mesmo, verificar o que projetava nos outros. No início ficara assustada ao ver como os outros serviam de verdadeiros espelhos para ela se autoconhecer. Não existia melhor forma de conhecer o lado sombrio de si, e aprender a respeitar aos outros em suas diferenças, limitações e imperfeições.

Suzana procurou, novamente, se concentrar no que estava escrevendo.
Os homens e mulheres que gostavam de se relacionar sem expectativas premeditadas e meio imediatistas, eram os que melhor aproveitavam a noite. Estavam mais receptivos a qualquer contato. Não buscar ser diferente do que eram, atuar para terem melhor êxito nas conquistas. Sem maiores ansiedades, se empolgavam nas conversas e em seu conteúdo, sabendo se afastar de pessoas "fúteis e superficiais", que lhes desagradava,. essas lhes eram "maçantes e cansativas".
Os tímidos, poucos em ambientes como esse, quando iam, eram arrastadas por algum amigo ou amiga. Evitavam encarar quem quer que fosse, sentindo-se inseguras e temerosas. Quando não se escoravam em um copo na mão, rogavam para que aparecesse alguém, que as salvasse dessa situação.
O mais triste quadro era formado por aqueles que tentavam lutar contra as marcas do tempo em sua aparência. Exigiam a parada do tempo, quando não tentavam retrocedê-lo em alguns anos.Exigiam de seus corpos bem mais do que podiam dar. Com o correr das horas, notavam-se as olheiras mais profundas, o enorme cansaço, as peles mais enrugadas, principalmente sob as maquiagens, que começavam a se desfazer. A comédia estava terminando. chegava o momento da retirada dos atores do palco, ou a mudança para outras máscaras e fantasias. Novos atores em cena! Atenção, luzes, câmera... ação!

- "Em qualquer lugar que vá, tento ser simplesmente eu mesma. Sinto-me muito mais segura. Por assim agir, me coloco sem comparações. As comparações é que ocasionam o se sentir superior ou inferior. Simplesmente sou." Era o que Suzana explicava às amigas, quando perguntavam sobre seu agir. Sabia bem o quanto valia uma boa amizade, que saiba ouvir e não julgar; aceitar o amigo como é, sem querer mudar algo nele; falar, simplesmente falar o que tiver vontade, sem receio de desagradar. calar, curtirem juntos o silêncio, até isso é importante. Como é gostoso se sentir ao lado de outra pessoa, os dois quietos, como se fossem um só - forma estranha e fascinante de apoio e conforto.
Era preciso, no entanto, propiciar condições a que aparecessem.

Lembrara-se do que uma das moças, que conhecera no bar, lhe dissera:
- "Quer me dar a receita?" . Olhara-a, intrigada.
- "Receita?"
- " É. O que você passou, melado? Está cheio de homem ao seu redor, esperando um olhar ou gesto seu, para se aproximar, e você nem vê. O que é que está acontecendo?"
Novos aprendizados! Não sabia mais nem como flertar. Parecia que a timidez de outrora, lá detrás, talvez da adolescência, retornara. Como alguém se acercaria dela, se sua atitude indicasse que seria rejeitado? Um sorriso, a firmeza de um olhar, a simpatia que se irradia... quanto valiam para inícios de relacionamentos. Mas esses não caíam do céu, não! Quantos não proclamavam a dificuldade de travarem novos conhecimentos, mas quedavam-se em seus lugares e aguardavam que acontecesse algo, como por milagre.

Consultou o relógio. Guardou seus apontamentos.
Não podia esquecer de avisar seu José, para que preparasse o salão de festas, pois, no sábado seguinte, enfrentaria um aniversário com sessenta convidados. Seus filhos estariam contentes. O cansaço seria compensado pela alegria deles.
A agenda da semana estaria repleta, mas, dependendo dela, tudo daria certo. Tinha dois trabalhos a entregar na faculdade. Quarta-feira a reunião com as amigas. Sexta, a visita dos ex-sogros. Bem, talvez os avós ajudassem nos preparativos da festa. Entristecia-se pensando neles. Sentiam-se tão divididos pela situação do filho. Apreensivos pelos netos. Sabia que a admiravam e se preocupavam com ela também. Isso muito ajudara na adaptação de todos. Conservaram-se dentro de uma neutralidade, a ninguém excluindo de sua vidas; ao filho, netos e, inclusive, a ela, apoiando. Até quando? Não podia saber. Também não faria muita diferença, não mudaria o momento atual!


(Término do sétimo e penúltimo capítulo de "Ainda há tempo!")
Lúcia Thompson



domingo, 27 de dezembro de 2015

1982 - capítulo VI - Aldous Huxley

"O afeto gera afeto. Mas somente dos benevolentes! Não dos gananciosos, dos amantes do poder, dos frustrados ou dos amargos. Para estes, a benevolência não passa de uma fraqueza, de um convite à exploração, à tirania ou à vingança impune." (Aldous Huxley)


Felipe entrava no hall do prédio cambaleando como sempre. Ainda bem que seu José estava por perto. Ultimamente sempre chegava tarde e nesse estado. Pacientemente, o zelador o acompanhava até o segundo andar. Enfiava sua chave na fechadura, o ajudava a chegar ao quarto. Numa das vezes até lhe fizera um café. Tornara-se meio seu confidente. Gostava de seu Felipe. Tinha muita pena dele.

Com seus quarenta anos, meio careca e barrigudo, era uma das pessoas que se consideravam derrotadas, sem ânimo ou meta de vida. Possuía três filhos, mas pouco a pouco se separara deles. Os meninos tinham preferido ficar com a mãe, no momento da separação dos pais.
Ele e a mulher, há muito, não se entendiam. Viviam brigando, competindo. A inveja imperava entre eles. Sua relação era como uma simbiose, dependiam um do outro para manter seu emocional estabilizado. Para se sentirem importantes e seguros, tinham que manipular sempre, buscando controlar o parceiro, não sem antes realçar seus pontos fracos.  Não interessava o que o outro pensasse ou sentisse: -"Você sente isso? Ótimo! Mas acho melhor fazer desse jeito." E cada um não arredava pé de sua posição. O mais importante era reforçar o sentimento de inferioridade do outro e não valorizar a sua autoestima, para com a manutenção do vínculo de dependência do parceiro, se sentir superior e com a própria autoestima em alta na relação do casal.

Depois dos primeiros anos de convívio tanto acharam que se conheciam tão bem, que passaram a se desconhecer. Suas maneiras de ser foram se modificando em direções opostas. Suas afinidades não mais existiam. Não se aperceberam do enorme abismo que se formara entre eles. Um evoluíra como pessoa e o outro se acomodara. Consideraram-se seres estáticos dentro de uma convivência a dois tediosa. Que ilusão! O tempo passava e eles imutáveis em sua maneira de ser e agir como casal. Já se conhecendo tanto, tudo se tornara monótono. Tudo sempre igual na vida a dois.
O tédio, que tomara parte de suas vidas, foi aumentando o isolamento a dois em que viviam. Sua comunicação, quando existia fora das abordagens obrigatórias à convivência, estava totalmente truncada. Parecia que falavam línguas diferentes. Não tinham mais abordagens semelhantes sobre os assuntos comuns. Passaram a não se admirar mais, guardar muita mágoa e ressentimento, e conter muita raiva.

Seu relacionamento passou a ser marcado pelo comodismo. Sempre existia um "tanto faz". Algumas vezes se "sacrificavam", relegando algo importante, mas sem saber ao certo se para o outro seria válido ou não. Como Felipe tinha dificuldade em dizer "não", ou colocar limites com firmeza, preferia ceder logo de cara. Era como se desse muito trabalho dialogar. Era muito mais fácil concordar e se adaptar, quando existe grande dificuldade em lidar com as reações emocionais. É difícil, na prática, se perceber como isso afasta as pessoas, em vez de as unir. O dever passou a imperar sobre o querer simplesmente, aquela sensação gostosa do convívio com o outro por se sentir bem; aquela vontade de agradar sem nada exigir em troca, sem nada esperar, sem condicionamentos; aquela preocupação respeitosa pelo companheiro sem interferir na sua individualidade, sem pretender transformações em seu modo de ser.

Colocaram uma venda nos olhos por alguns anos, mas não aguentaram muito mais. Até aos filhos passaram a prejudicar pela falta de atenção que lhes dedicaram. Lógico que eles muito tinham, materialmente falando, mas não aquele carinho afetuoso de pais que se interessam e se preocupam com o real bem-estar e a felicidade dos filhos. Ora, se externamente estavam bem, tinham tudo do bom e do melhor, tudo de mais caro, por que começar a encucar? É bem verdade que, como casal, estavam mais quietos e mais agressivos, que sentiam a frieza da relação, a irritação entre ambos, mas isso não faria parte da vida de todos os idosos? Não adiantava pensar muito nisso. Era tolerar e levar a vida da melhor maneira.

