domingo, 20 de junho de 2010

Um instante de silêncio

Tocam os sinos ante a partida de José Saramago, escritor português, prêmio Nobel de Literatura em 1998. Só? Respondo essa pergunta no transcorrer desse post.

Tocam os sinos como obrigação de um ritual de despedida aos mortos. Hoje esse célebre toque a finados nos remetem ao texto de Saramago lido na cerimônia de encerramento do Forum Social Mundial de 2002, intitulado "Este Mundo da Injustiça Globalizada" e suas colocações que os "Toques a finados, pela Justiça, porque a Justiça está morta".

Como ocorre, com registro longitudinal na História, muitas idéias e contestações de grandes Homens, passam a ganhar amplitude e reconhecimento após sua morte. "Saramago, talvez sua voz agora se faça escutar com a vibração positiva e otimista que o embalou em seus ideais pacifistas e fraternos!"

Segundo suas palavras no Forum:

"Não estou em erro, não sou incapaz de somar dois a dois, então entre tantas outras discussões, necessárias e indiscutíveis, é urgente um debate mundial sobre a democracia e as causas de sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder econômico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo."

Destacava a necessidade da implantação no mundo de uma Justiça companheira dos homens:

"Uma Justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste."

"Uma Justiça que é companheira dos homens, que é condição de felicidade de espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo... Nova Justiça, distributiva e comutativa... Justiça protetora da liberdade e do direito."

Segundo ele, existe o código consignado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, porém nele raramente se fala, quando não se silencia, e cuja retidão de princípios e clareza de objetivos, contrastam com as realidades brutais do mundo atual, que investem violentamente "contra a dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos".

Procura nos tirar da "cegueira branca", idéia central de seu livro e filme "Ensaio sobre a Cegueira", de 1995, onde diferente da cegueira das trevas e da escuridão visual, somos cegos que vendo, não enxergamos o que nos cerca, interna e externamente. "É preciso cegarem-se todos, para que enxerguemos a essência de cada um."

"Se podes olhar vê. Se podes ver, repara." E lança questões para reflexões: "Será que respeitamos os valores mais básicos da sociedade?"

Continua a nos recordar que a "Democracia, invenção dos atenienses ingênuos, como governo do povo, pelo povo e para o povo."

E nos confronta com nossa realidade atual: " Podemos votar por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e, normalmente por via partidária, escolher nossos representantes no governo... A possibilidade de ação democrática acaba por aí... Não nos apercebemos que governos eleitos por nós vão se tornando meros comissários políticos do poder econômico, com a objetiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas nos açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os de certas conhecidas minorias eternamente descontentes."

O que fazer? "Não tenho mais nada que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio (para ouvir o sino tocar). Ouçamo-lo por favor" . Acordar, ver, reparar, analisar e refletir como cidadão participante e engajado nesse mundo, não como cegos visitantes que necessitam ser guiados e dirigidos por grupos que tomam posse dos governos como se fossem bens particulares.

Saramago tinha consciência do poder da Internet para divulgar idéias. Criou um blog em setembro de 2008, intitulado "O Caderno". Segundo suas palavras, "um espaço pessoal na página infinita da Internet". O site do blog é "caderno.josesaramago.org" .

Teve preocupação que suas idéias estivessem presentes, e que seus livros persistissem vivos após sua morte, daí a criação da Fundação Saramago. Tinha como certo que criações humanas não são meras articulações textuais mas "apelos à reflexão sobre presente e o futuro", daí a importância que busquem sempre a preservação dos valores humanos.

Existem vários vídeos no YouTube, que possibilitam acompanhar suas idéias, através de entrevistas dadas a vários setores midiáticos, e espero que possam esclarecer que atrás do enquadramento de pessimista e ateu comunista, depredador dos bons costumes, Saramago era um otimista esperançoso, confiante na capacidade do ser humano de lutar por comunidades e sociedades mais justas, livre dos domínios ideológicos políticos, econômicos ou religiosos.

Acreditamos que aos leitores mais sensíveis, que buscam entrar no pensamento do autor, atrás da concretude da palavra, que se embrenham na procura do significado simbólico e do sentido do contexto situacional, vai se destacar a pureza do estado de espírito desse Homem, magistral escritor e persistente lutador por uma humanidade mais livre e feliz.

Aurora Gite
postado domigo 20/06/2010
às 13:30 horas

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