domingo, 27 de dezembro de 2015

1982 - capítulo V - Oriana Fallaci

" Naquele momento, você realmente se considerava um velho, porque se sentia derrotado pela vida."  (Oriana Fallaci)

- "Alguma carta para nós, seu José?"
- "Não senhora, dona Ivone. Como está passando seu Mário? Melhorou?"
- "Está um pouco melhor, obrigada. É, seu José, tudo tem sua hora certa de acontecer. O corpo da gente é como uma máquina; com a idade vai se desgastando. Nossos órgãos, diminuindo sua capacidade, passam a não funcionar tão bem como quando se é jovem. E, às vezes, como no caso dele, ameaça parar. Mas uma coisa é certa - no fundo não precisamos nos sentir tão velhos assim, ao contrário."

Dona Ivone e seu Mário moravam no primeiro andar com as filhas Helena e Raquel. Viviam uma vida apertada. Contavam até então com a aposentadoria dele, embora as duas filhas já trabalhassem. Com muito amor e sacrifício conseguiram ter esse apartamento. Agora, com a sua doença, as coisas se complicaram. Os remédios estavam tão caros! Ainda bem que o convênio cobria as despesas com médicos e hospital.
Pegar o batente, enfrentar horas a mais de trabalho, não era o que os amedrontava. Como seu Mário dizia; -"Enquanto tiver dois braços e duas pernas, podem contar comigo. Na hora em que me sentir inútil, morro!"
Procuravam sempre se ocupar com alguma atividade. Não concebiam uma vida parada, sem atrativos. Queriam produzir, criar algo; assim davam motivação às suas vidas.
O ser humano, segundo ele, não nasceu para se isolar, se fechar em si mesmo. Sua maior alegria reside em participar ativamente com os demais; ser reconhecido pelos outros também.

Raquel, embora gostasse dos pais, tinha horror à velhice. Detestava tudo isso, inclusive o tipo de vida que levava, sempre em sobressalto com medo de ter que se a ver com a morte do pai "de supetão", com pavor de ter que se a ver com a "dor de uma perda". Velhice, doença e morte era uma mistura explosiva capaz de implodi-la internamente. Cuidava deles por obrigação em primeiro lugar, ou melhor, os tolerava cultivando muita raiva por baixo da carcaça de cuidadora.
- "Sabe Helena, quero ir para um asilo, quando ficar velha. Essa história de dar trabalho a filho, não é comigo não!"
- "Ora Raquel, só seus filhos poderão saber se cuidar de você dará trabalho! É bem possível que isso aconteça, se continuar como é. De minha parte gosto de estar com nossos pais. Papai sempre tem algo a contar do passado, fazendo reviver uma época distante, guardada em sua memória. Mamãe tem seus trabalhos, sempre tricotando, não pára de montar enxovalzinho para bebês carentes. São diferentes desses idosos, que permanecem jogados em uma cama, esperando o fim, se sentindo já excluídos da vida, ou se colocam imóveis, absortos na frente de uma televisão, desligados de tudo que ocorre ao seu redor."

- "Pois eu penso de outra maneira. Não quero viver muito. Só Deus sabe o susto que passei com papai. Fico arrepiada só de pensar sobre isso."
- "Mas, isso faz parte da vida, Raquel. Sou sincera ao dizer que amo a vida e não tenho medo da morte. As duas andam juntas, como a noite e o dia, o calor e o frio... e acredito que todos os opostos."
- "Está me dizendo que nunca teve medo da morte? Não acredito!"
- "Há algum tempo não tão longínquo assim, me amedrontava sim ante a ideia de morrer. Aos poucos fui percebendo que minha imaginação é que contribuía para isto. Minhas fantasias soltas produziam as sensações de medo.Raquel, preste atenção! Não posso saber o que vem após a morte, com posso ter medo dela? Nunca será real qualquer pensamento nesse sentido. Qualquer que seja somente tem por base hipóteses criadas ameaçadoras dentro da cabeça da gente.
Veja bem, se penso nela como um fim, término de tudo, não tenho o que temer se tudo acaba. Aliás penso que, neste caso, as sensações desagradáveis ante esta ideia me vêm quando vivo um presente que não me agrada, onde estou desempenhando determinado papel rejeitando quem eu realmente sou. Talvez não tivesse mais tempo de me assumir, daí a causa da ansiedade.
Posso fantasiar, no entanto, sobre o medo de deixar de sentir, ou deixar de existir em um presente que me desagrade, ou no agora que estamos vivendo em que nos deparamos com um excesso de responsabilidades, com o peso de dificuldades que parecem maiores do que podemos suportar. Aparece ele aqui muito unido ao próprio desejo de morrer, ou seja, deixar de sentir."

