sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

1982 - capítulo II - Erich Fromm

" A atração sexual cria no momento a ilusão de união, mas, sem amor, essa união deixa os estranhos tão afastados quanto antes se achavam. Sentem sua estranheza ainda mais acentuadamente do que antes." (Erich Fromm)

- "Bom dia, dona Luisa, tudo bem?"
- "Bom dia , seu José. Vamos indo e o senhor?"
- "Lindo dia, não? Posso lhe ajudar com os pacotes?"
- "Obrigada. Já me ajudará se segurar este do lado esquerdo. Meu braço estava ficando meio adormecido. Sabe, gosto de encontrar logo cedo pessoas como o senhor. Alegres, que ainda encontram tempo para apreciar o dia. Ah, eis o elevador! Obrigada mais uma vez, o senhor foi muito gentil."

Luisa morava sozinha em seu apartamento, desde que a irmã se casara. Era uma moça de uns trinta anos, miúda mas bem proporcional. Vistosa, atraente, bonita algumas vezes... Embora meio indiferente, bem que percebia os olhares de desejo, que lhe lançavam os homens. No momento, se notassem, verificariam quanta tristeza estava impregnada em seus olhos, seus ombros meio vergados de cansaço, seus passos mais lentos e pesados, sinônimo de desânimo.
Percorrendo as quatros paredes do elevador, seu olhar se fixou na luzinha que piscava. O número 1 se apagava, dando lugar ao 2, que se acendia... Começou a divagar, recordando o que ocorrera na noite anterior: como os eventos se sucedem sendo delimitados pelos andares das circunstâncias ao redor.

Raul a fora buscar no trabalho. Sempre muito alinhado dentro de seu terno. Não se lembrara de tê-lo visto deselegante; mesmo de "jeans" mantinha sua postura. Já haviam saído algumas vezes e, em cada uma mais simpatizado um com o outro. Procurava ele sua metade, enquanto Luisa buscava seu inteiro, pois, como dizia, duas metades, quando se unem formam um inteiro, mas de dois inteiros, quando se encontram, surge o amor em sua plenitude, aquele relacionamento amadurecido, baseado em respeito, compreensão, liberdade. Cada um conserva sua individualidade, já formada anteriormente. É aceito pelo outro tal qual é, não tendo necessidade de se esforçar para isso, de adaptar seu modo de ser, para que a relação perdure; por si só ela flui naturalmente.

A religião e a política foram seu primeiro elo. Assunto que apaixonava a ambos e os unia, mais ainda, por sua semelhança na maneira de pensar a respeito. Não tinham crenças, superstições externas ao próprio homem. Acreditavam no seu potencial. consideravam a religião no sentido real de união com o próximo, com o "Ser". Como Raul dizia, haviam chegado à "religião universal". Ao que Luisa endossava, empolgada:
- "É isso, Raul. Veja, um pintor possui um traço característico seu em cada quadro, cada obra criada; um escritor deixa nas entrelinhas parte de si; os filhos, embora diferentes externamente, surgiram dos mesmos pais, possuindo as mesmas qualidades essenciais, princípios éticos que esses e o resto da humanidade, em sua maioria, possuem... Assim sinto Deus! É como se fosse parte Dele. A criação contém parte do Criador. Tomemos o exemplo do Sol, Raul. Quanto calor e energia irradia por todo mundo. Uma grande potência que tudo concentra. Seus raios se projetam em todas as direções, portadores, embora em graduações diferentes, da mesma energia e calor. Posso parecer pretensiosa, Raul, mas assim me sinto, como a todos nós - raios de Sol... Nós, seres humanos, somos muito importantes, só pelo fato de existirmos, não é?"

