sábado, 26 de dezembro de 2015

1982 - capítulo IV - Simone de Beauvoir

" É toda uma arte enganar o marido: é uma profissão retê-lo." (Simone de Beauvoir)


Mais tranquilo, sentindo-se respirar novamente atento a seu inspirar e expirar o ar de seus pulmões, ao abrir a porta do elevador, seu José quase esbarra em doutor Moacir. Ao se deparar com ele, seu rosto se iluminou. Gostava muito do doutor Moacir e de dona Nair. Esse casal de meia idade, com três filhos e quatro netos, lhe tocava o coração. Quem diria que, logo acima de dona Carmem, tanta felicidade existia. Mas não caía do céu, não! Era, com muito amor e boa vontade, conquistada no dia a dia.

- "Olá querido! Que bom que conseguiu vir almoçar. Tudo bem no hospital? Vamos ver se adivinha o que fiz para o almoço. Dou-lhe três chances para acertar, que tal?"
O calor transmitido por Nair era contagiante. O casal já havia combinado que a cada encontro o momento era único, o aconchego do contato era renovado e a busca era que admiração pudesse ser conscientemente ampliada. Moacir sentia-se muito bem a seu lado. Tinha vontade de estar o mais possível com ela, encontrando paz e serenidade nesses momentos.
Nair, por sua vez, muito o admirava, acalentava esse afeto e procurava agradá-lo. Sentia-se segura e feliz de estarem juntos, depois de tanto tempo, numa época em que havia tanta precipitação para casar, como para descasar. Foram aos poucos aprendendo a conviver de forma pacífica com quaisquer diferenças de opinião e de temperamento. No ano que vem, completariam vinte e cinco anos de casados.

Casaram-se muito cedo, aproveitando o ímpeto da juventude. Moacir tinha então vinte e três anos, e ela vinte e um. Um anos depois já nascia o primeiro filho do casal, André, e, sucessivamente, com intervalo de mais ou menos dois anos, Márcia e Rodrigo.
Como todo relacionamento também tiveram inúmeros problemas. Buscaram, no entanto, preservar a unidade do casal, chegando sempre a um visão comum, um modo de pensar coerente aos dois, sem implicar "violentações" sobre a maneira de ser de cada um. Tinham, em primeiro plano, a importância da opinião comum quanto ao que deveria ser feito, respeitando a liberdade de cada um diante de várias escolhas. Nunca fugiram das discussões, mas aprenderam a dosar o quanto de egoísmo existiria, sempre refutando amar o outro por pensar em si e transformar diálogos em palco de luta e competição pelo poder simplesmente. Existiam conflitos inevitáveis, mas com paciência e muito afeto removíveis.

Aprenderam a "viver juntos". Nair aprendeu a "viver com" Moacir. O mesmo aconteceu com ele na parceria com ela. O combate à indiferença era constante. Procuravam estar atentos se o silêncio que se instalava entre eles era decorrente do "time" de cada individualidade, ou se era alguma dificuldade na interação do casal, não permitindo que isolamentos reacionais pudessem ocasionar espaços vazios e tediosos onde um poderia acabar por desconhecer o outro. Não permitiam que houvesse exclusões por raiva, mas inclusões por um atento cuidar da relação a dois. A relação predominaria ante personalismos.

Quando Nair anunciou a chegada do primeiro filho, Moacir sentiu dentro de si certo desapontamento, embora muita alegria. Algo iria separá-los. Sentiu-se rejeitado. Mas tanto foi o afeto dedicado a ele, que logo percebeu que os filhos possuem lugares separados num coração de mãe. O amor por ele ainda era o mesmo, como se pertencesse a "outro departamento" na área dos afetos. Passou a curtir o fato de vir a ser pai. Acompanhava, com entusiamo, a barriga que crescia e os primeiros movimentos do bebê. Tentava escutar as batidas de seu coraçãozinho.
Quando Márcia nasceu foi a vez de Nair se sentir enciumada pela atenção dele à filha. Mas também, graças à grande comunicação existente entre eles, os filhos nunca os separaram, limites eram colocados dentro de uma cumplicidade entre o casal, tornando-se, ao contrário, um ele que os unia mais ainda.

Com os anos, quando sentiam a proximidade do hábito, não se acomodavam. Procuravam "dar asas à imaginação", para afastá-lo. Já haviam combinado incentivar a sensação de estar se vendo como se fosse pela primeira vez, atentos um ao outro e disponíveis à percepção e escuta das necessidades e fantasias do parceiro. Brincavam que quem criara a expressão "amor à primeira vista", assim deveria estar se sentindo. Pelo menos uma vez por semana se obrigava a jantar juntos, dançar, se tocar com carinho, andar de mãos dadas que fosse. O importante não era sair de casa. Curtiam esse ambiente doméstico. Buscavam montar um cenário que acalentasse os contatos acima. Mesmo dentro de casa era possível a um casal "namorar".

