segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

1982 - capítulo VIII - Vinicius de Moraes

"Na mais medonha das trevas
Acabei de despertar
Soterrado sob um túmulo.
De nada chego a lembrar
Sinto meu corpo pesar
Como se fosse de chumbo.
Debalde tentei clamar
Aos habitantes do mundo."
      (Vinicius de Moraes: Balada do Enterrado Vivo, RJ, 1946)

Seu José começava a se preparar para deitar. Estava preocupado. Recebera um comunicado, no final da tarde. Na próxima terça-feira, haveria a mudança de uma família para o sétimo andar, último andar do edifício. Iriam mudar para o apartamento duplex de cobertura. Passara por grandes reformas, que perduraram mais de seis meses. Paredes demolidas, salas aumentadas; outras erguidas, surgindo novas divisões no ambiente. Dentro de um estilo mais moderno, predominando o branco, sofás fixos de alvenaria, muito espelho e aço. A cozinha não se reconhecia mais. Até uma despensa surgira. Quanta coisa não se consegue fazer com gosto, criatividade e ... dinheiro!

A família era formada pelo casal e cinco filhos. O zelador já conhecera todos e sua preocupação recaíra sobre o penúltimo filho do casal. Ricardo era deficiente mental e por vezes necessitava de cadeira de rodas para se locomover. Todos os demais eram crianças normais. O impacto com seu nascimento foi grande. No início não se conformaram. Optaram por ter mais um filho, que nasceu perfeito. No que se referia a Ricardo, parece que, ao nascer, a enfermeira, que recebera o bebê em seus braços, custara a lhe dar o oxigênio e parte de seu cérebro ficara afetada. Seus pais custaram a aceitar o fato do filho ser imperfeito e retardaram seu encaminhamento ao médico especializado. Atrasaram, com isso, mais ainda, sua já difícil evolução. Com os remédios, novos tratamentos, boa alimentação, exercícios e muito carinho, conseguiu deixar de ser um bichinho retraído e agressivo, que afastava as pessoas. Suas reações seriam, no entanto, totalmente infantis, em muitos aspectos.

Os pais sabiam que sempre teria que contar com alguém, para cuidar dele, o resto de sua vida. Esta ideia, embora os angustiasse, não causava mais pânico. No momento, faziam o máximo pelo filho. Quanto ao resto, lhes fugia das mãos. Era esperar e torcer pelo melhor. Dedicavam-lhe boa parte de seu tempo. Esse fato dividiu um pouco a família, causando problemas aos outros filhos. Os mais velhos se sentiram relegados a um segundo plano. Eram muito inteligentes, o que, para tantos pais, passa a simbolizar que não necessitam tanta atenção e cuidados. Isso não é verdade! Afastaram-se logo dos problemas do irmão, formando turmas longe de casa. Lutavam contra os sentimentos de raiva, vergonha e ciúme, que os dominavam, para depois se reaproximarem.

A única menina, entrando na adolescência, com seus doze anos, encontrara sua fuga e abrigo para suas carências na comida. Compensava a falta de carinho que sentia, se empanturrando de chocolate. Se sentia rejeitada por todos, inclusive pelos outros irmãos que, pouco a deixavam entrar nas brincadeiras de suas turmas, agora menos ainda. Também não tinha nem condições de acompanhá-los, tiravam um "sarro" dela. Ela era a "gordinha", a "balofa", e por aí seguiam nos rótulos.

O que tranquilizava um pouco aos pais era a atenção dada a ela pela escola, professores e orientadores. Sempre por perto, procuravam apoiá-la da melhor forma possível, estimulando o fortalecimento de sua autoestima, com o intuito de ajudá-la a lutar contra esses sentimentos depreciativos e buscar sua inclusão social. Trabalho vagaroso e não muito fácil. Precisavam despertar sua vontade, conquistar sua confiança, fazê-la entender o preço que estava pagando tentando fugir da realidade. Insistiam, sobretudo, quanto ao fato dela ser capaz de aprender a lidar com os fatos à sua volta. O colegas, nessa faixa etária, não perdoam! Pretendiam fazer com que ela conseguisse ultrapassar a sensação de impotência e angústia, ocasionadas pela rejeição. Teriam que ensiná-la a pensar e administrar suas emoções usando sua "razão".
Para todos, os tratamentos de "choque" eram considerados desumanos, seja por meio de palavras ou atitudes. Podiam condicionar o indivíduo ou causavam danos em outros setores de sua vida. A ela não adiantaria afastar todo chocolate de sua frente, se não fosse sanada a origem de sua "fome" ou vontade compulsiva. Qualquer tratamento invasivo, com chantagens sentimentais e ameaça de retirada de afeto, deixavam marcas muito profundas.

O menor, ainda era muito pequeno para entender o que se passava ao redor. Vivia com a babá. Além do que, como caçula, ter todos voltados para suas graças. Era uma criança muito simpática e sorridente.

Não sabia seu José, como os demais meninos do condomínio iriam aceitar e reagir ante esse problema. Não gostaria de vê-los ridicularizados pelos demais. Às vezes, não eram nem as outras crianças que assim se portavam espontaneamente. Eram impelidas a assim agir pelos próprios adultos que, dentro de sua ignorância e falta de compaixão, acentuavam as diferenças com seus receios e temores.
- "É, balbuciou seu José, acho que não adianta pensar mais nisso. Era esperar o fato acontecer e tentar resolvê-lo, quando e se acontecer. Se deixarmos nossa imaginação leva nossos pensamentos longe dos fatos reais. Se não a controlarmos, ela leva antecipa e aumenta, em muito, nossa ansiedade!"

Pela cabeça de seu José, um turbilhão de pensamentos eclodia. Outro dia lera no jornal que, na Inglaterra, estavam em julgamentos dois cientistas que pretendiam criar "bancos de bebês", com embriões fertilizados e congelados. Este fato o horrorizara. Acreditava na tecnologia sim, desde que o próprio homem não permanecesse inativo e passivo ante ela. É inegável os benefícios, que pode trazer, em diversos campos, propiciando maiores facilidades e comodidades à humanidade. Mas, reconhecia que se, com o desenvolvimento da ciência tecnológica e das máquinas inteligentes, o homem não soubesse estabelecer firmes e claros limites éticos em suas atuações, e se reapropriar do espaço que cedera aos robôs, poderia, com o tempo, se destruir também por esse lado.

Os bebês de proveta iniciaram uma nova era. No entanto, o ser humano não é simplesmente um composto químico, para que um mero laboratório possa dele se incumbir e produzir "clones". O terreno, que estavam trilhando, era muito perigoso. Selecionar genes? Interferir no destino dos embriões? Pensar em raças mais perfeitas? A mim aterroriza!
Tanto ainda a ser descoberto nos seres já existentes. Por que não se voltaram para o que existe de forma insatisfatória, como o provam as guerras, revoltas, destruições, fugas do próprio mundo ante o uso de drogas, banalização da violência, aumento de suicídios?
Uma coisa tinha como certa, torna-se muito incômodo, a uma boa parte das pessoas, esse retorno a si mesmas. É sempre mais interessante observarmos, tentarmos mudar o que está fora de nós. Acabamos enquadrando até a felicidade em critérios padronizados. O inferno não são os outros, somos nós mesmos!

Talvez Ricardo viva um mundo interno mais feliz. Dentro de "nossa perfeição" é que nos penalizamos por ele, e o rotulamos de diferente de nós, o excluindo de nosso convívio e das vivências sociais a que está apto. Não simplesmente nos entristecemos e tentamos sua reintegração na sociedade, levando em consideração o enorme esforço dispendido por essas crianças especiais, para conseguirem ser aceitas e, dentro do possível, se tornarem menos dependentes. Entretanto, nós, seres perfeitos, cada vez mais cultivamos nossas dependências a drogas, bebidas, ilusões, fantasias destrutivas, tédio e depressão...
Tantas discussões sobre gerações, educações, modificações onde os jovens eram os mais atingidos. Precisavam ser melhor educados, precisavam mudar, precisavam... precisavam... Esquecida ficava a enorme gama contida entre a adolescência e a velhice, que, esses sim, precisavam se "reeducar" para melhor educar. Duplo trabalho, que exigia muito esforço e principalmente "boa vontade".

Puxou as cobertas e se lembrou de dona Rita. Sua imagem lhe dava forças. Recordava seus dias finais, quando, em meio a tanta dor, conseguia sorrir e ter esperança. Foram dias de muito sofrimento e desespero para ele. A doença a atingira de forma brutal. Primeiro tiraram-lhe o seio esquerdo. Grande choque, dois anos antes de sua morte.
Passado algum tempo, conseguindo reunir suas energias, se esforçava por enfrentar tal fato com otimismo. Chegava a brincar com ele: - "Meu velho, vamos lá, o que é isso? Parece que você é o doente! Sinto-me um pouco estranha sim, uma parte de mim foi tirada, não é? Mas, como se sentirão as pessoas que perdem os dentes? É uma parte deles também, não? Vou usar uma prótese e quantos não usam dentaduras? Tenho é que cruzar os dedos para que pare por aqui. Você vai ver, tudo dará certo!"

E, por um ano e meio, tudo ocorreu como pensaram. Contudo dona Rita teve recidivas. As dores recomeçaram, agora na região do estômago. Metástases! Emagrecera muito. Mudara de cor. Mas nunca se entregou totalmente, a não ser no "finzinho". Muito enfraquecida, seu sofrimento físico aumentara. A dor se generalizou por seu corpo, e tornou-se cada vez mais forte. Quantas noites não rolava na cama, gemendo baixinho. Às vezes não aguentava e gritava por ele, para que a acudisse e levasse seu medicamento. Prepara então seu remédio, ajudava-a a tomá-lo, e tentava, conversando, distraí-la até que fizesse efeito. Olhava sua fisionomia, desfigurada pelo sofrimento, ir aos poucos se acalmando. Colocava-lhe compressas na testa e esperava que o sono, embora agitado na maioria das vezes, possibilitasse algumas horas de descanso.

Nunca a ouviu praguejar ou blasfemar contra qualquer coisa.
- "Tudo bem, querido. Eu aguento. Vocês, homens, é que são uns patifes ante qualquer tipo de dor. A natureza foi bem sábia, concedendo às mulheres o privilégio de dar a luz aos filhos. Como sinto, José, de não ter engravidado mais depois da morte de nosso filho. Isso é algo que, por muito tempo, pensei que a vida ficar me devendo. Aí comecei a olhar ao redor vendo como me tinha compensado de outra maneira. Os sentimentos de desespero que me dominavam, a desilusão, a raiva... se transformaram numa tristeza doída, como a que sinto agora."
Um jato de dor mais violento, impedia-a de continuar falando. Seu suor se intensificava. Sua tez embranquecia. Era como se um punhal a fosse retalhando por dentro, bem devagarinho, com toda frieza e dureza da lâmina. Sentia-o penetrar até em seus ossos.

Chegar a hora que, em casa, não podia lhe dar os cuidados necessários. Relutara em levá-la ao hospital Há tanto tempo não se separavam. Ficar amedrontado ao imaginar como poderia viver sem ela. Nem por um momento deixara de amá-la. Esse amor sempre lhe dera muita força nos piores instantes por que passara. Agora, o que faria?
Nos seus últimos dias, permitiram visitas mais frequentes. A lembrança daqueles corredores, brancos e gelados, arrepiavam ainda. O cheiro de éter parecia impregnar suas narinas, mesmo depois de tanto tempo passado. A solidão, que começara a sentir, fazia-o ter a sensação de estar perdido e isolado no mundo. Porém, também se recordava que, ao entrar em seu quarto ouvia:
- "Olá, tive saudades suas! Não chore, por favor! Não quero vê-lo tão abatido. Um de nós partiria primeiro, não é? Mas, sabe, não vou deixá-lo sozinho, não! Se bem reparar, estarei sempre presente, em sua lembrança, em cada coisa que toquei, cada trabalho que realizei ou teci. Estarei em todo e nenhum lugar ao mesmo tempo. Perto de você, pelo tempo que quiser e quando assim o desejar. Mas sempre com um sorriso nos lábios, nunca com lágrimas de sofrimento nos olhos. Entende o que quero dizer, querido?"

Seu José não suportava mais ouvi-la. Seu pranto contido o sufocava. Tinha que sair um pouco do quarto, retornando quando tivesse se acalmado. De nada adiantaria transmitir a ela seu sofrimento. Ficaria preocupada e aflita por ele. Isso não desejava que acontecesse.
Estava do seu lado quando tudo aconteceu. O tudo que precede o verdadeiro nada!
- "José, sinto mais frio, minha vista está escurecendo. Tô envolta em trevas, mas tem um pontinho de luz bem distante. Tenho um pouco de medo, mas muita confiança, que o sobrepuja. Vou fechar os olhos e tentar dormir. Sinto-me fraca, tão fraca... Como uma nuvenzinha que o vento vai empurrando, empurrando. Não me acorde, sim? Cuide-se sempre, ouviu?"
Aos poucos não se ouvia mais seu balbuciar. Muito tempo depois percebia que ela se abandonara a um longo e "irretornável sono".