Em outras ocasiões era Raul que se colocava, ocasionando nela o mesmo olhar de admiração. Luisa já sabia que, há algum tempo atrás, ele era uma pessoa tremendamente radical, meio fascista mesmo, segundo suas próprias palavras.
- "Eu me sentia rebelde desde pequeno. Era chamado de criança 'do contra'. Poucos perceberam que era minha personalidade que se formava, de maneira marcante, exigindo limites. Isso muitas vezes incomodava. Sempre fui muito inquiridor e dei muito trabalho aos que, ao meu redor, se intitulavam adultos, pois os obrigava, mesmo que não quisessem, a pensar. Compreendo, hoje em dia, o quanto valo o respeito pela autoridade do outro. Sei que, em qualquer campo em que me sentir seguro, sou a autoridade no assunto, como também que esse lugar será de outro em campo diferente. Não sou mais o 'dono da verdade', como fui chamado muitas vezes. Essa beleza nos relacionamentos eu encontrei, Luisa. Como me encontro longe da antiga posição, onde a obstinação, teimosia, vaidade comandavam!"

Continuava Raul: "Não sei bem onde li que o ser vivo se tornaria mais livre, quando se assemelhasse a um 'sistema aberto', disponível a trocas entre o meio interno e o externo. Considerava-me um homem livre, mas só passei a sentir essa liberdade, deixando as posições radicais, quando realmente passei a aceitar as diferenças interpessoais e tolerar divergências de opiniões. Passei a adquirir, então, autênticos e proveitosos conhecimentos. Tudo está em contínua mudanças, dentro e fora de nós. Dentro de minha posição fechada, bitolada e autoritária, deixei de viver de forma plena, que é o que mais ambiciono. Hoje vemos alguns grupos políticos assim constituídos, que colocam a sua autoridade e ambição acima de tudo, embora propaguem que lutam em prol dos demais. Escondendo-se atrás de uma falsa humildade, sentem-se sempre em posição superior aos outros, para determinar o que é melhor aos demais e impor sua razão."

Assim passavam os dois, horas e horas, conversando e se encantando, cada vez mais. Pouco a pouco sentiam vontade de se conhecer melhor, de dar e receber carinho.

Na noite anterior, Luisa sentiu seus olhos se cruzarem de forma diferente, o que lhe causou enorme arrepio interno. Estavam mais irrequietos. Seus lábios se procuravam com mais sofreguidão. De repente, viu-se um um quarto. Raul se aproximando, o carinho de seu olhar, suas mãos suaves a atraindo delicadamente, para depois enlaçá-la. Duas bocas, dois lábios, duas línguas que se procuravam, como se quisessem uma integração total.

Como num fechar e abrir de olhos, percebeu seu corpo, parcamente coberto pelo lençol, estendido na enorme cama vazia a seu lado. Com a mesma rapidez que se inclinara sobre ela, Raul levantara da cama, se dirigia ao banheiro e se encontrava cantarolando sob o chuveiro. Ainda meio desconcertada, procurava fixar sua atenção na música da vitrola. Como gostaria de não estar ali!

A porta do banheiro se abriu. A música parou. Levantou-se e começou a vestir suas roupas. Só então observava o quarto de Raul. Duas coisas lhe chamaram a atenção: o grande espelho de um lado e o pequeno vaso, que portava um lindo cravo vermelho, do outro. Acabara de colocar a blusa, deixando entrever seus belos seios, quando ele entrou sorridente e meio perplexo ante sua atitude:
- "Mas como, já vai embora? Por que? Não pode ser! Fiz alguma coisa? Olhe, se foi pela minha maneira de agir, eu sou assim mesmo. Não sei ficar suado e sujo numa cama. Mas tomei um banho rápido, não foi? Então, estou aqui... Olhe, deite-se do meu lado. Sabe que você me fez muito feliz?"