Quantas vezes Nair não ligava para o consultório e, com voz carinhosa, perguntava: -"Querido, queria lhe fazer um convite. Quer vir jantar comigo hoje?" . Algo despertava dentro dele. Sabia que ela estava planejando alguma coisa. Deixava-se embalar pela fantasia dela. Encontrava um jeitinho de sair um pouco mais cedo do consultório, diminuindo o intervalo entre as consultas. Não raro, a caminho de casa, parava em alguma floricultura. Antes de abrir totalmente a porta, já sentia o aroma de sua comida predileta, ouvindo uma música suave na vitrola, daquelas que se encontravam entre seus discos preferidos. Uma mesa bem colocada, com flores a enfeitando e um par de castiçal com velas para serem acesas em momento propício que melhor iluminasse o brilho e o afeto, que se expandia, quando se olhassem com carinho. Como sua mulher sabia atraí-lo. Excitava-se com o brilho de um olhar, que a claridade da chama de uma vela provocava. Seria uma noite e tanto!

Amavam-se fisicamente como dois jovens, nunca chegando a manter aquele tipo de convivência biológica obrigatória com dia e hora marcados e cronometradas periodicamente. Um sempre procurou sentir o outro, percebendo as expressões e os gestos que mais agradavam ou desagradavam ao outro, agindo com grande respeito para agradar o parceiro no que lhe fosse realmente importante, e não no que achasse que lhe seria importante tendo a si mesmo como referência absoluta.

-" Temos um compromisso essa noite, amor. Quero vê-la bem bonita, está bem?"
O dia ganhava outro colorido. Nair se empolgava, como uma adolescente, querendo se embelezar para agradar ao homem que amava. Experimentava um, dois, três vestidos; até sentir-se elegante e atraente com a roupa que estava. Não deixava de se esmerar, parcimoniosamente, ao se perfumar, considerava esse aspecto afrodisíaco. Procurava ver se as coisas pedidas por ele estavam em ordem. O mistério era grande.
Quando Moacir chegava, um sorriso matreiro lhe marcava a fisionomia, mas sempre criava um clima de suspense: -"Não vou lhe contar, não! É uma surpresa. Creio que hoje a senhora terá um encontro com um amante apaixonado." E, quando menos esperava, ela se via num quarto de motel. Novas chamas se acendiam. Passavam a se descobrir novamente e  a se redescobrir na "entrega ao outro".

É estranho a ideia que passa pela cabeça de muitas pessoas, achando-se ridículas para agir desta ou daquela forma, embora tenha vontade para tal. Uma frase tornara-se frequente entre os casais amigos: -"Não, eu não. Não precisamos mais disso. Bem que gostaria, mas estou muito velho para isso." Ou então: -"Admiro vocês, mas sinto-me ridícula e envergonhada, até se meu filho nos encontra abraçados e beijando na boca."

Andando juntinhos, nas noites gostosas e calorentas, esse assunto vinha à baila entre os dois:
-"Não entendo, dizia Nair, para se amar não existe idade. Numa relação a dois não é só o ato sexual importante, mas tudo que o envolve, todo contato físico faz parte dela. Como podem se realizar totalmente aqueles a quem um simples toque de mão já nada significa? Um beijo, se presenciado, causa vergonha! Que acontece com as pessoas, Moacir? Por que a dificuldade de se entregar ao outro, a um outro a quem amem?"
-"Tudo isto foi ocasionado por uma cultura como a nossa, Nair. Existe uma valorização excessiva da beleza física, da juventude, como forma de incentivar o consumismo inclusive. As próprias pessoas e seus mundos afetivos, tornaram-se mercadorias de consumo."

-" Mas isso contribui para o afastamento entre as pessoas. Não há amor que resista a um dia a dia corriqueiro e quando se encontram despejam sobre o outro todo o lixo mental do árduo dia. As casas ficam sendo a extensão dos trabalhos e preocupações deles decorrentes. Veja Sonia e Vitor. É como se tivessem parado no tempo, as expressões apagadas, as mesmas coisas todos os dias, tudo se tornou obrigação para eles."
-"Aí é que está Nair. A nós o casamento nunca pesou como obrigação impositiva. Sempre imperou a vontade de estarmos juntos. Ora, se quando eu viesse aborrecido e cansado para casa, você ficasse matracando em meus ouvidos problemas banais, não se incomodando com meu estado, teria ânimo para chegar mais cedo? É claro que não, que retardaria minha volta. O que também não quer dizer que não gostaria de ouvi-la e saber o que a aflige. Mas até para isso é preciso que se preste atenção e tenha consideração sobre como o parceiro esteja se sentindo. O mesmo não aconteceria com você? Acredito que também não se sentisse bem do meu lado se eu ficasse reclamando de tudo, colocando a toda hora os problemas financeiros, aborrecimentos no hospital e outras chatices. O que não significa que você não saiba o que se passa, ou passou, comigo, quando tiver condições de falar, sem que esteja de cabeça esquentada, entende?"
-"Entendo Moacir. Por isso me calo e respeito às vezes que chega mal humorado. É seu momento! Sei que será passageiro, se não intervir. Como você sabe que pode contar comigo, quando quiser dividir o que o aflige, desabafar... Só aguardo! O que também não quer dizer que com meu silêncio, não esteja preocupada com o que está lhe acontecendo. E o estimo muito por agir comigo da mesma forma."

Aprenderam a exprimir seus desejos no momento certo, aceitando possíveis interdições do outro. Cultivaram a paciência de se repetir, expressando a importância desses diálogos, até de D.R.s, para si. Perceberam, com humildade, a necessidade de não persistir em um erro por simples teimosia, só para "não dar o braço a torcer". Eram parceiros no viver com qualidade um boa vida.

Foi difícil, no início, caminharem juntos. Até que passaram a entender o quanto de diferença existia na maneira de pensar masculina e feminina. Nair entendeu que seu marido, como os homens sexualmente, poderia sentir desejos ante a visão de outra mulher que lhe fosse atraente, mas sabia que sua importância para ele o tornava fiel, fiel por amor. Moacir, por sua vez, compreendeu que poucas eram as mulheres que se sentiam bem, estando com alguém em uma cama, sem nenhum laço afetivo. Ambos reconheciam que as reações tão diferentes após um ato sexual, ocorria pela própria diferença biológica, onde a sensação de saciedade dos homens, após um ato físico, era paralela à de insaciedade sentida pelas mulheres. Daí a necessidade de um fator equilibrador dessa frustração - o afeto. Essa frustração seria, inclusive originária do sonho e da fantasia a que as mulheres se apegam e que poucos homens conseguem acompanhar e aceitar.

Moacir e Nair tinham grandes afinidades em suas maneiras de sentir e pensar. Mas o respeito recíproco possibilitou que desilusões de expectativas, ante a quebra de idealizações, não os separassem. Grande erro no convívio humano decorre da pessoas esperarem muito uma da outra, sem estarem dispostas a aceitar conviver com as divergências, ou mesmo as imperfeições e limitações do outro nas interações sociais, quanto mais nas relações que envolvem graduações afetivas.

Seus filhos os admiravam e os tinham como exemplos. Rodrigo em suas opções de vida, ameaçou desestruturá-los um pouco. Custaram a respeitar seu relacionamento com Artur. No início, tentaram se rebelar, pegos de surpresa pela profundidade dessa amizade. Temiam pela felicidade do filho numa sociedade com muitos valores externos, ainda em transição, a respeito de relações homo-afetivas, e valores pessoais ainda preconceituosos, que tratam os envolvidos em relações homossexuais de forma desqualificada, agressiva e mesmo pejorativa.

Não sentiam a homossexualidade como doença, mas opção de vida. Tinham como certeza dentro de si, que a cada indivíduo é dado o direito de escolha sobre como se sentir mais feliz. Quem seriam eles para decidir sobre a felicidade do filho?
Tentaram sim, mostrar-lhe muitas das dificuldades com que teria que se confrontar. Os preconceitos enraizados em algumas pessoas não seriam fáceis de serem enfrentados. Mas as Instituições Legais permitindo casamentos entre eles e as Igrejas como a Católica já não os excomungando, ajudariam a transformar seu espaço com a inclusão social a partir de agora. Não concordavam que papéis sociais impostos dentro da sociedade, tivessem força para afastar relações afetivas entre pessoas, que reconhecem que o amor é o vínculo mantenedor da relação entre elas.

Enfatizaram, acima de tudo, seu apoio ao filho, acolhendo "por amor" suas opções de vida e, que ficasse claro a ele, "como o amavam", por ser quem é! Com isso, Moacir e Nair, reforçaram mais ainda seu vínculo como casal.

(Término do quarto capítulo de "Ainda há tempo!")
Lúcia Thompson




Nenhum comentário: