domingo, 27 de dezembro de 2015

1982 - capítulo VI - Aldous Huxley

"O afeto gera afeto. Mas somente dos benevolentes! Não dos gananciosos, dos amantes do poder, dos frustrados ou dos amargos. Para estes, a benevolência não passa de uma fraqueza, de um convite à exploração, à tirania ou à vingança impune." (Aldous Huxley)


Felipe entrava no hall do prédio cambaleando como sempre. Ainda bem que seu José estava por perto. Ultimamente sempre chegava tarde e nesse estado. Pacientemente, o zelador o acompanhava até o segundo andar. Enfiava sua chave na fechadura, o ajudava a chegar ao quarto. Numa das vezes até lhe fizera um café. Tornara-se meio seu confidente. Gostava de seu Felipe. Tinha muita pena dele.

Com seus quarenta anos, meio careca e barrigudo, era uma das pessoas que se consideravam derrotadas, sem ânimo ou meta de vida. Possuía três filhos, mas pouco a pouco se separara deles. Os meninos tinham preferido ficar com a mãe, no momento da separação dos pais.
Ele e a mulher, há muito, não se entendiam. Viviam brigando, competindo. A inveja imperava entre eles. Sua relação era como uma simbiose, dependiam um do outro para manter seu emocional estabilizado. Para se sentirem importantes e seguros, tinham que manipular sempre, buscando controlar o parceiro, não sem antes realçar seus pontos fracos.  Não interessava o que o outro pensasse ou sentisse: -"Você sente isso? Ótimo! Mas acho melhor fazer desse jeito." E cada um não arredava pé de sua posição. O mais importante era reforçar o sentimento de inferioridade do outro e não valorizar a sua autoestima, para com a manutenção do vínculo de dependência do parceiro, se sentir superior e com a própria autoestima em alta na relação do casal.

Depois dos primeiros anos de convívio tanto acharam que se conheciam tão bem, que passaram a se desconhecer. Suas maneiras de ser foram se modificando em direções opostas. Suas afinidades não mais existiam. Não se aperceberam do enorme abismo que se formara entre eles. Um evoluíra como pessoa e o outro se acomodara. Consideraram-se seres estáticos dentro de uma convivência a dois tediosa. Que ilusão! O tempo passava e eles imutáveis em sua maneira de ser e agir como casal. Já se conhecendo tanto, tudo se tornara monótono. Tudo sempre igual na vida a dois.
O tédio, que tomara parte de suas vidas, foi aumentando o isolamento a dois em que viviam. Sua comunicação, quando existia fora das abordagens obrigatórias à convivência, estava totalmente truncada. Parecia que falavam línguas diferentes. Não tinham mais abordagens semelhantes sobre os assuntos comuns. Passaram a não se admirar mais, guardar muita mágoa e ressentimento, e conter muita raiva.

Seu relacionamento passou a ser marcado pelo comodismo. Sempre existia um "tanto faz". Algumas vezes se "sacrificavam", relegando algo importante, mas sem saber ao certo se para o outro seria válido ou não. Como Felipe tinha dificuldade em dizer "não", ou colocar limites com firmeza, preferia ceder logo de cara. Era como se desse muito trabalho dialogar. Era muito mais fácil concordar e se adaptar, quando existe grande dificuldade em lidar com as reações emocionais. É difícil, na prática, se perceber como isso afasta as pessoas, em vez de as unir. O dever passou a imperar sobre o querer simplesmente, aquela sensação gostosa do convívio com o outro por se sentir bem; aquela vontade de agradar sem nada exigir em troca, sem nada esperar, sem condicionamentos; aquela preocupação respeitosa pelo companheiro sem interferir na sua individualidade, sem pretender transformações em seu modo de ser.

Colocaram uma venda nos olhos por alguns anos, mas não aguentaram muito mais. Até aos filhos passaram a prejudicar pela falta de atenção que lhes dedicaram. Lógico que eles muito tinham, materialmente falando, mas não aquele carinho afetuoso de pais que se interessam e se preocupam com o real bem-estar e a felicidade dos filhos. Ora, se externamente estavam bem, tinham tudo do bom e do melhor, tudo de mais caro, por que começar a encucar? É bem verdade que, como casal, estavam mais quietos e mais agressivos, que sentiam a frieza da relação, a irritação entre ambos, mas isso não faria parte da vida de todos os idosos? Não adiantava pensar muito nisso. Era tolerar e levar a vida da melhor maneira.

Profissionalmente, Felipe ia de "vento em popa", numa época considerada difícil por muitos. A inflação aumentando, os juros cada vez maiores, os empréstimos em bancos mais raros. Muitos conhecidos pedindo concordata, mudando inclusive o ramos dos negócios. Certo era que passara a dedicar quase tempo integral a suas atividades. Era muito organizado em seu serviço. Quantas vezes não ía almoçar em casa e chegava depois das dez para jantar.
Também que chatice teria que enfrentar em casa: os filhos grudados no som ou na teve, quando não estavam brigando. Sua mulher com um livro, ou entretida, de tal forma, com algum trabalho manual, que só se importava em dar um distante 'oi' de boas vindas ante sua chegada. Estava tão cheio desta vida, mas quem cuidaria de suas coisas, de sua roupa, de sua comida, da casa? Dos males o menor era ficar onde estava e ir levando, até que...

Até que apareceu Sofia. Seu jeito matreiro de encará-lo e provocá-lo. Amiga de sua mulher, há uns dois meses passara a frequentar mais assiduamente sua casa. Inteligente e astuta, percebera ela como seria fácil se insinuar, incentivar e captar a confiança de um cara confuso e imaturo. Logo nos primeiros contatos, Felipe já deixara escapar toda a insatisfação e a insegurança que o dominava. Em diversas conversas ela já notara como ele deturpava os fatos, jogando responsabilidades, negando comodismos e erros. Mas não era do interesse de Sofia enxergar sob esse prisma. Os problemas familiares já existiam, quando os conhecera! Essa versão lhe incomodava menos. O peso da culpa, ou de ter errado ao lutar por uma relação com um homem casado e com filhos, era-lhe tirado das costas. Estava tranquila!

Quanto aos filhos, depois pensaria no assunto. Acabariam por aceitar a nova relação do pai, como a família paterna, que já havia aberto espaço para ela, como namorada do pai sem se incomodar com o fato de ainda estar casado.
Até que os achava simpáticos! Além do mais, ficariam com a mãe. É lógico que ela não os abandonaria. E, com o tempo, ela iria, pacientemente, plantando a ideia da vontade de não querer ficar sozinha na vida, de querer ter um filho com ele...
Quanto a mãe, futura ex-mulher segundo Sofia, não fizera nada para prender o marido dentro da união formal do casamento. Algumas vezes, em meio a brigas, até o mandara embora de casa. Que ela assumisse a responsabilidade por ter afastado o marido. Não se interessara em lutar por ele, deu-o "numa bandeja". Sempre dependente dele em tudo, era bem capaz de ser esta a causa do relacionamento deles não ter dado certo.

Também, viver do lado de alguém assim... Coitado, até que ele suportara muita coisa, por um longo tempo. Como devia ser cansativo conviver com uma mulher dedicada à casa e aos filhos. Sofia não entendia como tinha gente que assim vivia e gostava disso, trocando noitadas em restaurantes e shows, viagens ao exterior, por um sentar abraçadinho com o marido no sofá de casa, assistindo a um bom filme, ouvindo uma boa música, ou lendo um livro e trocando ideias a respeito do que eles lhes provocavam internamente! Coisa mais careta, gosto tão diferente do dela, que gostava dos contatos sociais, das piadas e fofocas, das conversas superficiais que a faziam rir do nada e por nada, sem encucar sobre a vida em si.

Felipe deixara-se levar por seu fascínio. Seu contato lhe remetia às investidas sedutoras e ao jogo de conquistas da juventude. Sentia-se envaidecido! Tiveram alguns encontros e aí seu caso com Sofia começou a pesar. Sofia começou, no início sutilmente e depois agressivamente, a cobrar a saída dele de casa. Por que continuar lá, se não gostava da vida que levava? Foi aí que ele se enrascou!
Mais alguns meses, com as brigas com sua mulher aumentando, e gritaria dos filhos enchendo, a droga da comida colocada na mesa, os amigos cansativos que iam visitá-los, os serões à serviço menos espaçados ... e encontrou coragem, dentro da enorme covardia, para avisar que iria se mudar. O casamento estava acabado e queria recomeçar sua vida.

Recomeço, isso é que engana muita gente. Não existe recomeço de nada, mas sim novos começos e novas batalhas para se conseguir boa convivência, a dois, como casal com grandes chances de que os mesmos erros sejam repetidos. Para aqueles que já possuem família formada com filhos, passará talvez a existir duas vidas, que dificilmente conseguirão se entrelaçar. Foi o que aconteceu ao redor dele.

Como Felipe e sua nova companheira não tinham estrutura para suportar a dupla vida, as desavenças logo começaram. Desentendiam-se pelas menores coisas; no início bem esporadicamente, depois de maneira mais assídua. Os filhos passaram a ter um enfoque especial. Sofia passou a não concordar com o modo do pai tratá-los e, cada vez mais pensava, em procurar ampliar e consolidar seu espaço na família dele, tendo um filho com Felipe.
- " Crianças egoístas e malcriadas! Não percebe como o tratam? Devem estar instruídas pela mãe, ou pelos avós. Só chegam perto de você para que compre algo, ou para pedir que faça alguma coisa para elas. Você não vê isso?"

Essas colocações agradaram Felipe em sua posição de vítima. Realmente era isso o que estava acontecendo. Sofia tinha razão, era "a santa que surgiu em sua vida" e que estava tentando protegê-lo. Coitado dele, como o estavam tratando! Como não se ateve antes à qualidade da relação entre filhos e ele? Era melhor nem insistir mais em vê-los, que o procurassem quando sentissem vontade de estar com ele. Não iria cancelar compromissos sociais nos finais de semana em que os filhos passariam em sua companhia. Depois, era bem desagradável enfrentar suas brigas, que sempre acabavam causando algum atrito entre ele e Sofia.

Sabia que sua ex-mulher estava cuidando bem deles. Enviava-lhe a pensão para isso. Lavava as mãos. Se estavam mal-educados a culpa era dela, não dele. A mãe não se impunha, não tinha autoridade, não controlava seus excessos. Já chamara a atenção dela; que não viesse, algum dia, reclamar que não fôra avisada. Rareou seus telefonemas e o tempo de permanência com os filhos.
Aos poucos, cortes foram feitos em suas "vontades de gastar". Não avaliavam o quanto custava trabalhar para ganhar dinheiro? Em sua nova casa até os avanços nos sorvetes da geladeira passaram a ser controlados por Sofia, depois que mudara sua forma de se relacionar com eles. Mas, nada que a nova vida tivesse atrapalhado. Os tempos estavam difíceis mesmo, que perguntassem aos tios ou a qualquer parente, se duvidassem.

- "Olhe, Felipe, eles precisam entender que essa casa é minha, e me respeitar. Você tem que me ajudar nisso! Veja quanta sujeira! Quanta roupa fora do lugar; não sou eu que vou guardar, não! Aliás, querido, nosso armário é tão pequeno... acho que não se incomodarão se acomodar algumas das roupas, que usamos mais raramente, no quarto deles, não é?"
- " Não é justo deixarmos de ir ao aniversário de Rui porque seus filhos estão aqui. Já chega termos adiado a viagem deste fim de semana e há quinze dia não termos ido ao teatro assistir à peça que eu tanto queria."

O término entre Felipe e Sofia, não se deu sem antes ela ridicularizá-lo um bocado. Passou a achar defeito em tudo que há pouco tempo elogiava. Por mais boa vontade que ele tivesse, o que fazia a irritava. Quanto mais cedia, mais ela invadia sua maneira de ser, tentando moldá-lo ao seu modo de ser. Finalmente, chegaram a conclusão que sua união não dava mais certo e que seria melhor cada um viver sua vida. Não se compreenderam mesmo, incompatibilidade de gênios e pouca afinidade, e tudo acabado!

Felipe tentou, antes de abraçar a bebida, se agarrar ao carinho dos filhos. Mas esses se distanciaram dele e ele nem percebera. Nos raros encontros era como se fossem estranhos. Não se conheciam mais realmente. Não é por ter dado a vida, que se chega a um filho, exigindo carinho e respeito, e, com orgulho, em dado momento, se diz: -"Sou seu pai!", que os terá. Afeto também é algo que se cultiva e, às vezes, leva tempo... um constante cuidar! Esquecera que seus filhos tinham olhos e ouvidos. Muita coisa ouviram e presenciaram. Até Sofia conheceram muito bem, antes dele mesmo!

Um trago aqui e outro ali, e foi se deixando envolver pelo torpor prazeroso que tomava conta de seu corpo e anuviava seus pensamentos. Quando deu por si, não conseguia passar sem seu golezinho diário. A partir daí, foi um passo, para ficar dependente dele para qualquer coisa.
Enfastiado, deixou-se engolir por seu trabalho, esquecendo-se que não existe sucesso financeiro, que justifique, ou encubra, um massacre pessoal. Há muito tempo, ele vinha se autodestruindo.

Seu José sentia-se bem com os meninos, quando, de quinze em quinze dias, vinham visitar o pai. Gostava de bater papo com eles. Crianças educadas! É lógico que brigavam de vez em quando, chegando a se atracar algumas vezes, mas qual o moleque que assim não agia?
Assumiram seu novo esquema de vida. Não foi fácil a adaptação, mas ultrapassadas as dificuldades iniciais, olharam mais realisticamente ao redor, embora com muita tristeza e um pouco de revolta.
Um deles precisou da ajuda de uma psicóloga. A barra foi muito pesada para ele.

Quantas noites presenciaram a mãe chorando, a casa ficando vazia, as salas constantemente às escuras, pois o lugar de isolamento preferido dela era seu quarto. Foi assim por um longo período!
Mas, aos poucos, todos notaram a luta da mãe para se erguer, para crescer como pessoa e retomar sua vida. As janelas voltavam a ser abertas. O som voltou a ser ligado. Os verdadeiros amigos foram se reaproximando. A alegria batia à porta novamente.

Perceberam que caminhavam para uma vida mais autêntica e estavam mais próximos sem as brigas, que terminavam com qualquer intuito de bom convívio familiar.
Passaram a se sentir bem sem a presença do pai, que a tudo reclamava. Este, na verdade, pouca falta fazia agora. Na verdade, o apoio de um "amigão", do tipo "meu pai, meu herói", nunca tiveram mesmo! A qualidade dessa relação paterna serviu como exemplo, a não ser seguido por eles, quando fossem pais.

Aprenderam a conviver com o que pai tivesse condições de dar a eles, e a retribuir com o afeto que dispunham para, de boa vontade, interagir com ele como filhos sem sentir culpa ou recriminações por não seguirem papéis sociais, padronizados pela cultura.

(Término do sexto e antepenúltimo capítulo de "Ainda há tempo!")
Lúcia Thompson                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              


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