sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

1982 - capítulo I - Hermann Hesse

Encontrei velho manuscrito, datado de 1982, onde brincava com personagens, que iam adquirindo sua autonomia, conforme as cenas se desenrolavam. É um exercício imagético e catártico incrível montar cenários e facultar o contracenar de pessoas. Não é de se estranhar que deixe a descoberto aspectos pessoais, características que, muitos, nem sabiam que faziam parte de seu mundo interno.

Fiquei surpresa, nem me lembrava mais dele, quando por opção, na época (1982), abri cada capítulo, dos sete que o compunham, com frases que muito me afetaram. No capítulo I aparece a de Hermann Hesse: " Não é nos seus discursos ou nas suas ideias que se depara a grandeza dos homens, senão unicamente nos seus atos e na sua vida."; no II: "A atração sexual cria, no momento, a ilusão de união; mas, sem amor, essa união deixa os estranhos tão afastados quanto antes se achavam. Sentem sua estranheza ainda mais acentuadamente do que antes." (Erich Fromm); no IV: "É toda uma arte enganar o marido: é uma profissão retê-lo." (Simone de Beauvoir); no V: "Naquele momento, você realmente se considerava um velho. Porque se sentia derrotado pela vida." (Oriana Fallaci); no capítulo VII: "Depois de certa idade, todo homem é responsável por seu rosto." (Albert Camus).

"A campainha do despertador quebrou o silêncio convidativo ao repouso, anunciando a hora do início das atividades do dia para seu José. Suas mão tatearam o criado-mudo, abafando e pondo término ao som estridente, até certo ponto indesejável e intruso naquele momento.
Sentou-se na cama ainda meio sonolento. Procurou seus óculos, amigo inseparável de alguns anos, que muito o auxiliava. Espreguiçou-se. Agora estava realmente desperto e feliz pelo novo dia em que muita coisa aprenderia, novas experiências se uniriam às já acumuladas até então.
Tinha que se apressar um pouco, pois às seis horas da manhã mudaria o turno dos empregados, que haviam zelado pelo sossego dos moradores do pequeno edifício de sete andares.
Após se vestir, mirou-se ao espelho e gostou do simpático senhor que lhe sorria. Impecável em seu terno sempre limpo, sem nenhuma mancha ou ruga que denotasse desmazelo. De cabelos grisalhos, bem penteados, que eram seu orgulho. Alguma gordurinha a mais em seu corpo ia bem com seu ar bonachão.
Estava pronto para iniciar sua função de zelador, trabalho que muito apreciava. Sentia-se útil, mais importante, sabendo que os outros precisavam de sua ajuda e que, na maior parte das vezes merecia o elogio dos condôminos.
As críticas eram recebidas de espírito aberto, procurando melhorar no que achasse que realmente devia. Não se importava com as que não lhe tocassem bem no fundo, provocando alguma reação de sua parte. Os elogios, embora constituíssem afagos gostosos de se ouvir, não o impeliam a evoluir internamente. As críticas sim, por isso as preferia..Permaneciam em sua mente, ocasionando sensações incômodas. Essas só desapareciam, quando se aproximasse, bem perto, de algo que não aceitava em si e que gerara o desconforto. Tratava, então, de mudar para como se sentisse melhor. Nesse caso a opinião dos outros lhe era válida.
Depois de ter tomado seu café com leite, degustado o pãozinho com manteiga, trancou seu apartamento, chamando o elevador.

Preocupava-se com todos os moradores do edifício, como se constituíssem uma única família. Eram, na verdade, a "sua" família, pois ficara só, desde que sua irmã morrera há três anos. Os demais familiares eram considerados parentes, pois uma amizade maior não os unia.
Ah, dona Rita, como sua ausência era sentida! No entanto, sua presença ainda era viva e constante dentro do peito de seu José. Aí seu lugar era o mesmo. A dor da saudade se transformara em tristeza. A perda, que machucara muito no início, foi sendo aceita paulatinamente. Hoje se recordava, com muito carinho, do tempo passado junto.
Ao chegar ao andar térreo comprovou a pontualidade de sua turma. Bons rapazes! Gente simples e humilde, bons trabalhadores. Embora de pouca instrução, se esforçavam por obter um lugar melhor. Raramente faltavam ao serviço. Existia muita cooperação entre eles. Às vezes tinha que chamar a atenção de dona Amélia,. pois com seus cinco filhos, poucos recursos e sem marido, se via obrigada a acudi-los de quando em quando. Nada que não se conseguisse, com boa vontade, contornar.

Não entendia quanto problema existia nas fábricas e nas grandes empresas, relacionado a essa faixa da população a que tanto os políticos se apegavam nas eleições. Na sua maioria constituída de pessoas que possuíam boa fé, muita esperança, muitos sonhos. Deixavam-se levar pelos dirigentes que soubessem comandar, respeitando-os como seres humanos, com sentimentos e problemas semelhantes aos deles. Revoltavam-se sim, contra aqueles que, além de os humilhar, tentavam pisar em cima, esquecendo-se que a submissão humana aumenta a impotência e a insegurança no indivíduo, incentivando a hostilidade e rebeldia nas pessoas pelo fato de se tornarem mais dependentes.
Eram muito orgulhosos, lá isso eram" Mas, não se podia rotulá-los de pretensiosos e desumanos. E como se tornavam poderosos quando se uniam! Muitas vezes temera por eles, quando percebia que tentavam lutar por alguma causa justa no início, mas que perdia esse sentido de justiça, quando, em virtude de sua boa fé, se deixavam envolver dentro de um esquema semelhante ao do antigo patrão. Este fora substituído por um colega, que lutara pelo mesmo ideal do grupo, mas se deixara arrastar pelos mais espertos, tendo sua vista ofuscada pela áurea do poder, tornando-se cego ao verdadeiro objetivo a ser alcançado.

Seu José, dentro de seu grande otimismo, sonhava em chegar a ver, algum dia, o ser humano deixar de lado o enorme sentimento de insignificância e impotência, que hoje o dominava. Iria perceber seu valor, o verdadeiro sentido da liberdade, não se amedrontando ante a visão desta. Como também distinguiria claramente seu papel na sociedade, não se deixando mais explorar. Dará menor destaque a poderes a ele extrínsecos. Deixará de encontrar sentido e significado para sua vida nas opiniões e julgamentos dos outros. Cada vez mais colocará de lado as superstições e crenças, sua confiança cega na sorte e no azar.
O dinheiro deixará de ser a medida para igualar o homem. Diminuirá o atual sentimento de competição, que torna as pessoas rivais tão hostis. Voltará o sentimento de união com seus semelhantes e com o mundo, assim como o desejo de produzir, realizar em prol de um bem comum.
Tinha para si, que, se cada um conseguisse, numa pequena parcela, contribuir para uma vida melhor, dando como exemplo aos demais seu próprio modo de viver, estaria construindo uma sociedade mais feliz. Muitos se esqueciam que esta era formada por eles. Suas normas e regras surgiam a partir da necessidade de se evitar grandes tensões e atritos no convívio de um grupo.
Ora, se isto era verdadeiro, também o era a acomodação que, atualmente, se alastrava pela maioria, para permitir que pequenos grupos, atribuindo-se falsos privilégios, conseguissem concentrar o poder em suas mãos, estendendo sua autoridade aos demais que, de uma forma ou de outra, a aceitavam: ou abaixando a cabeça, ou reclamando no mesmo nível dos que passavam a combater. Em ambos, o traço característico era a violência, seja em atos ou palavras, que os geram. A violência era, nesse instante, para seu José, como um 'grito de dor' camuflado."

Assim terminava o primeiro capítulo do breve "Ainda há tempo!"

Lúcia Thompson

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