sábado, 26 de dezembro de 2015

1982 - capítulo III - Khalil Gibran

"Vossos filhos, não são vossos filhos,
São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma
Vêm através de vós, mas não de vós
E embora vivam convosco, não vos pertencem."
                                            (Khalil Gibran)


- "Desde ontem procuro pelo senhor, seu José. Pagamos tanto de condomínio por um serviço tão precário, meu Deus! Tenho um vazamento na pia da cozinha que está me irritando. Já é desagradável ter que fazer almoço e jantar, e ainda mais essa... Quer ver o que o senhor pode fazer?"

Dona Carmem era proprietária do apartamento no quarto andar. Pessoa amarga, eterna censora da vida dos outros. Pessimista, sempre ressaltando o lado ruim de tudo, se impedindo de encontrar algo de bom. Fizera de sua vida um inferno, alastrando-o aos que chegassem perto dela. Sentia-se só, mas não percebia que sua atitude é que afastava as pessoas. No entanto, era sempre o contrário propagado. Culpava aos outros, particularmente aos filhos, por distanciamentos dos parentes.
Gostava que sentissem pena dela. Coitada, tão abandonada! Assim era como lhe pagavam tudo que havia feito. Bando de ingratos, isso sim! Não reconheciam o que lhes fazia.
Estranho sentimento "sentir pena de si"... As pessoas se voltam para si mesmas, mas em vez de encontrarem forças para sair do buraco em que se enxergam, continuam no mesmo lugar, percebendo que afundam cada vez mais. Verdadeiras parasitas da vida!

Com seus sessenta anos, aspecto mais franzino, teve a intolerância e a irritação predominando, principalmente no últimos anos. Sua atenção se concentrava naquilo que quisesse ver da realidade, sempre vivendo de recortes parciais. A leitura e interpretação de seu viver eram pontuais, passava superficialmente pelo todo. Em seus olhos não se notava a vivacidade e o brilho, que encontrava nos que possuíam, dentro de si, esperança. Seus gestos eram mais premeditados, mais duros. Desaprendera fazer um carinho espontâneo. Envergonhava-se de recebê-lo.

Sempre apressada, há muito acelerara seu ritmo de vida. Tudo que fazia era dentro de uma rapidez incrível. Poucos a igualavam em velocidade, segundo dizia. Os 'molengas' a irritavam. As palavras se atropelavam em sua boca, e, quando jorravam, como sabiam ferir! O silêncio era considerado por ela como castigo. Nas poucas vezes em que permanecia quieta, seus pensamentos entravam em reboliço, fazendo com que se alvoroçasse por dentro. Dava a sensação de precisar fugir de algo que a perseguia.

Os filhos sempre a ouviram desmerecer os demais, para, de alguma forma, inconscientemente, se sobressair. Tudo que fazia era sempre algo que lhe exigia sacrifício. Fazia por amor e exigia eterna fidelidade. Ou talvez fosse lealdade? Passava para isso a devotar sua vida aos outros, ou melhor, a 'viver a vida dos outros'. Pensava por eles, sentia por eles e, muitas vezes, decidia e agia por eles. Perdera dentro de si mesmo a verdadeira Carmem, já tão contaminada pela ilusão de querer ser qualquer coisa diferente do que era. Sua vida era realizada através dos filhos. Ai deles se ousassem desafiar sair dessa 'tutela por amor'. O amor lhes era retirado de imediato, como represália pela rejeição sentida à sua pessoa. Não se preocupava nem com o mal estar causado pela pergunta torturante, feita amiúde, a um e a outro filho, quando o pai ainda era vivo: "De quem você gosta mais, de seu pai ou de mim, que sou sua mãe?"

Viúva e com dois filhos, batalhara por seus estudos, o que era inegável, enfrentado períodos bem difíceis. Mas exigira muito em troca. Os dois, desde pequenos, tiveram suas vidas castradas. Tornaram-se dependentes do pensar e desejar maternos. Viviam inseguros e medrosos, sem firmeza e autoconfiança para tomar decisões por si mesmos. Não sabiam nem o que era melhor para suas vidas, mas reconheciam o que era melhor para a mãe. E procuravam não decepcioná-la, embora por vezes, não com tanta docilidade na submissão!

Fábio sempre gostara muito de artes plásticas e de música clássica. Mas imagine, homem se dedicando a elas! Profissão para homem é medicina, engenharia, advocacia...
- "Deus me livre, filho! Você é muito bom para isso, merece coisa melhor. Escolha uma profissão que dê mais lucro! Depois o que vão dizer? Não quero que chamem meu filho de efeminado. Confie em sua mãe, ela sabe o que é melhor para você. Faça o que eu estou te dizendo!"
- "Droga de  família, bem que podiam ajudar um pouco. Sabendo da ausência de seu pai, tio Sérgio bem que podia lhe mandar uma mesada. Mas espere, filho, vou pensar num outro jeito de arrumar dinheiro. Sua mãe sempre sabe onde tem o nariz... E a família vai ver, vão ter o que merecem, cada um a seu tempo! Espere só para ver o que vai lhes acontecer...Aqui se faz, aqui se paga!"
- "Clara? Não, não é menina à sua altura. Aliás tenha na sua cabeça que nenhuma mulher gostará de você como sua mãe, nenhuma!"
E, assim, qualquer caminho que ele procurasse seguir, não era o certo. Só o que ela escolhia e determinava. Qualquer iniciativa, tomada por ele, era minada e desqualificada.

Com Beatriz o processo fora semelhante. Aproveitara-se de sua docilidade e moldara-lhe bem a personalidade. Desde pequena a cercara por tanta chantagem e culpas, que a tornou tão vulnerável até para discriminar o que pertencia à mãe e o lhe pertencia realmente. Qual era o objeto de seu desejo? Como ter forças para lutar por esse querer? O que ansiava para tornar sua vida feliz? E isso se agravou ao atingir a adolescência...
- "Vai cortar o cabelo sim. Cabelo comprido pode ser bonito, mas dá muito trabalho. Além do mais sei que você não cuidará dele direito."
- "Vai sair com esse vestido? Olhe só o comprimento dessa saia! Sabe, às vezes nem parece minha filha. Aliás eu era muito mais bonita que você, quando tinha sua idade, pode perguntar à tia Glória. Tinha muito mais vida, animação... Outro dia ainda comentaram que você, na sua formatura, estava linda; mas que não chegava a meus pés, nos meus bons tempos."
- "São duas horas da manhã e ainda está na janela? Deixa de ser boba! Se espera por aquele 'bocó' do seu namorado, pode sair daí, Beatriz. Não precisa mais aguardar por ele. Ele passou por volta das nove horas e fiz sinal, como se fosse você, avisando que não poderia sair. Ele não é pessoa para você! Se não fosse eu, queria saber como vocês se arranjariam!"
Em outra ocasião, dona Carmem desfizera um namoro, imitando a voz da filha no telefone, o que ocasionou muita revolta dentro de Beatriz.

Cada vez mais, Beatriz se sentia culpada e diminuída pela submissão e desvalia, por não chegar nem perto das expectativas da mãe e não conseguir extravasar os sentimentos agressivos relativos a ela. Muito tímida e medrosa desde pequena, com dificuldade de lidar com pessoas autoritárias e exigentes, sabia ter temperamento bem diferente das posturas maternas. Era mais calada como o pai, até fisicamente se parecia mais com ele. Ficava contente com isso, embora fosse motivo de rancor e piada por parte de dona Carmem.
- "Acho que você puxou o 'sangue de barata', que tinha seu pai. Tudo para ele estava bom, sempre procurando ajudar aos outros. E lhe restava, no final, um bom pontapé no traseiro. Tinha um 'coração de ouro', esquecia facilmente o que lhe faziam. O que lhe valeu as sobrinhas e parentes o estimarem? Quando estava no aperto, quem vinha nos socorrer? Nunca me esqueço quando deixou de ganhar aquela bolada, que podia ter endireitado nossa vida. Recusou-se a fechar os olhos numa fiscalização que ocorreu na firma por não possuir 'condições morais'... porque queria conservar sua dignidade! Um mês depois um dos amigos dele aceitara a oferta, passara-lhe a perna, e , em seguida, já estava com um carro novo na garagem. E nós na vidinha apertada de sempre. Seu pai era um bobo mesmo, um verdadeiro idiota, sempre lutando na vida. Desligado da parte material, sempre não se importante se falta o básico em casa. A melhor coisa que ocorreu foi ter morrido mesmo, pelo menos deixou uma pensão!"
Quanta tristeza e raiva incomodava Beatriz ao ouvir isso.

Vivia muito só, afastara-se das amigas e de sua turma de rapazes. Sua mãe sempre dizia para desconfiar da sinceridade das colegas. Achava-se tão feia e sem graça, para algum rapaz se interessar por ela. Sentia-se sempre a excluída, não percebendo que ela é que rejeitava, para não sofrer se tal acontecesse. Certa vez, no colegial, ofereceram-lhe uma droga, dizendo que passaria a ser uma pessoa alegre e feliz. Com pessoas desse tipo, Beatriz sabia o ar de idiota que exalava. Mal sabiam o que havia dentro dela! Muito viva e perspicaz, não afastava a possibilidade de algum dia talvez experimentar, mas se estivesse numa boa e, realmente o quisesse. Avaliaria bem as circunstâncias e o mal que lhe poderia causar antes de investir nessa 'roubada'. No momento, estava muito enfraquecida, sua vontade e razão em muito diminuídas. Não vale a pena tomar nenhuma decisão nessas circunstâncias. Certamente seria levada muito facilmente a se viciar, por aqueles a quem chamava de 'mui amigos'. Por tudo que lera a respeito, todos os efeitos nocivos em seu organismo, considerava que trocar sua vida por um segundo de felicidade ilusória, procurando fugir da realidade, do modo de ser que não aceitava, seria de uma 'burrice' incrível.
De duas coisas, porém, tinha certeza. Primeira, que se sentia cada vez mais sufocar. Segunda, que urgia que fizesse algo a respeito.

- "Pronto, dona Carmem, posso guardar as coisas que tirei?"
- " Não, seu José. Tenho que passar um bom pano antes. Essas empregadas não servem para nada. Fazem a limpeza de qualquer jeito. Ah, tudo eu, meu Deus! Depois acerto com o senhor esse servicinho. Droga de apartamento! Também já falei com as 'crianças' que, algum dia, se ganhar na loteria, será a primeira coisa que vou trocar. Detesto isso aqui!"

Mal sabia dona Carmem que logo enfrentaria dois grandes problemas reais com suas 'duas crianças'. Fábio, com seus dezoito anos, engravidara sua namorada, e não sabia o que fazer. Beatriz, com seus vinte, já havia acertado, com duas conhecidas, sua parte no aluguel de um pequeno apartamento.

(Término do terceiro capítulo de "Ainda há tempo!")
Lúcia Thompson  

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