Profissionalmente, Felipe ia de "vento em popa", numa época considerada difícil por muitos. A inflação aumentando, os juros cada vez maiores, os empréstimos em bancos mais raros. Muitos conhecidos pedindo concordata, mudando inclusive o ramos dos negócios. Certo era que passara a dedicar quase tempo integral a suas atividades. Era muito organizado em seu serviço. Quantas vezes não ía almoçar em casa e chegava depois das dez para jantar.
Também que chatice teria que enfrentar em casa: os filhos grudados no som ou na teve, quando não estavam brigando. Sua mulher com um livro, ou entretida, de tal forma, com algum trabalho manual, que só se importava em dar um distante 'oi' de boas vindas ante sua chegada. Estava tão cheio desta vida, mas quem cuidaria de suas coisas, de sua roupa, de sua comida, da casa? Dos males o menor era ficar onde estava e ir levando, até que...

Até que apareceu Sofia. Seu jeito matreiro de encará-lo e provocá-lo. Amiga de sua mulher, há uns dois meses passara a frequentar mais assiduamente sua casa. Inteligente e astuta, percebera ela como seria fácil se insinuar, incentivar e captar a confiança de um cara confuso e imaturo. Logo nos primeiros contatos, Felipe já deixara escapar toda a insatisfação e a insegurança que o dominava. Em diversas conversas ela já notara como ele deturpava os fatos, jogando responsabilidades, negando comodismos e erros. Mas não era do interesse de Sofia enxergar sob esse prisma. Os problemas familiares já existiam, quando os conhecera! Essa versão lhe incomodava menos. O peso da culpa, ou de ter errado ao lutar por uma relação com um homem casado e com filhos, era-lhe tirado das costas. Estava tranquila!

Quanto aos filhos, depois pensaria no assunto. Acabariam por aceitar a nova relação do pai, como a família paterna, que já havia aberto espaço para ela, como namorada do pai sem se incomodar com o fato de ainda estar casado.
Até que os achava simpáticos! Além do mais, ficariam com a mãe. É lógico que ela não os abandonaria. E, com o tempo, ela iria, pacientemente, plantando a ideia da vontade de não querer ficar sozinha na vida, de querer ter um filho com ele...
Quanto a mãe, futura ex-mulher segundo Sofia, não fizera nada para prender o marido dentro da união formal do casamento. Algumas vezes, em meio a brigas, até o mandara embora de casa. Que ela assumisse a responsabilidade por ter afastado o marido. Não se interessara em lutar por ele, deu-o "numa bandeja". Sempre dependente dele em tudo, era bem capaz de ser esta a causa do relacionamento deles não ter dado certo.

Também, viver do lado de alguém assim... Coitado, até que ele suportara muita coisa, por um longo tempo. Como devia ser cansativo conviver com uma mulher dedicada à casa e aos filhos. Sofia não entendia como tinha gente que assim vivia e gostava disso, trocando noitadas em restaurantes e shows, viagens ao exterior, por um sentar abraçadinho com o marido no sofá de casa, assistindo a um bom filme, ouvindo uma boa música, ou lendo um livro e trocando ideias a respeito do que eles lhes provocavam internamente! Coisa mais careta, gosto tão diferente do dela, que gostava dos contatos sociais, das piadas e fofocas, das conversas superficiais que a faziam rir do nada e por nada, sem encucar sobre a vida em si.

Felipe deixara-se levar por seu fascínio. Seu contato lhe remetia às investidas sedutoras e ao jogo de conquistas da juventude. Sentia-se envaidecido! Tiveram alguns encontros e aí seu caso com Sofia começou a pesar. Sofia começou, no início sutilmente e depois agressivamente, a cobrar a saída dele de casa. Por que continuar lá, se não gostava da vida que levava? Foi aí que ele se enrascou!
Mais alguns meses, com as brigas com sua mulher aumentando, e gritaria dos filhos enchendo, a droga da comida colocada na mesa, os amigos cansativos que iam visitá-los, os serões à serviço menos espaçados ... e encontrou coragem, dentro da enorme covardia, para avisar que iria se mudar. O casamento estava acabado e queria recomeçar sua vida.

Recomeço, isso é que engana muita gente. Não existe recomeço de nada, mas sim novos começos e novas batalhas para se conseguir boa convivência, a dois, como casal com grandes chances de que os mesmos erros sejam repetidos. Para aqueles que já possuem família formada com filhos, passará talvez a existir duas vidas, que dificilmente conseguirão se entrelaçar. Foi o que aconteceu ao redor dele.

Como Felipe e sua nova companheira não tinham estrutura para suportar a dupla vida, as desavenças logo começaram. Desentendiam-se pelas menores coisas; no início bem esporadicamente, depois de maneira mais assídua. Os filhos passaram a ter um enfoque especial. Sofia passou a não concordar com o modo do pai tratá-los e, cada vez mais pensava, em procurar ampliar e consolidar seu espaço na família dele, tendo um filho com Felipe.
- " Crianças egoístas e malcriadas! Não percebe como o tratam? Devem estar instruídas pela mãe, ou pelos avós. Só chegam perto de você para que compre algo, ou para pedir que faça alguma coisa para elas. Você não vê isso?"

Essas colocações agradaram Felipe em sua posição de vítima. Realmente era isso o que estava acontecendo. Sofia tinha razão, era "a santa que surgiu em sua vida" e que estava tentando protegê-lo. Coitado dele, como o estavam tratando! Como não se ateve antes à qualidade da relação entre filhos e ele? Era melhor nem insistir mais em vê-los, que o procurassem quando sentissem vontade de estar com ele. Não iria cancelar compromissos sociais nos finais de semana em que os filhos passariam em sua companhia. Depois, era bem desagradável enfrentar suas brigas, que sempre acabavam causando algum atrito entre ele e Sofia.

Sabia que sua ex-mulher estava cuidando bem deles. Enviava-lhe a pensão para isso. Lavava as mãos. Se estavam mal-educados a culpa era dela, não dele. A mãe não se impunha, não tinha autoridade, não controlava seus excessos. Já chamara a atenção dela; que não viesse, algum dia, reclamar que não fôra avisada. Rareou seus telefonemas e o tempo de permanência com os filhos.
Aos poucos, cortes foram feitos em suas "vontades de gastar". Não avaliavam o quanto custava trabalhar para ganhar dinheiro? Em sua nova casa até os avanços nos sorvetes da geladeira passaram a ser controlados por Sofia, depois que mudara sua forma de se relacionar com eles. Mas, nada que a nova vida tivesse atrapalhado. Os tempos estavam difíceis mesmo, que perguntassem aos tios ou a qualquer parente, se duvidassem.

- "Olhe, Felipe, eles precisam entender que essa casa é minha, e me respeitar. Você tem que me ajudar nisso! Veja quanta sujeira! Quanta roupa fora do lugar; não sou eu que vou guardar, não! Aliás, querido, nosso armário é tão pequeno... acho que não se incomodarão se acomodar algumas das roupas, que usamos mais raramente, no quarto deles, não é?"
- " Não é justo deixarmos de ir ao aniversário de Rui porque seus filhos estão aqui. Já chega termos adiado a viagem deste fim de semana e há quinze dia não termos ido ao teatro assistir à peça que eu tanto queria."

O término entre Felipe e Sofia, não se deu sem antes ela ridicularizá-lo um bocado. Passou a achar defeito em tudo que há pouco tempo elogiava. Por mais boa vontade que ele tivesse, o que fazia a irritava. Quanto mais cedia, mais ela invadia sua maneira de ser, tentando moldá-lo ao seu modo de ser. Finalmente, chegaram a conclusão que sua união não dava mais certo e que seria melhor cada um viver sua vida. Não se compreenderam mesmo, incompatibilidade de gênios e pouca afinidade, e tudo acabado!

Felipe tentou, antes de abraçar a bebida, se agarrar ao carinho dos filhos. Mas esses se distanciaram dele e ele nem percebera. Nos raros encontros era como se fossem estranhos. Não se conheciam mais realmente. Não é por ter dado a vida, que se chega a um filho, exigindo carinho e respeito, e, com orgulho, em dado momento, se diz: -"Sou seu pai!", que os terá. Afeto também é algo que se cultiva e, às vezes, leva tempo... um constante cuidar! Esquecera que seus filhos tinham olhos e ouvidos. Muita coisa ouviram e presenciaram. Até Sofia conheceram muito bem, antes dele mesmo!

Um trago aqui e outro ali, e foi se deixando envolver pelo torpor prazeroso que tomava conta de seu corpo e anuviava seus pensamentos. Quando deu por si, não conseguia passar sem seu golezinho diário. A partir daí, foi um passo, para ficar dependente dele para qualquer coisa.
Enfastiado, deixou-se engolir por seu trabalho, esquecendo-se que não existe sucesso financeiro, que justifique, ou encubra, um massacre pessoal. Há muito tempo, ele vinha se autodestruindo.

Seu José sentia-se bem com os meninos, quando, de quinze em quinze dias, vinham visitar o pai. Gostava de bater papo com eles. Crianças educadas! É lógico que brigavam de vez em quando, chegando a se atracar algumas vezes, mas qual o moleque que assim não agia?
Assumiram seu novo esquema de vida. Não foi fácil a adaptação, mas ultrapassadas as dificuldades iniciais, olharam mais realisticamente ao redor, embora com muita tristeza e um pouco de revolta.
Um deles precisou da ajuda de uma psicóloga. A barra foi muito pesada para ele.

Quantas noites presenciaram a mãe chorando, a casa ficando vazia, as salas constantemente às escuras, pois o lugar de isolamento preferido dela era seu quarto. Foi assim por um longo período!
Mas, aos poucos, todos notaram a luta da mãe para se erguer, para crescer como pessoa e retomar sua vida. As janelas voltavam a ser abertas. O som voltou a ser ligado. Os verdadeiros amigos foram se reaproximando. A alegria batia à porta novamente.

Perceberam que caminhavam para uma vida mais autêntica e estavam mais próximos sem as brigas, que terminavam com qualquer intuito de bom convívio familiar.
Passaram a se sentir bem sem a presença do pai, que a tudo reclamava. Este, na verdade, pouca falta fazia agora. Na verdade, o apoio de um "amigão", do tipo "meu pai, meu herói", nunca tiveram mesmo! A qualidade dessa relação paterna serviu como exemplo, a não ser seguido por eles, quando fossem pais.

Aprenderam a conviver com o que pai tivesse condições de dar a eles, e a retribuir com o afeto que dispunham para, de boa vontade, interagir com ele como filhos sem sentir culpa ou recriminações por não seguirem papéis sociais, padronizados pela cultura.

(Término do sexto e antepenúltimo capítulo de "Ainda há tempo!")
Lúcia Thompson                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              


1982 - capítulo V - Oriana Fallaci

" Naquele momento, você realmente se considerava um velho, porque se sentia derrotado pela vida."  (Oriana Fallaci)

- "Alguma carta para nós, seu José?"
- "Não senhora, dona Ivone. Como está passando seu Mário? Melhorou?"
- "Está um pouco melhor, obrigada. É, seu José, tudo tem sua hora certa de acontecer. O corpo da gente é como uma máquina; com a idade vai se desgastando. Nossos órgãos, diminuindo sua capacidade, passam a não funcionar tão bem como quando se é jovem. E, às vezes, como no caso dele, ameaça parar. Mas uma coisa é certa - no fundo não precisamos nos sentir tão velhos assim, ao contrário."

Dona Ivone e seu Mário moravam no primeiro andar com as filhas Helena e Raquel. Viviam uma vida apertada. Contavam até então com a aposentadoria dele, embora as duas filhas já trabalhassem. Com muito amor e sacrifício conseguiram ter esse apartamento. Agora, com a sua doença, as coisas se complicaram. Os remédios estavam tão caros! Ainda bem que o convênio cobria as despesas com médicos e hospital.
Pegar o batente, enfrentar horas a mais de trabalho, não era o que os amedrontava. Como seu Mário dizia; -"Enquanto tiver dois braços e duas pernas, podem contar comigo. Na hora em que me sentir inútil, morro!"
Procuravam sempre se ocupar com alguma atividade. Não concebiam uma vida parada, sem atrativos. Queriam produzir, criar algo; assim davam motivação às suas vidas.
O ser humano, segundo ele, não nasceu para se isolar, se fechar em si mesmo. Sua maior alegria reside em participar ativamente com os demais; ser reconhecido pelos outros também.

Raquel, embora gostasse dos pais, tinha horror à velhice. Detestava tudo isso, inclusive o tipo de vida que levava, sempre em sobressalto com medo de ter que se a ver com a morte do pai "de supetão", com pavor de ter que se a ver com a "dor de uma perda". Velhice, doença e morte era uma mistura explosiva capaz de implodi-la internamente. Cuidava deles por obrigação em primeiro lugar, ou melhor, os tolerava cultivando muita raiva por baixo da carcaça de cuidadora.
- "Sabe Helena, quero ir para um asilo, quando ficar velha. Essa história de dar trabalho a filho, não é comigo não!"
- "Ora Raquel, só seus filhos poderão saber se cuidar de você dará trabalho! É bem possível que isso aconteça, se continuar como é. De minha parte gosto de estar com nossos pais. Papai sempre tem algo a contar do passado, fazendo reviver uma época distante, guardada em sua memória. Mamãe tem seus trabalhos, sempre tricotando, não pára de montar enxovalzinho para bebês carentes. São diferentes desses idosos, que permanecem jogados em uma cama, esperando o fim, se sentindo já excluídos da vida, ou se colocam imóveis, absortos na frente de uma televisão, desligados de tudo que ocorre ao seu redor."

- "Pois eu penso de outra maneira. Não quero viver muito. Só Deus sabe o susto que passei com papai. Fico arrepiada só de pensar sobre isso."
- "Mas, isso faz parte da vida, Raquel. Sou sincera ao dizer que amo a vida e não tenho medo da morte. As duas andam juntas, como a noite e o dia, o calor e o frio... e acredito que todos os opostos."
- "Está me dizendo que nunca teve medo da morte? Não acredito!"
- "Há algum tempo não tão longínquo assim, me amedrontava sim ante a ideia de morrer. Aos poucos fui percebendo que minha imaginação é que contribuía para isto. Minhas fantasias soltas produziam as sensações de medo.Raquel, preste atenção! Não posso saber o que vem após a morte, com posso ter medo dela? Nunca será real qualquer pensamento nesse sentido. Qualquer que seja somente tem por base hipóteses criadas ameaçadoras dentro da cabeça da gente.
Veja bem, se penso nela como um fim, término de tudo, não tenho o que temer se tudo acaba. Aliás penso que, neste caso, as sensações desagradáveis ante esta ideia me vêm quando vivo um presente que não me agrada, onde estou desempenhando determinado papel rejeitando quem eu realmente sou. Talvez não tivesse mais tempo de me assumir, daí a causa da ansiedade.
Posso fantasiar, no entanto, sobre o medo de deixar de sentir, ou deixar de existir em um presente que me desagrade, ou no agora que estamos vivendo em que nos deparamos com um excesso de responsabilidades, com o peso de dificuldades que parecem maiores do que podemos suportar. Aparece ele aqui muito unido ao próprio desejo de morrer, ou seja, deixar de sentir."

- "Quer ir um pouco mais devagar, Helena? Não tenho sua facilidade para entender esses assuntos, ainda mais assimilar essas informações e debater sobre esse tema."
- "Pense comigo, Raquel. Se passasse a agir de forma coerente com seu pensar e sentir, ao alinhar essas forças internas, não seria uma pessoa mais inteira? Pensaria em se afastar do momento presente, em permitir que seus pensamentos vagassem em fantasias que teriam a capacidade de causar pavor e medo?"
- "Creio que focaria minha atenção e minhas forças naquilo que me desse mais satisfação!"
- "Assim se sentindo, seria mais feliz, se sentiria mais leve e mais potente internamente, não?"
- "Concordo, Helena, mas e daí?"
- "Se não carregasse o peso da ideia do tempo, a morte seria encarada mais naturalmente como parte de nossa existência. Nós limitamos nossa vida em princípio, meio e fim. Dimensionamos o próprio tempo e controlamos o tempo biológico. É invenção do homem a cronologia e o relógio, lembra?Encaixotamos o tempo. Com esta divisão do tempo, contido e compreensível e ante a criação do relógio, podemos ter controle sobre ele. E vivemos essa alucinação, lhe dando características de real!
Pois bem, quando nos colocamos, por completo, naquilo que fazemos, quando colocamos nossa alma naquilo que fazemos, a ideia do tempo some. Quantas vezes você teve a sensação, ao se recordar de algo a que realmente se dedicou, onde houve a "entrega de sua alma" nessa relação, de não ter sentido o tempo passar?"