Como somos sozinhos no mundo, assim nascemos e assim morremos!
O desespero e a agonia ameaçaram dominá-lo, mas por um breve período. Nunca, dona Rita, esperaria essa atitude dele. Iria lutar contra essas sensações. Teria forças para transformá-las, como ela teve, em diversas ocasiões. A dor e a raiva, em tristeza; a revolta, numa aceitação obrigatória, resignação perante nossa pequenez em mudar o que nenhum humano conseguiria, perante a impotência em alterar algo tão grandioso, como o próprio destino das pessoas.
Não fora fácil retomar sua vida, de onde a deixara. Era com se não fosse a mesma vida. Houvera uma grande interrupção. Com os últimos meses, restara-lhe a sensação de ter vivido anos e anos. Sentia-se muito envelhecido.

Dona Rita tinha razão, ela ainda estava ali. Sua lembrança muito viva no momento, iria se tornando mais nublada, até sua fisionomia desaparecer, suas feições se embaralharem em sua mente. Mas o que ela deixara ficaria. A sensação do amor e carinho a ele dedicados, e a ternura contida em cada gesto faziam parte dele. Nunca o abandonariam. Olhando o velho agasalho feito por ela, sabia que ainda o aqueceria por muito e muito tempo. Passaria a ter uma doce e agradável recordação dos momentos passados juntos. A vida dele ainda continuava. Tanto ainda a fazer...
Não podia se entregar e parar, transformar-se em um "morto-vivo", ou um "enterrado-vivo" como tantos existiam por aí. Verificou que ainda podia sentir o cheiro agradável da manhã, ver a beleza contida no colorido das flores; contemplar um céu azul; ouvir o alegre cantar dos pássaros, que se equilibravam em um galho para poder pular, quase em seguida, a outro, demonstrando que a fragilidade deles não era tanta assim; sentir o calor do Sol, que atingia seu corpo o esquentando. Isso e tudo o mais era vida. Ele estava vivo e queria viver. Amava viver. Usaria sua imaginação como aliada fiel e leal, nesse sentido.

Os poucos recursos que tinham foram gastos em seu tratamento. Ainda bem que a nova família do sétimo andar era muito rica e podia cercar Ricardo e os demais filhos que demandassem de cuidados específicos, sem se preocupar com a parte financeira.
Seu José acertou o relógio, pondo-o para despertar às cinco horas. Sem desligar o abajour, fechou os olhos. Quantos não apelariam nesse instante a soníferos, ligariam um som, ou procurariam ver alguma imagem na tevê, que os distraíssem.
Novamente, pensou em "seu" prédio. Acreditava que todas as janelas já deveriam estar fechadas. Poucas luzes indicariam os que ainda não se tinham acomodado. Era um pequeno mundo, sem dúvida. Esse era um pensamento sempre recorrente de seu José. Pessoas tão diferentes com suas alegrias e tristezas, ali habitavam. Cada uma em seu canto. As famílias bem divididas, cada qual no seu apartamento. No entanto, todas se cruzariam se saíssem de seu casulo, de sua opção por se isolar. Tinham todas as mesmas opções para se locomoverem normalmente. Entravam e saíam pelo mesmo lugar. A mesma e única passagem para todos, para sair deste mundo e para entrar nele!

Em suas fantasias ele se via fazendo parte de um grupo que, inquieto, passava no meio de duas alas formadas por pessoas entorpecidas. Paralisadas, não! Parasitas, não! Os olhos delas estavam abertos e não viam. Seus ouvidos não escutavam o som das próprias vozes. Seus movimentos eram automáticos, sempre no mesmo lugar. Seus sentimentos estavam embrutecidos. Suas sensações estavam enferrujadas. Agiam como se estivessem meio adormecidas.
Junto com os demais que também faziam parte do grupo central, ia de um lado a outro. Uma frase era constante em seus lábios: - "Ei, você, acorde, por favor!". Todos deste grupo procuravam, incessantemente, encontrar brilho em algum olhar. Quando essa conexão se estabelecia, as fisionomias se transformavam. Os semblantes se enterneciam. Quanta ternura transparecia!

As mãos eram estendidas. E essas pessoas começavam a caminhar. Móveis e flexíveis, ocupavam seu lugar no centro, onde ele também estava. Para seu espanto, as atitudes tomadas não se diferenciavam das dos demais. Passavam também a procurar, esperançosos, a mesma chama no olhar que significava "vida".
Suas mãos procuraram o interruptor. A luz foi apagada. Suas pálpebras pesavam. Não era utopia o que passava em sua mente. Ainda havia tempo... Ainda há tempo!

22 de fevereiro de 1982
Lúcia Thompson


* Uau... Hoje é dia 28 de dezembro de 2015!
* Estamos há alguns dias apenas do início do ano de 2016, portanto "Ainda há tempo!" foi escrito há 34 anos?
* Uau!

Aurora Gite
(... pouco a pouco, se despedindo, para que Lúcia Thompson assuma seu devido lugar!)


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