Apressadamente, Raul puxara os lençóis e Luisa, estonteada e enraivecida, vira o colchão à sua espera. Não aguentou mais:
- "Nunca me senti tão desconfortável em toda a minha vida. Talvez você não me conhecesse bem, Raul... Sou uma pessoa que acha esse contato lindo! Realmente faço uma diferenciação entre ter uma relação e fazer amor. Se não houver um vínculo afetivo, não há nada que me motive a estar do lado de alguém trocando carícias como ocorreu entre nós. Mas... você não me deu condições de nada pela sua pressa, inclusive as de fazê-lo sentir mais intensamente. Não sei se você sabe, mas existe um tipo de ginástica que ocasiona determinada contração que possibilita isso. Você não me deu chances, Raul! Depois, numa rapidez, levantou-se sem nem me olhar; foi ao banheiro, tomou banho, escovou os dentes...Saiu, desligou a vitrola, deitou-se e agora puxa as cobertas, para que eu me deite aí sobre o colchão?"
Mal acabara a última frase, percebe o espanto dele e sua brusca virada na cama:
- "Meu Deus! Peço que desculpe, Luisa. Estou muito envergonhado. Não fiz de propósito. Não desliguei a vitrola de abrupto, como tudo indicou. Não percebi que puxei os lençóis desse jeito. Puxa, mas você é muito encucada mesmo! Por favor, fique. Quero tê-la, mais um pouco, a meu lado. Não vá! Prove que me desculpou ficando ..."

Luísa enfiou a chave na fechadura de seu apartamento no sexto andar, equilibrando os pacotes. Um sonho que termina... um dia, que tem tudo para ser tornado lindo, que começa. Ao se desvencilhar das compras, olhando-se no espelho, exclamou para si mesma:
- "Dona Luisa, algum dia chegará seu inteiro. Raul seria sempre uma metade, não? Admito que goste dele. Poderá vir a ser um excelente amigo, como já parecia ser... mas só isso!"
Um amigo, pelo menos era o que ela gostaria que fosse, pois seus papos eram legais. Mas tinha muitas dúvidas sobre uma amizade mais assídua entre homem e mulher, em que a companhia de um e outro fosse frequente, sem envolvimento sexual. Na hora em que este sucedesse surgiria uma cumplicidade, uma ideia de posse ficaria meio implícita, mesmo no caso do homem, que no momento até esse se envolveria menos. Até que ponto ele se sentiria indiferente ao ver sair com outro homem a mulher que dormira com ele na noite anterior? Será que continuaria a procurá-la da mesma maneira depois, por mais liberal que fosse?

De uma coisa estava certa! Ainda existia muito machismo impregnando a mentalidade masculina; muita valentia encobrindo muita insegurança. Poucos eram os homens que, saindo de seu egoísmo egocêntrico, se preocupavam com a companheira, não simplesmente em saciar um desejo físico. Pela sua maneira de ser, sabia não se sentir totalmente feliz sozinha, mas não era mulher para várias amizades, que a tudo envolvessem: afeto, carinho, sexo e liberdade. Achava que poderia reunir tudo isso, mas concentrado numa só pessoa. Respeitava as que conseguissem o contrário. Até agora não encontrara nenhuma que se sentisse plenamente realizada assim agindo. Alguma frustração sempre aparecia, no meio das conversas a respeito.

Não era a favor das ideias feministas de igualdade entre homem e mulher. Achava que o próprio ideal feminista fora desvirtuado. Como colocar em igualdade quem é, biologicamente, tão diferente? É bem verdade que o feminismo surgira como movimento, cuja intenção era de equiparar os 'direitos civis e políticos' das mulheres aos dos homens. No entanto, tantas comparações foram sendo feitas, colocando-se em segundo plano as diferenças inatas entre ele, que ocasionou, naqueles em que ainda predomina uma estrutura imatura e insegura, o aumento de invejas e hostilidades.

No momento, estranha sensação passou por ela, causada pelo fato de não ter alguém fixo em que pensar. Como sempre precisamos 'criar raízes' em algum lugar para nos sentirmos bem. Por que? Estaria livre, não só 'livre de', mas 'livre para' fazer alguma coisa. Precisava era aprender a viver essa liberdade, que no início apavora e acarreta grande desconforto pessoal.

Se, nesse instante, não havia 'alguém especial', talvez no seguinte aparecesse. Não ali dentro de casa, é lógico! Um sorriso aflorou de seus lábios, embora seus olhos continuassem triste. Penteou rapidamente os cabelos. Pegou a bolsa e saiu, rumo ao trabalho.

(término do segundo capítulo de "Ainda há tempo!")
Lúcia Thompson




Nenhum comentário: