domingo, 3 de fevereiro de 2013

Humano... Demasiado Humano?

Cada vez mais me convenço que um dos maiores desafios do ser humano no encontro consigo mesmo é enfrentar a tênue linha, que separa seu psíquico saudável do que é chamado loucura.

Quantos não se amedrontam com a percepção da possibilidade de atingirem um estado mental que foge totalmente a seu controle, onde o contato com a realidade é interrompido, ou fragmentado, pelas novas configurações que surgem sob o domínio exclusivo do mundo subjetivo do pensar (alucinações, delírios).

O pensar humano - torna-se um "peso demasiado humano" -  para pessoas que apresentam frágeis estruturas psíquicas, ainda sem terem encontrado seu eixo referencial central (*quem sou eu?) para se bancarem na vida, ou sem terem conseguido se libertar da gama de variáveis que as tornam dependentes, sem autonomia própria (*onde é o meu lugar para expandir meu "potencial humano" como indivíduo; *como tornar-me dono de meu espaço no social como cidadão?).

Não é fácil, ante o nosso quadro socioeconômico atual, se reestruturar sem ajuda de profissionais especializados. Muitos profissionais da área de saúde mental, preocupados com a deterioração dos vínculos familiares que não mais se constituem em forças de apoio na formação de personalidades mais estruturadas para enfrentar as adversidades da vida, buscam inovar em seus atendimentos. De forma criativa e sem custos, procuram ampliar seus atendimentos a grupos sociais mais carentes não só financeiramente, mas no que se refere a seus recursos internos para lidar com suas angústias existenciais. No entanto, profissionais, conscientes do valor e responsabilidade social de seus serviços, são em pequena parcela, e alta é a demanda da população carente desse apoio psicológico.

Por outro lado, há muitos pacientes que, após anos de terapia, buscando saída para seus questionamentos existenciais e para seu sofrimento psíquico, não encontram ressonância de profissionais, ante indagações como: "E agora, que passei a me conhecer melhor, o que faço com tudo isso?", "Fui remetida aos meandros de minha infância, vivenciei ali emoções que paralisavam algumas de minhas ações; agora observo deteriorações de muitos relacionamentos ao redor ante meu isolamento do social, como reconstruo tudo isso?"; "O mundo ao meu redor não parou de girar enquanto busquei me conhecer e procurei me encontrar com quem realmente sou, como conviver com fracassos e perdas, alguns dos quais não motivei e me vejo impotente para lidar?".

Terapeutas reducionistas não dão conta dessas respostas, visto seu objetivo ser o de possibilitar, aos que os procuram, melhor lidar com suas angústias através da aquisição do autoconhecimento, alterações cognitivas no sistema de crenças, ou mudanças comportamentais de caráter transitório.

Como bem colocou uma paciente, de forma caricatural, após todo esse processo psicoterapêutico vem os famosos chavões que equivalem a um: "Toma que o filho é seu!", "O processo de bem se posicionar em seu existir é com você!", "Como encontrar seu espaço para tornar-se você após saber quem você é, depende de você agora!", "Podemos continuar com as sessões, visando a busca de seu autoconhecimento, que se constitui em esforço contínuo do ser humano, é só marcarmos novos horários!" E continuou ela "Só que as sessões não cabiam mais em meu orçamento, o que podia eu fazer?"

Reflexões após o contato com esta paciente me levaram a rever esses dois vídeos do youtube, colocados, no dia de hoje, em meu twitter:

*** http://www.twitter.com/thompsonlm

1- "Humano, Demasiado Humano" : documentário sobre Nietzsche. Aspectos de sua vida nos permitem refletir sobre a influência de nossos familiares na formação de nossa maneira de ser (nossa personalidade), da época em que vivemos, da cultura moldando nosso caráter, das pessoas com quem fomos criados que propiciam adaptações, das circunstâncias acidentais ao nosso redor que contribuíram para sermos o que somos... sem relegar o valor das opções a nível de imposições de vida, unidas às escolhas livres que o "humano" nos faculta.

2- "Humano, Demasiado Humano" : documentário sobre Heidegger e suas escolhas pessoais, colocadas na linha do tempo de sua vida propiciando boa visualização sobre as repercussões da coerência de nossas ações com nossos ideais, e consequências quando tal não ocorre. Ainda  nos possibilita observar como somos livres na opção por escolhas, certas ou erradas, e responsáveis na construção de nossa história... somos livre até para buscar caminhos alternativos não persistindo no erro, ao perceber que a escolha foi inadequada e não nos trouxe a satisfação esperada.

Ambos reconheciam-se como potências humanas poderosas, inflexíveis na certeza de suas capacitações, e passíveis de se deixarem envolver em suas posturas insanas. Pode-se observar o perigo de alçar vôos além do humano e aquém do transcender a condição humana mundana comum, não respeitando suas fragilidades psíquicas, dificuldades no estabelecimento de limites reais e na aceitação da convivência com suas limitações pessoais (suas dependências do referencial e necessidade do reconhecimento dos outros). Ambos, cada qual a seu modo, são envolvidos pelo "Nazismo" e seus partidários na busca de agregar adeptos em sua seletividade de "raças puras" ou de "potências intelectuais" que as representassem.

Ambos alertavam para as vidas inautênticas e enfraquecidas, padronizadas e submetidas a direcionamentos outros que retiram seu "poder humano" de serem donas de si . Um dando destaque ao veneno inoculado pelos "ídolos fabricados" e falso deus inventado pelo cristianismo, que retiram do homem sua vontade de poder e capacidade de raciocinar por si. Outro destacando a manipulação da existência das pessoas, até no consumo, para um maior controle do "pensar"; o existir e o pensar são estudados e cultivados por ele na terceira fase de sua vida.

Em ambos pode-se observar o papel familiar da religião institucionalizada, e seus afastamentos pessoais da tradição e rituais católicocristãos. Os dois tiveram a percepção do aprisionamento da "liberdade de ser" e "perda da autenticidade do humano" dentro das doutrinas criadas por grupos restritos, cuja autoridade para tal foi por eles questionada e refutada.

Ambos vivenciaram o "caminhar solitário" e a "necessidade da solidão e silêncio interno", longe do burburinho atordoante das vozes superficiais do social padronizado,  para o confronto de cada ser humano com sua liberdade de agir e sua responsabilidade, pessoal e intransferível, no comando do processo para atingir o "além do humano".

Esse é o estado interno que abrange o "tornar-se" um ser humano dentro do social, o "transcender a condição humana mundana", o "criar valores internos", o "transcender os valores morais impostos culturalmente".

Acarreta satisfação prazerosa, harmonia e serenidade aqueles que conseguem controlar seu mundo psíquico e preservá-lo das tentações dos delírios e alucinações (não advindos por mecanismos bioquímicos, que demandam medicamentos para seu controle).

Aurora Gite

Obs:
Meu twitter:  http://www.twitter.com/ThompsonLM
lucia.thompson@uol.com.br

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