- "Quer ir um pouco mais devagar, Helena? Não tenho sua facilidade para entender esses assuntos, ainda mais assimilar essas informações e debater sobre esse tema."
- "Pense comigo, Raquel. Se passasse a agir de forma coerente com seu pensar e sentir, ao alinhar essas forças internas, não seria uma pessoa mais inteira? Pensaria em se afastar do momento presente, em permitir que seus pensamentos vagassem em fantasias que teriam a capacidade de causar pavor e medo?"
- "Creio que focaria minha atenção e minhas forças naquilo que me desse mais satisfação!"
- "Assim se sentindo, seria mais feliz, se sentiria mais leve e mais potente internamente, não?"
- "Concordo, Helena, mas e daí?"
- "Se não carregasse o peso da ideia do tempo, a morte seria encarada mais naturalmente como parte de nossa existência. Nós limitamos nossa vida em princípio, meio e fim. Dimensionamos o próprio tempo e controlamos o tempo biológico. É invenção do homem a cronologia e o relógio, lembra?Encaixotamos o tempo. Com esta divisão do tempo, contido e compreensível e ante a criação do relógio, podemos ter controle sobre ele. E vivemos essa alucinação, lhe dando características de real!
Pois bem, quando nos colocamos, por completo, naquilo que fazemos, quando colocamos nossa alma naquilo que fazemos, a ideia do tempo some. Quantas vezes você teve a sensação, ao se recordar de algo a que realmente se dedicou, onde houve a "entrega de sua alma" nessa relação, de não ter sentido o tempo passar?"

- "Muitas, disso tenho certeza."
- "E não sentiu que, naqueles instantes, viveu mais intensamente? Lembra de ter ficado medrosa ou aflita, cansada ou com tédio, ou mesmo ansiosa para que logo esta qualidade de tempo passasse?"
- "Não! Conservo a sensação de plenitude, poderia dizer de harmonia, pela maneira como agi. Tristeza por ter passado. Na hora que passou, senti como se tivesse saído de dentro de mim mesmo. Ao tentar explicar é que tudo ficou confuso e me afastei cada vez mais da vivência que tive. O ser racional é muito complicado."
- "Entendo, Raquel. Na hora que pensamos de forma mais coerente somo pessoas unas internamente, integradas. Quando passamos a avaliar, julgar nossas ações e a dos outros, começamos a nos dividir entre o que é certo e o que errado... e passamos a pensar mais superficialmente e a agir mais desintegradamente. O próprio perdão, arrependimento, o almejar a perfeição, já implicam a não aceitação de si como se é simplesmente, sem se enquadrar em padrões já atingidos, ou por atingir. A sensação de conflito já demonstra nossa divisão interna, nossa dualidade interior, ocorrendo o mesmo desconforto quando nossa vida exterior entra em choque com a interior.
No entanto, veja, qualquer instante vivido morreu. Esses momentos não voltam mais. O que chamamos de tempo só tem um sentido tomando como referência a realidade. Vivências deixam outras sensações que medo e ansiedade. Se nos fixarmos na ideia que não retornam mais, essa é acompanhada de um sentimento de angústia pela perda, ocasionada pela comparação entre o que foi e o que restou."

- "Aqui o ser humano já se deixou embalar pela imaginação e pelo sonho. Passou a construir hipóteses sobre o que será, tentando resgatar o que poderia ter sido e não tem mais espaço de tempo para ser.O tempo se foi, fechou-se a concretizações. Não abre mais espaço para outras oportunidades! É esperar com atenção que surjam novas aberturas, novas circunstâncias e novos encaixes de situações, onde sonhos e desejos se enquadrem. Pena aquele que opta por perder o contato e a vivência com a realidade em si, por soltar o velho e obsoleto dentro de si, por não morrer a cada instante vivido, para renascer para novas experiência a cada dia. Acredito, ainda, que quanto maior for nosso sentimento de culpa, mesmo inconsciente, maior nosso medo e receio de morrer; quanto maior nossa insegurança, maior a fantasia a respeito. Quanto mais mergulhamos nas ideias e imagens fantasiosas, estamos mais distantes do real, portanto, estamos mortos para o momento presente, que permanece vivo disponível á apreensão do ser humano para ser por ele incorporado, transformado em experiência e colocado como tempo passado em nossas memórias."

- "Nunca tinha pensado assim, Helena. Sempre me achei muito segura. Preferia nem pensar nessas coisas."
- "O próprio significado da vida se tornou muito duvidoso, Raquel. Nada oferece a segurança que buscamos. Vida é dinamismo pulsante em movimento constante. Não se pode parar o tempo, nem aprisionar o espaço e as circunstâncias onde seus eventos sucessivos ocorrem. Onde buscar uma fonte de referência imutável?
As próprias relações se confundem, sob esse prisma. Se eu mesmo não sou sincero, como acreditar na sinceridade de outra pessoa? Se fujo do que sinto e me escondo de mim mesmo, talvez você faça o mesmo, não? E assim, o medo e a dúvida se alastram pela rede das interações. As pessoas se tornam mais e mais desconfiadas, e se isolam para não sofrer.
Como não gostamos de ver nossas deficiências, também não aceitamos as limitações que nos são impostas, ou que nosso corpo se deteriore. Que animal pretensioso somos, sempre nos colocando em posição de destaque, não querendo enfrentar a realidade de deixar de existir um dia, ou passar por total transformação física e mental! Esquecemos frequentemente do que se pode fazer nesse minuto mesmo, em que assim pensamos, quando ainda estamos vivos."

- "Como é que você chegou a tudo isso, Helena?"
- "De uns tempos para cá, aceito mais serenamente o conhecido e não rejeito o desconhecido. As coisas simplesmente acontecem e eu as vivencio de forma mais intensa, com resignação. Meu equilíbrio reside na vivência do aqui e agora. Procuro dosar meu foco de atenção. Evito me ocupar internamente com preocupações, com problemas que não posso abarcar ou solucionar no presente. Brinco com um 'xô,xô' e os afasto de mim. Ah, também aprendi que cada um se torna responsável por si!"
- "Você?"
- "Por favor, não me olhe com espanto. Você sabe minha ideia sobre moral. Parto da premissa de não agir com ninguém da forma que não gostaria que agissem comigo. Meu aqui e agora é diferente do de muitos jovens, que tentam se equilibrar num pé só, embora tendo dois pés. O passado e o futuro não interessam a eles. Esquecem-se que o primeiro existe em cada um de nós imutável, se pensarmos no fato em si. Muitas vezes, ele se impõe através das lembranças trazidas do baú das memórias. Pensando bem, ninguém pode ou consegue apagá-lo totalmente.Também é inegável que o presente é ocasionado por fatos sucedidos anteriormente, e impulsionado por nossa expectativas sobre o futuro, fonte dos anseios e idealizações. O passado, então, ocasiona o presente, que, por sua vez, contribui para a construção de uma trilha rumo ao futuro."

- "Percebe como tudo isso é belo?
Será, Raquel, que as pessoas não viveriam melhor se conseguissem enxergar o valor de viver o presente de uma forma que deixe rastros de mais contentamento e realização, do que de arrependimento ao passarem pela vida? Ops... quando vivos!
Quantas pessoas, como tinha dito, não se atemorizam pelo fato de serem como transeuntes pela vida? Preferem, como você citou, nem pensar a respeito. Modificar algo? Ora, temos tempo!
O passado é importante, o futuro mais ainda, mas a ação, que deveria ocorrer no presente, é lançada para não se sabe quando. Raquel, é uma mentira jogarmos sempre para frente o que podemos realizar hoje, nos apegando a essa vontade de sermos talvez eternos; nos agarrando à ideia do tempo, mas conservando-o distante do presente. Às vezes, penso no que aconteceria no mundo se fosse dado a nós, seres humanos, um último instante de vida. Que faria você?

- "Puxa, você me pegou desprevenida. Sinto-me atônita para responder. Tantas coisas passam pela minha cabeça, mas nenhuma se destaca para ser lançada nesse breve instante, como resposta a você! Nossa, Helena, quantas pessoas não estão, como eu, perdidas dentro de si mesmas?"
- "O importante é que se conscientizem disso, Raquel. Aí podem optar por assim permanecerem, ou, de alguma forma, ocasionarem uma mudança a seu ritmo de vida. Se se pode chamar esse estilo de vida um "bom viver para um homem"; tenho minhas dúvidas... Desculpe se estou sendo meio rude, mas é como penso. Gostaria que refletisse sobre tudo isso."

- "Voltando a nossos pais, a velhice deveria indicar sabedoria, se fosse bem vivida. No entanto, creio que muitos idosos se sentem tão deslocados quanto muitos adolescentes, até que se aceitem e assumam seu lugar na sociedade. Ambos, ou preferem não viver e se revoltam com o mundo que também os exclui com a chegada de suas limitações naturais, ou vivem uma vida, que não a deles, e entram em choque consigo mesmo. Não é raro, se sentirem um peso, para os parentes e para a sociedade, como todos aqueles que nadam contra as suas correntes e marolas, contra a corrente normal da própria vida, que semelhante a um rio, não interrompe, por si, o fluxo contínuo das águas, seu percurso natural."

(Término do quinto capítulo de "Ainda há tempo!")
Lúcia Thompson

                                                                                         

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