- "Muitas, disso tenho certeza."
- "E não sentiu que, naqueles instantes, viveu mais intensamente? Lembra de ter ficado medrosa ou aflita, cansada ou com tédio, ou mesmo ansiosa para que logo esta qualidade de tempo passasse?"
- "Não! Conservo a sensação de plenitude, poderia dizer de harmonia, pela maneira como agi. Tristeza por ter passado. Na hora que passou, senti como se tivesse saído de dentro de mim mesmo. Ao tentar explicar é que tudo ficou confuso e me afastei cada vez mais da vivência que tive. O ser racional é muito complicado."
- "Entendo, Raquel. Na hora que pensamos de forma mais coerente somo pessoas unas internamente, integradas. Quando passamos a avaliar, julgar nossas ações e a dos outros, começamos a nos dividir entre o que é certo e o que errado... e passamos a pensar mais superficialmente e a agir mais desintegradamente. O próprio perdão, arrependimento, o almejar a perfeição, já implicam a não aceitação de si como se é simplesmente, sem se enquadrar em padrões já atingidos, ou por atingir. A sensação de conflito já demonstra nossa divisão interna, nossa dualidade interior, ocorrendo o mesmo desconforto quando nossa vida exterior entra em choque com a interior.
No entanto, veja, qualquer instante vivido morreu. Esses momentos não voltam mais. O que chamamos de tempo só tem um sentido tomando como referência a realidade. Vivências deixam outras sensações que medo e ansiedade. Se nos fixarmos na ideia que não retornam mais, essa é acompanhada de um sentimento de angústia pela perda, ocasionada pela comparação entre o que foi e o que restou."

- "Aqui o ser humano já se deixou embalar pela imaginação e pelo sonho. Passou a construir hipóteses sobre o que será, tentando resgatar o que poderia ter sido e não tem mais espaço de tempo para ser.O tempo se foi, fechou-se a concretizações. Não abre mais espaço para outras oportunidades! É esperar com atenção que surjam novas aberturas, novas circunstâncias e novos encaixes de situações, onde sonhos e desejos se enquadrem. Pena aquele que opta por perder o contato e a vivência com a realidade em si, por soltar o velho e obsoleto dentro de si, por não morrer a cada instante vivido, para renascer para novas experiência a cada dia. Acredito, ainda, que quanto maior for nosso sentimento de culpa, mesmo inconsciente, maior nosso medo e receio de morrer; quanto maior nossa insegurança, maior a fantasia a respeito. Quanto mais mergulhamos nas ideias e imagens fantasiosas, estamos mais distantes do real, portanto, estamos mortos para o momento presente, que permanece vivo disponível á apreensão do ser humano para ser por ele incorporado, transformado em experiência e colocado como tempo passado em nossas memórias."

- "Nunca tinha pensado assim, Helena. Sempre me achei muito segura. Preferia nem pensar nessas coisas."
- "O próprio significado da vida se tornou muito duvidoso, Raquel. Nada oferece a segurança que buscamos. Vida é dinamismo pulsante em movimento constante. Não se pode parar o tempo, nem aprisionar o espaço e as circunstâncias onde seus eventos sucessivos ocorrem. Onde buscar uma fonte de referência imutável?
As próprias relações se confundem, sob esse prisma. Se eu mesmo não sou sincero, como acreditar na sinceridade de outra pessoa? Se fujo do que sinto e me escondo de mim mesmo, talvez você faça o mesmo, não? E assim, o medo e a dúvida se alastram pela rede das interações. As pessoas se tornam mais e mais desconfiadas, e se isolam para não sofrer.
Como não gostamos de ver nossas deficiências, também não aceitamos as limitações que nos são impostas, ou que nosso corpo se deteriore. Que animal pretensioso somos, sempre nos colocando em posição de destaque, não querendo enfrentar a realidade de deixar de existir um dia, ou passar por total transformação física e mental! Esquecemos frequentemente do que se pode fazer nesse minuto mesmo, em que assim pensamos, quando ainda estamos vivos."

- "Como é que você chegou a tudo isso, Helena?"
- "De uns tempos para cá, aceito mais serenamente o conhecido e não rejeito o desconhecido. As coisas simplesmente acontecem e eu as vivencio de forma mais intensa, com resignação. Meu equilíbrio reside na vivência do aqui e agora. Procuro dosar meu foco de atenção. Evito me ocupar internamente com preocupações, com problemas que não posso abarcar ou solucionar no presente. Brinco com um 'xô,xô' e os afasto de mim. Ah, também aprendi que cada um se torna responsável por si!"
- "Você?"
- "Por favor, não me olhe com espanto. Você sabe minha ideia sobre moral. Parto da premissa de não agir com ninguém da forma que não gostaria que agissem comigo. Meu aqui e agora é diferente do de muitos jovens, que tentam se equilibrar num pé só, embora tendo dois pés. O passado e o futuro não interessam a eles. Esquecem-se que o primeiro existe em cada um de nós imutável, se pensarmos no fato em si. Muitas vezes, ele se impõe através das lembranças trazidas do baú das memórias. Pensando bem, ninguém pode ou consegue apagá-lo totalmente.Também é inegável que o presente é ocasionado por fatos sucedidos anteriormente, e impulsionado por nossa expectativas sobre o futuro, fonte dos anseios e idealizações. O passado, então, ocasiona o presente, que, por sua vez, contribui para a construção de uma trilha rumo ao futuro."

- "Percebe como tudo isso é belo?
Será, Raquel, que as pessoas não viveriam melhor se conseguissem enxergar o valor de viver o presente de uma forma que deixe rastros de mais contentamento e realização, do que de arrependimento ao passarem pela vida? Ops... quando vivos!
Quantas pessoas, como tinha dito, não se atemorizam pelo fato de serem como transeuntes pela vida? Preferem, como você citou, nem pensar a respeito. Modificar algo? Ora, temos tempo!
O passado é importante, o futuro mais ainda, mas a ação, que deveria ocorrer no presente, é lançada para não se sabe quando. Raquel, é uma mentira jogarmos sempre para frente o que podemos realizar hoje, nos apegando a essa vontade de sermos talvez eternos; nos agarrando à ideia do tempo, mas conservando-o distante do presente. Às vezes, penso no que aconteceria no mundo se fosse dado a nós, seres humanos, um último instante de vida. Que faria você?

- "Puxa, você me pegou desprevenida. Sinto-me atônita para responder. Tantas coisas passam pela minha cabeça, mas nenhuma se destaca para ser lançada nesse breve instante, como resposta a você! Nossa, Helena, quantas pessoas não estão, como eu, perdidas dentro de si mesmas?"
- "O importante é que se conscientizem disso, Raquel. Aí podem optar por assim permanecerem, ou, de alguma forma, ocasionarem uma mudança a seu ritmo de vida. Se se pode chamar esse estilo de vida um "bom viver para um homem"; tenho minhas dúvidas... Desculpe se estou sendo meio rude, mas é como penso. Gostaria que refletisse sobre tudo isso."

- "Voltando a nossos pais, a velhice deveria indicar sabedoria, se fosse bem vivida. No entanto, creio que muitos idosos se sentem tão deslocados quanto muitos adolescentes, até que se aceitem e assumam seu lugar na sociedade. Ambos, ou preferem não viver e se revoltam com o mundo que também os exclui com a chegada de suas limitações naturais, ou vivem uma vida, que não a deles, e entram em choque consigo mesmo. Não é raro, se sentirem um peso, para os parentes e para a sociedade, como todos aqueles que nadam contra as suas correntes e marolas, contra a corrente normal da própria vida, que semelhante a um rio, não interrompe, por si, o fluxo contínuo das águas, seu percurso natural."

(Término do quinto capítulo de "Ainda há tempo!")
Lúcia Thompson

                                                                                         

sábado, 26 de dezembro de 2015

1982 - capítulo IV - Simone de Beauvoir

" É toda uma arte enganar o marido: é uma profissão retê-lo." (Simone de Beauvoir)


Mais tranquilo, sentindo-se respirar novamente atento a seu inspirar e expirar o ar de seus pulmões, ao abrir a porta do elevador, seu José quase esbarra em doutor Moacir. Ao se deparar com ele, seu rosto se iluminou. Gostava muito do doutor Moacir e de dona Nair. Esse casal de meia idade, com três filhos e quatro netos, lhe tocava o coração. Quem diria que, logo acima de dona Carmem, tanta felicidade existia. Mas não caía do céu, não! Era, com muito amor e boa vontade, conquistada no dia a dia.

- "Olá querido! Que bom que conseguiu vir almoçar. Tudo bem no hospital? Vamos ver se adivinha o que fiz para o almoço. Dou-lhe três chances para acertar, que tal?"
O calor transmitido por Nair era contagiante. O casal já havia combinado que a cada encontro o momento era único, o aconchego do contato era renovado e a busca era que admiração pudesse ser conscientemente ampliada. Moacir sentia-se muito bem a seu lado. Tinha vontade de estar o mais possível com ela, encontrando paz e serenidade nesses momentos.
Nair, por sua vez, muito o admirava, acalentava esse afeto e procurava agradá-lo. Sentia-se segura e feliz de estarem juntos, depois de tanto tempo, numa época em que havia tanta precipitação para casar, como para descasar. Foram aos poucos aprendendo a conviver de forma pacífica com quaisquer diferenças de opinião e de temperamento. No ano que vem, completariam vinte e cinco anos de casados.

Casaram-se muito cedo, aproveitando o ímpeto da juventude. Moacir tinha então vinte e três anos, e ela vinte e um. Um anos depois já nascia o primeiro filho do casal, André, e, sucessivamente, com intervalo de mais ou menos dois anos, Márcia e Rodrigo.
Como todo relacionamento também tiveram inúmeros problemas. Buscaram, no entanto, preservar a unidade do casal, chegando sempre a um visão comum, um modo de pensar coerente aos dois, sem implicar "violentações" sobre a maneira de ser de cada um. Tinham, em primeiro plano, a importância da opinião comum quanto ao que deveria ser feito, respeitando a liberdade de cada um diante de várias escolhas. Nunca fugiram das discussões, mas aprenderam a dosar o quanto de egoísmo existiria, sempre refutando amar o outro por pensar em si e transformar diálogos em palco de luta e competição pelo poder simplesmente. Existiam conflitos inevitáveis, mas com paciência e muito afeto removíveis.

Aprenderam a "viver juntos". Nair aprendeu a "viver com" Moacir. O mesmo aconteceu com ele na parceria com ela. O combate à indiferença era constante. Procuravam estar atentos se o silêncio que se instalava entre eles era decorrente do "time" de cada individualidade, ou se era alguma dificuldade na interação do casal, não permitindo que isolamentos reacionais pudessem ocasionar espaços vazios e tediosos onde um poderia acabar por desconhecer o outro. Não permitiam que houvesse exclusões por raiva, mas inclusões por um atento cuidar da relação a dois. A relação predominaria ante personalismos.

Quando Nair anunciou a chegada do primeiro filho, Moacir sentiu dentro de si certo desapontamento, embora muita alegria. Algo iria separá-los. Sentiu-se rejeitado. Mas tanto foi o afeto dedicado a ele, que logo percebeu que os filhos possuem lugares separados num coração de mãe. O amor por ele ainda era o mesmo, como se pertencesse a "outro departamento" na área dos afetos. Passou a curtir o fato de vir a ser pai. Acompanhava, com entusiamo, a barriga que crescia e os primeiros movimentos do bebê. Tentava escutar as batidas de seu coraçãozinho.
Quando Márcia nasceu foi a vez de Nair se sentir enciumada pela atenção dele à filha. Mas também, graças à grande comunicação existente entre eles, os filhos nunca os separaram, limites eram colocados dentro de uma cumplicidade entre o casal, tornando-se, ao contrário, um ele que os unia mais ainda.

Com os anos, quando sentiam a proximidade do hábito, não se acomodavam. Procuravam "dar asas à imaginação", para afastá-lo. Já haviam combinado incentivar a sensação de estar se vendo como se fosse pela primeira vez, atentos um ao outro e disponíveis à percepção e escuta das necessidades e fantasias do parceiro. Brincavam que quem criara a expressão "amor à primeira vista", assim deveria estar se sentindo. Pelo menos uma vez por semana se obrigava a jantar juntos, dançar, se tocar com carinho, andar de mãos dadas que fosse. O importante não era sair de casa. Curtiam esse ambiente doméstico. Buscavam montar um cenário que acalentasse os contatos acima. Mesmo dentro de casa era possível a um casal "namorar".

Quantas vezes Nair não ligava para o consultório e, com voz carinhosa, perguntava: -"Querido, queria lhe fazer um convite. Quer vir jantar comigo hoje?" . Algo despertava dentro dele. Sabia que ela estava planejando alguma coisa. Deixava-se embalar pela fantasia dela. Encontrava um jeitinho de sair um pouco mais cedo do consultório, diminuindo o intervalo entre as consultas. Não raro, a caminho de casa, parava em alguma floricultura. Antes de abrir totalmente a porta, já sentia o aroma de sua comida predileta, ouvindo uma música suave na vitrola, daquelas que se encontravam entre seus discos preferidos. Uma mesa bem colocada, com flores a enfeitando e um par de castiçal com velas para serem acesas em momento propício que melhor iluminasse o brilho e o afeto, que se expandia, quando se olhassem com carinho. Como sua mulher sabia atraí-lo. Excitava-se com o brilho de um olhar, que a claridade da chama de uma vela provocava. Seria uma noite e tanto!

Amavam-se fisicamente como dois jovens, nunca chegando a manter aquele tipo de convivência biológica obrigatória com dia e hora marcados e cronometradas periodicamente. Um sempre procurou sentir o outro, percebendo as expressões e os gestos que mais agradavam ou desagradavam ao outro, agindo com grande respeito para agradar o parceiro no que lhe fosse realmente importante, e não no que achasse que lhe seria importante tendo a si mesmo como referência absoluta.

-" Temos um compromisso essa noite, amor. Quero vê-la bem bonita, está bem?"
O dia ganhava outro colorido. Nair se empolgava, como uma adolescente, querendo se embelezar para agradar ao homem que amava. Experimentava um, dois, três vestidos; até sentir-se elegante e atraente com a roupa que estava. Não deixava de se esmerar, parcimoniosamente, ao se perfumar, considerava esse aspecto afrodisíaco. Procurava ver se as coisas pedidas por ele estavam em ordem. O mistério era grande.
Quando Moacir chegava, um sorriso matreiro lhe marcava a fisionomia, mas sempre criava um clima de suspense: -"Não vou lhe contar, não! É uma surpresa. Creio que hoje a senhora terá um encontro com um amante apaixonado." E, quando menos esperava, ela se via num quarto de motel. Novas chamas se acendiam. Passavam a se descobrir novamente e  a se redescobrir na "entrega ao outro".

É estranho a ideia que passa pela cabeça de muitas pessoas, achando-se ridículas para agir desta ou daquela forma, embora tenha vontade para tal. Uma frase tornara-se frequente entre os casais amigos: -"Não, eu não. Não precisamos mais disso. Bem que gostaria, mas estou muito velho para isso." Ou então: -"Admiro vocês, mas sinto-me ridícula e envergonhada, até se meu filho nos encontra abraçados e beijando na boca."

Andando juntinhos, nas noites gostosas e calorentas, esse assunto vinha à baila entre os dois:
-"Não entendo, dizia Nair, para se amar não existe idade. Numa relação a dois não é só o ato sexual importante, mas tudo que o envolve, todo contato físico faz parte dela. Como podem se realizar totalmente aqueles a quem um simples toque de mão já nada significa? Um beijo, se presenciado, causa vergonha! Que acontece com as pessoas, Moacir? Por que a dificuldade de se entregar ao outro, a um outro a quem amem?"
-"Tudo isto foi ocasionado por uma cultura como a nossa, Nair. Existe uma valorização excessiva da beleza física, da juventude, como forma de incentivar o consumismo inclusive. As próprias pessoas e seus mundos afetivos, tornaram-se mercadorias de consumo."

-" Mas isso contribui para o afastamento entre as pessoas. Não há amor que resista a um dia a dia corriqueiro e quando se encontram despejam sobre o outro todo o lixo mental do árduo dia. As casas ficam sendo a extensão dos trabalhos e preocupações deles decorrentes. Veja Sonia e Vitor. É como se tivessem parado no tempo, as expressões apagadas, as mesmas coisas todos os dias, tudo se tornou obrigação para eles."
-"Aí é que está Nair. A nós o casamento nunca pesou como obrigação impositiva. Sempre imperou a vontade de estarmos juntos. Ora, se quando eu viesse aborrecido e cansado para casa, você ficasse matracando em meus ouvidos problemas banais, não se incomodando com meu estado, teria ânimo para chegar mais cedo? É claro que não, que retardaria minha volta. O que também não quer dizer que não gostaria de ouvi-la e saber o que a aflige. Mas até para isso é preciso que se preste atenção e tenha consideração sobre como o parceiro esteja se sentindo. O mesmo não aconteceria com você? Acredito que também não se sentisse bem do meu lado se eu ficasse reclamando de tudo, colocando a toda hora os problemas financeiros, aborrecimentos no hospital e outras chatices. O que não significa que você não saiba o que se passa, ou passou, comigo, quando tiver condições de falar, sem que esteja de cabeça esquentada, entende?"
-"Entendo Moacir. Por isso me calo e respeito às vezes que chega mal humorado. É seu momento! Sei que será passageiro, se não intervir. Como você sabe que pode contar comigo, quando quiser dividir o que o aflige, desabafar... Só aguardo! O que também não quer dizer que com meu silêncio, não esteja preocupada com o que está lhe acontecendo. E o estimo muito por agir comigo da mesma forma."

Aprenderam a exprimir seus desejos no momento certo, aceitando possíveis interdições do outro. Cultivaram a paciência de se repetir, expressando a importância desses diálogos, até de D.R.s, para si. Perceberam, com humildade, a necessidade de não persistir em um erro por simples teimosia, só para "não dar o braço a torcer". Eram parceiros no viver com qualidade um boa vida.

Foi difícil, no início, caminharem juntos. Até que passaram a entender o quanto de diferença existia na maneira de pensar masculina e feminina. Nair entendeu que seu marido, como os homens sexualmente, poderia sentir desejos ante a visão de outra mulher que lhe fosse atraente, mas sabia que sua importância para ele o tornava fiel, fiel por amor. Moacir, por sua vez, compreendeu que poucas eram as mulheres que se sentiam bem, estando com alguém em uma cama, sem nenhum laço afetivo. Ambos reconheciam que as reações tão diferentes após um ato sexual, ocorria pela própria diferença biológica, onde a sensação de saciedade dos homens, após um ato físico, era paralela à de insaciedade sentida pelas mulheres. Daí a necessidade de um fator equilibrador dessa frustração - o afeto. Essa frustração seria, inclusive originária do sonho e da fantasia a que as mulheres se apegam e que poucos homens conseguem acompanhar e aceitar.

Moacir e Nair tinham grandes afinidades em suas maneiras de sentir e pensar. Mas o respeito recíproco possibilitou que desilusões de expectativas, ante a quebra de idealizações, não os separassem. Grande erro no convívio humano decorre da pessoas esperarem muito uma da outra, sem estarem dispostas a aceitar conviver com as divergências, ou mesmo as imperfeições e limitações do outro nas interações sociais, quanto mais nas relações que envolvem graduações afetivas.

Seus filhos os admiravam e os tinham como exemplos. Rodrigo em suas opções de vida, ameaçou desestruturá-los um pouco. Custaram a respeitar seu relacionamento com Artur. No início, tentaram se rebelar, pegos de surpresa pela profundidade dessa amizade. Temiam pela felicidade do filho numa sociedade com muitos valores externos, ainda em transição, a respeito de relações homo-afetivas, e valores pessoais ainda preconceituosos, que tratam os envolvidos em relações homossexuais de forma desqualificada, agressiva e mesmo pejorativa.

Não sentiam a homossexualidade como doença, mas opção de vida. Tinham como certeza dentro de si, que a cada indivíduo é dado o direito de escolha sobre como se sentir mais feliz. Quem seriam eles para decidir sobre a felicidade do filho?
Tentaram sim, mostrar-lhe muitas das dificuldades com que teria que se confrontar. Os preconceitos enraizados em algumas pessoas não seriam fáceis de serem enfrentados. Mas as Instituições Legais permitindo casamentos entre eles e as Igrejas como a Católica já não os excomungando, ajudariam a transformar seu espaço com a inclusão social a partir de agora. Não concordavam que papéis sociais impostos dentro da sociedade, tivessem força para afastar relações afetivas entre pessoas, que reconhecem que o amor é o vínculo mantenedor da relação entre elas.

Enfatizaram, acima de tudo, seu apoio ao filho, acolhendo "por amor" suas opções de vida e, que ficasse claro a ele, "como o amavam", por ser quem é! Com isso, Moacir e Nair, reforçaram mais ainda seu vínculo como casal.

(Término do quarto capítulo de "Ainda há tempo!")
Lúcia Thompson




1982 - capítulo III - Khalil Gibran

"Vossos filhos, não são vossos filhos,
São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma
Vêm através de vós, mas não de vós
E embora vivam convosco, não vos pertencem."
                                            (Khalil Gibran)


- "Desde ontem procuro pelo senhor, seu José. Pagamos tanto de condomínio por um serviço tão precário, meu Deus! Tenho um vazamento na pia da cozinha que está me irritando. Já é desagradável ter que fazer almoço e jantar, e ainda mais essa... Quer ver o que o senhor pode fazer?"

Dona Carmem era proprietária do apartamento no quarto andar. Pessoa amarga, eterna censora da vida dos outros. Pessimista, sempre ressaltando o lado ruim de tudo, se impedindo de encontrar algo de bom. Fizera de sua vida um inferno, alastrando-o aos que chegassem perto dela. Sentia-se só, mas não percebia que sua atitude é que afastava as pessoas. No entanto, era sempre o contrário propagado. Culpava aos outros, particularmente aos filhos, por distanciamentos dos parentes.
Gostava que sentissem pena dela. Coitada, tão abandonada! Assim era como lhe pagavam tudo que havia feito. Bando de ingratos, isso sim! Não reconheciam o que lhes fazia.
Estranho sentimento "sentir pena de si"... As pessoas se voltam para si mesmas, mas em vez de encontrarem forças para sair do buraco em que se enxergam, continuam no mesmo lugar, percebendo que afundam cada vez mais. Verdadeiras parasitas da vida!

Com seus sessenta anos, aspecto mais franzino, teve a intolerância e a irritação predominando, principalmente no últimos anos. Sua atenção se concentrava naquilo que quisesse ver da realidade, sempre vivendo de recortes parciais. A leitura e interpretação de seu viver eram pontuais, passava superficialmente pelo todo. Em seus olhos não se notava a vivacidade e o brilho, que encontrava nos que possuíam, dentro de si, esperança. Seus gestos eram mais premeditados, mais duros. Desaprendera fazer um carinho espontâneo. Envergonhava-se de recebê-lo.

Sempre apressada, há muito acelerara seu ritmo de vida. Tudo que fazia era dentro de uma rapidez incrível. Poucos a igualavam em velocidade, segundo dizia. Os 'molengas' a irritavam. As palavras se atropelavam em sua boca, e, quando jorravam, como sabiam ferir! O silêncio era considerado por ela como castigo. Nas poucas vezes em que permanecia quieta, seus pensamentos entravam em reboliço, fazendo com que se alvoroçasse por dentro. Dava a sensação de precisar fugir de algo que a perseguia.

Os filhos sempre a ouviram desmerecer os demais, para, de alguma forma, inconscientemente, se sobressair. Tudo que fazia era sempre algo que lhe exigia sacrifício. Fazia por amor e exigia eterna fidelidade. Ou talvez fosse lealdade? Passava para isso a devotar sua vida aos outros, ou melhor, a 'viver a vida dos outros'. Pensava por eles, sentia por eles e, muitas vezes, decidia e agia por eles. Perdera dentro de si mesmo a verdadeira Carmem, já tão contaminada pela ilusão de querer ser qualquer coisa diferente do que era. Sua vida era realizada através dos filhos. Ai deles se ousassem desafiar sair dessa 'tutela por amor'. O amor lhes era retirado de imediato, como represália pela rejeição sentida à sua pessoa. Não se preocupava nem com o mal estar causado pela pergunta torturante, feita amiúde, a um e a outro filho, quando o pai ainda era vivo: "De quem você gosta mais, de seu pai ou de mim, que sou sua mãe?"

Viúva e com dois filhos, batalhara por seus estudos, o que era inegável, enfrentado períodos bem difíceis. Mas exigira muito em troca. Os dois, desde pequenos, tiveram suas vidas castradas. Tornaram-se dependentes do pensar e desejar maternos. Viviam inseguros e medrosos, sem firmeza e autoconfiança para tomar decisões por si mesmos. Não sabiam nem o que era melhor para suas vidas, mas reconheciam o que era melhor para a mãe. E procuravam não decepcioná-la, embora por vezes, não com tanta docilidade na submissão!

Fábio sempre gostara muito de artes plásticas e de música clássica. Mas imagine, homem se dedicando a elas! Profissão para homem é medicina, engenharia, advocacia...
- "Deus me livre, filho! Você é muito bom para isso, merece coisa melhor. Escolha uma profissão que dê mais lucro! Depois o que vão dizer? Não quero que chamem meu filho de efeminado. Confie em sua mãe, ela sabe o que é melhor para você. Faça o que eu estou te dizendo!"
- "Droga de  família, bem que podiam ajudar um pouco. Sabendo da ausência de seu pai, tio Sérgio bem que podia lhe mandar uma mesada. Mas espere, filho, vou pensar num outro jeito de arrumar dinheiro. Sua mãe sempre sabe onde tem o nariz... E a família vai ver, vão ter o que merecem, cada um a seu tempo! Espere só para ver o que vai lhes acontecer...Aqui se faz, aqui se paga!"
- "Clara? Não, não é menina à sua altura. Aliás tenha na sua cabeça que nenhuma mulher gostará de você como sua mãe, nenhuma!"
E, assim, qualquer caminho que ele procurasse seguir, não era o certo. Só o que ela escolhia e determinava. Qualquer iniciativa, tomada por ele, era minada e desqualificada.

Com Beatriz o processo fora semelhante. Aproveitara-se de sua docilidade e moldara-lhe bem a personalidade. Desde pequena a cercara por tanta chantagem e culpas, que a tornou tão vulnerável até para discriminar o que pertencia à mãe e o lhe pertencia realmente. Qual era o objeto de seu desejo? Como ter forças para lutar por esse querer? O que ansiava para tornar sua vida feliz? E isso se agravou ao atingir a adolescência...
- "Vai cortar o cabelo sim. Cabelo comprido pode ser bonito, mas dá muito trabalho. Além do mais sei que você não cuidará dele direito."
- "Vai sair com esse vestido? Olhe só o comprimento dessa saia! Sabe, às vezes nem parece minha filha. Aliás eu era muito mais bonita que você, quando tinha sua idade, pode perguntar à tia Glória. Tinha muito mais vida, animação... Outro dia ainda comentaram que você, na sua formatura, estava linda; mas que não chegava a meus pés, nos meus bons tempos."
- "São duas horas da manhã e ainda está na janela? Deixa de ser boba! Se espera por aquele 'bocó' do seu namorado, pode sair daí, Beatriz. Não precisa mais aguardar por ele. Ele passou por volta das nove horas e fiz sinal, como se fosse você, avisando que não poderia sair. Ele não é pessoa para você! Se não fosse eu, queria saber como vocês se arranjariam!"
Em outra ocasião, dona Carmem desfizera um namoro, imitando a voz da filha no telefone, o que ocasionou muita revolta dentro de Beatriz.

Cada vez mais, Beatriz se sentia culpada e diminuída pela submissão e desvalia, por não chegar nem perto das expectativas da mãe e não conseguir extravasar os sentimentos agressivos relativos a ela. Muito tímida e medrosa desde pequena, com dificuldade de lidar com pessoas autoritárias e exigentes, sabia ter temperamento bem diferente das posturas maternas. Era mais calada como o pai, até fisicamente se parecia mais com ele. Ficava contente com isso, embora fosse motivo de rancor e piada por parte de dona Carmem.
- "Acho que você puxou o 'sangue de barata', que tinha seu pai. Tudo para ele estava bom, sempre procurando ajudar aos outros. E lhe restava, no final, um bom pontapé no traseiro. Tinha um 'coração de ouro', esquecia facilmente o que lhe faziam. O que lhe valeu as sobrinhas e parentes o estimarem? Quando estava no aperto, quem vinha nos socorrer? Nunca me esqueço quando deixou de ganhar aquela bolada, que podia ter endireitado nossa vida. Recusou-se a fechar os olhos numa fiscalização que ocorreu na firma por não possuir 'condições morais'... porque queria conservar sua dignidade! Um mês depois um dos amigos dele aceitara a oferta, passara-lhe a perna, e , em seguida, já estava com um carro novo na garagem. E nós na vidinha apertada de sempre. Seu pai era um bobo mesmo, um verdadeiro idiota, sempre lutando na vida. Desligado da parte material, sempre não se importante se falta o básico em casa. A melhor coisa que ocorreu foi ter morrido mesmo, pelo menos deixou uma pensão!"
Quanta tristeza e raiva incomodava Beatriz ao ouvir isso.

Vivia muito só, afastara-se das amigas e de sua turma de rapazes. Sua mãe sempre dizia para desconfiar da sinceridade das colegas. Achava-se tão feia e sem graça, para algum rapaz se interessar por ela. Sentia-se sempre a excluída, não percebendo que ela é que rejeitava, para não sofrer se tal acontecesse. Certa vez, no colegial, ofereceram-lhe uma droga, dizendo que passaria a ser uma pessoa alegre e feliz. Com pessoas desse tipo, Beatriz sabia o ar de idiota que exalava. Mal sabiam o que havia dentro dela! Muito viva e perspicaz, não afastava a possibilidade de algum dia talvez experimentar, mas se estivesse numa boa e, realmente o quisesse. Avaliaria bem as circunstâncias e o mal que lhe poderia causar antes de investir nessa 'roubada'. No momento, estava muito enfraquecida, sua vontade e razão em muito diminuídas. Não vale a pena tomar nenhuma decisão nessas circunstâncias. Certamente seria levada muito facilmente a se viciar, por aqueles a quem chamava de 'mui amigos'. Por tudo que lera a respeito, todos os efeitos nocivos em seu organismo, considerava que trocar sua vida por um segundo de felicidade ilusória, procurando fugir da realidade, do modo de ser que não aceitava, seria de uma 'burrice' incrível.
De duas coisas, porém, tinha certeza. Primeira, que se sentia cada vez mais sufocar. Segunda, que urgia que fizesse algo a respeito.

- "Pronto, dona Carmem, posso guardar as coisas que tirei?"
- " Não, seu José. Tenho que passar um bom pano antes. Essas empregadas não servem para nada. Fazem a limpeza de qualquer jeito. Ah, tudo eu, meu Deus! Depois acerto com o senhor esse servicinho. Droga de apartamento! Também já falei com as 'crianças' que, algum dia, se ganhar na loteria, será a primeira coisa que vou trocar. Detesto isso aqui!"

Mal sabia dona Carmem que logo enfrentaria dois grandes problemas reais com suas 'duas crianças'. Fábio, com seus dezoito anos, engravidara sua namorada, e não sabia o que fazer. Beatriz, com seus vinte, já havia acertado, com duas conhecidas, sua parte no aluguel de um pequeno apartamento.

(Término do terceiro capítulo de "Ainda há tempo!")
Lúcia Thompson  

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

1982 - capítulo II - Erich Fromm

" A atração sexual cria no momento a ilusão de união, mas, sem amor, essa união deixa os estranhos tão afastados quanto antes se achavam. Sentem sua estranheza ainda mais acentuadamente do que antes." (Erich Fromm)

- "Bom dia, dona Luisa, tudo bem?"
- "Bom dia , seu José. Vamos indo e o senhor?"
- "Lindo dia, não? Posso lhe ajudar com os pacotes?"
- "Obrigada. Já me ajudará se segurar este do lado esquerdo. Meu braço estava ficando meio adormecido. Sabe, gosto de encontrar logo cedo pessoas como o senhor. Alegres, que ainda encontram tempo para apreciar o dia. Ah, eis o elevador! Obrigada mais uma vez, o senhor foi muito gentil."

Luisa morava sozinha em seu apartamento, desde que a irmã se casara. Era uma moça de uns trinta anos, miúda mas bem proporcional. Vistosa, atraente, bonita algumas vezes... Embora meio indiferente, bem que percebia os olhares de desejo, que lhe lançavam os homens. No momento, se notassem, verificariam quanta tristeza estava impregnada em seus olhos, seus ombros meio vergados de cansaço, seus passos mais lentos e pesados, sinônimo de desânimo.
Percorrendo as quatros paredes do elevador, seu olhar se fixou na luzinha que piscava. O número 1 se apagava, dando lugar ao 2, que se acendia... Começou a divagar, recordando o que ocorrera na noite anterior: como os eventos se sucedem sendo delimitados pelos andares das circunstâncias ao redor.

Raul a fora buscar no trabalho. Sempre muito alinhado dentro de seu terno. Não se lembrara de tê-lo visto deselegante; mesmo de "jeans" mantinha sua postura. Já haviam saído algumas vezes e, em cada uma mais simpatizado um com o outro. Procurava ele sua metade, enquanto Luisa buscava seu inteiro, pois, como dizia, duas metades, quando se unem formam um inteiro, mas de dois inteiros, quando se encontram, surge o amor em sua plenitude, aquele relacionamento amadurecido, baseado em respeito, compreensão, liberdade. Cada um conserva sua individualidade, já formada anteriormente. É aceito pelo outro tal qual é, não tendo necessidade de se esforçar para isso, de adaptar seu modo de ser, para que a relação perdure; por si só ela flui naturalmente.

A religião e a política foram seu primeiro elo. Assunto que apaixonava a ambos e os unia, mais ainda, por sua semelhança na maneira de pensar a respeito. Não tinham crenças, superstições externas ao próprio homem. Acreditavam no seu potencial. consideravam a religião no sentido real de união com o próximo, com o "Ser". Como Raul dizia, haviam chegado à "religião universal". Ao que Luisa endossava, empolgada:
- "É isso, Raul. Veja, um pintor possui um traço característico seu em cada quadro, cada obra criada; um escritor deixa nas entrelinhas parte de si; os filhos, embora diferentes externamente, surgiram dos mesmos pais, possuindo as mesmas qualidades essenciais, princípios éticos que esses e o resto da humanidade, em sua maioria, possuem... Assim sinto Deus! É como se fosse parte Dele. A criação contém parte do Criador. Tomemos o exemplo do Sol, Raul. Quanto calor e energia irradia por todo mundo. Uma grande potência que tudo concentra. Seus raios se projetam em todas as direções, portadores, embora em graduações diferentes, da mesma energia e calor. Posso parecer pretensiosa, Raul, mas assim me sinto, como a todos nós - raios de Sol... Nós, seres humanos, somos muito importantes, só pelo fato de existirmos, não é?"

Em outras ocasiões era Raul que se colocava, ocasionando nela o mesmo olhar de admiração. Luisa já sabia que, há algum tempo atrás, ele era uma pessoa tremendamente radical, meio fascista mesmo, segundo suas próprias palavras.
- "Eu me sentia rebelde desde pequeno. Era chamado de criança 'do contra'. Poucos perceberam que era minha personalidade que se formava, de maneira marcante, exigindo limites. Isso muitas vezes incomodava. Sempre fui muito inquiridor e dei muito trabalho aos que, ao meu redor, se intitulavam adultos, pois os obrigava, mesmo que não quisessem, a pensar. Compreendo, hoje em dia, o quanto valo o respeito pela autoridade do outro. Sei que, em qualquer campo em que me sentir seguro, sou a autoridade no assunto, como também que esse lugar será de outro em campo diferente. Não sou mais o 'dono da verdade', como fui chamado muitas vezes. Essa beleza nos relacionamentos eu encontrei, Luisa. Como me encontro longe da antiga posição, onde a obstinação, teimosia, vaidade comandavam!"

Continuava Raul: "Não sei bem onde li que o ser vivo se tornaria mais livre, quando se assemelhasse a um 'sistema aberto', disponível a trocas entre o meio interno e o externo. Considerava-me um homem livre, mas só passei a sentir essa liberdade, deixando as posições radicais, quando realmente passei a aceitar as diferenças interpessoais e tolerar divergências de opiniões. Passei a adquirir, então, autênticos e proveitosos conhecimentos. Tudo está em contínua mudanças, dentro e fora de nós. Dentro de minha posição fechada, bitolada e autoritária, deixei de viver de forma plena, que é o que mais ambiciono. Hoje vemos alguns grupos políticos assim constituídos, que colocam a sua autoridade e ambição acima de tudo, embora propaguem que lutam em prol dos demais. Escondendo-se atrás de uma falsa humildade, sentem-se sempre em posição superior aos outros, para determinar o que é melhor aos demais e impor sua razão."

Assim passavam os dois, horas e horas, conversando e se encantando, cada vez mais. Pouco a pouco sentiam vontade de se conhecer melhor, de dar e receber carinho.

Na noite anterior, Luisa sentiu seus olhos se cruzarem de forma diferente, o que lhe causou enorme arrepio interno. Estavam mais irrequietos. Seus lábios se procuravam com mais sofreguidão. De repente, viu-se um um quarto. Raul se aproximando, o carinho de seu olhar, suas mãos suaves a atraindo delicadamente, para depois enlaçá-la. Duas bocas, dois lábios, duas línguas que se procuravam, como se quisessem uma integração total.

Como num fechar e abrir de olhos, percebeu seu corpo, parcamente coberto pelo lençol, estendido na enorme cama vazia a seu lado. Com a mesma rapidez que se inclinara sobre ela, Raul levantara da cama, se dirigia ao banheiro e se encontrava cantarolando sob o chuveiro. Ainda meio desconcertada, procurava fixar sua atenção na música da vitrola. Como gostaria de não estar ali!

A porta do banheiro se abriu. A música parou. Levantou-se e começou a vestir suas roupas. Só então observava o quarto de Raul. Duas coisas lhe chamaram a atenção: o grande espelho de um lado e o pequeno vaso, que portava um lindo cravo vermelho, do outro. Acabara de colocar a blusa, deixando entrever seus belos seios, quando ele entrou sorridente e meio perplexo ante sua atitude:
- "Mas como, já vai embora? Por que? Não pode ser! Fiz alguma coisa? Olhe, se foi pela minha maneira de agir, eu sou assim mesmo. Não sei ficar suado e sujo numa cama. Mas tomei um banho rápido, não foi? Então, estou aqui... Olhe, deite-se do meu lado. Sabe que você me fez muito feliz?"

Apressadamente, Raul puxara os lençóis e Luisa, estonteada e enraivecida, vira o colchão à sua espera. Não aguentou mais:
- "Nunca me senti tão desconfortável em toda a minha vida. Talvez você não me conhecesse bem, Raul... Sou uma pessoa que acha esse contato lindo! Realmente faço uma diferenciação entre ter uma relação e fazer amor. Se não houver um vínculo afetivo, não há nada que me motive a estar do lado de alguém trocando carícias como ocorreu entre nós. Mas... você não me deu condições de nada pela sua pressa, inclusive as de fazê-lo sentir mais intensamente. Não sei se você sabe, mas existe um tipo de ginástica que ocasiona determinada contração que possibilita isso. Você não me deu chances, Raul! Depois, numa rapidez, levantou-se sem nem me olhar; foi ao banheiro, tomou banho, escovou os dentes...Saiu, desligou a vitrola, deitou-se e agora puxa as cobertas, para que eu me deite aí sobre o colchão?"
Mal acabara a última frase, percebe o espanto dele e sua brusca virada na cama:
- "Meu Deus! Peço que desculpe, Luisa. Estou muito envergonhado. Não fiz de propósito. Não desliguei a vitrola de abrupto, como tudo indicou. Não percebi que puxei os lençóis desse jeito. Puxa, mas você é muito encucada mesmo! Por favor, fique. Quero tê-la, mais um pouco, a meu lado. Não vá! Prove que me desculpou ficando ..."

Luísa enfiou a chave na fechadura de seu apartamento no sexto andar, equilibrando os pacotes. Um sonho que termina... um dia, que tem tudo para ser tornado lindo, que começa. Ao se desvencilhar das compras, olhando-se no espelho, exclamou para si mesma:
- "Dona Luisa, algum dia chegará seu inteiro. Raul seria sempre uma metade, não? Admito que goste dele. Poderá vir a ser um excelente amigo, como já parecia ser... mas só isso!"
Um amigo, pelo menos era o que ela gostaria que fosse, pois seus papos eram legais. Mas tinha muitas dúvidas sobre uma amizade mais assídua entre homem e mulher, em que a companhia de um e outro fosse frequente, sem envolvimento sexual. Na hora em que este sucedesse surgiria uma cumplicidade, uma ideia de posse ficaria meio implícita, mesmo no caso do homem, que no momento até esse se envolveria menos. Até que ponto ele se sentiria indiferente ao ver sair com outro homem a mulher que dormira com ele na noite anterior? Será que continuaria a procurá-la da mesma maneira depois, por mais liberal que fosse?

De uma coisa estava certa! Ainda existia muito machismo impregnando a mentalidade masculina; muita valentia encobrindo muita insegurança. Poucos eram os homens que, saindo de seu egoísmo egocêntrico, se preocupavam com a companheira, não simplesmente em saciar um desejo físico. Pela sua maneira de ser, sabia não se sentir totalmente feliz sozinha, mas não era mulher para várias amizades, que a tudo envolvessem: afeto, carinho, sexo e liberdade. Achava que poderia reunir tudo isso, mas concentrado numa só pessoa. Respeitava as que conseguissem o contrário. Até agora não encontrara nenhuma que se sentisse plenamente realizada assim agindo. Alguma frustração sempre aparecia, no meio das conversas a respeito.

Não era a favor das ideias feministas de igualdade entre homem e mulher. Achava que o próprio ideal feminista fora desvirtuado. Como colocar em igualdade quem é, biologicamente, tão diferente? É bem verdade que o feminismo surgira como movimento, cuja intenção era de equiparar os 'direitos civis e políticos' das mulheres aos dos homens. No entanto, tantas comparações foram sendo feitas, colocando-se em segundo plano as diferenças inatas entre ele, que ocasionou, naqueles em que ainda predomina uma estrutura imatura e insegura, o aumento de invejas e hostilidades.

No momento, estranha sensação passou por ela, causada pelo fato de não ter alguém fixo em que pensar. Como sempre precisamos 'criar raízes' em algum lugar para nos sentirmos bem. Por que? Estaria livre, não só 'livre de', mas 'livre para' fazer alguma coisa. Precisava era aprender a viver essa liberdade, que no início apavora e acarreta grande desconforto pessoal.

Se, nesse instante, não havia 'alguém especial', talvez no seguinte aparecesse. Não ali dentro de casa, é lógico! Um sorriso aflorou de seus lábios, embora seus olhos continuassem triste. Penteou rapidamente os cabelos. Pegou a bolsa e saiu, rumo ao trabalho.

(término do segundo capítulo de "Ainda há tempo!")
Lúcia Thompson