sábado, 23 de fevereiro de 2013

O apagar das luzes dos "Filhos do Divórcio"

Cinzas sobre os estragos dos modelos identificatórios estruturados que moldavam as personalidades que se formavam e os papéis sociais a serem seguidos. Desalento e tédio substituem, neste momento de transição, as labaredas de ódio e perseguição que marcaram antigas gerações. Este é o cenário que enfim podemos observar no século 21.

Acredito que, nesse milênio, os "filhos do divórcio", podem se livrar desse codinome maldito, embora me preocupe com suas referências identificatórias, já que o espelho da antiga tradição familiar foi estilhaçado. Vão ter que lutar por si na reconstrução do humano em si mesmo e no social, se deparando com a fragilidade de sua condição interna e com a vulnerabilidade de ver sua imagem especular fragmentada.

Em meio aos destroços do prévio enquadre da tradição familiar e social, o que se observa é a distorção da imagem do humano. Os "filhos do divórcio" vão ter que erguer seus próprios valores e deixar seus nomes impressos na "calçada da fama", pelo "sucesso na vida que escolherem trilhar" para serem reconhecidos e admirados por si primeiramente e depois pelos outros.

Vão ter que atingir os famosos patamares do "Eu sei que sou, que existo, e que tenho que tornar-me eu" Só o autoconhecimento não basta. É preciso que se tornem agentes das próprias mudanças para qualificarem valorativamente sua existência. Mais ainda, é necessário que se tornem conhecidos não só por si e para si, mas pela atuação como cidadão, inserido no coletivo de forma representativa, o que significa que é preciso também tornarem-se agentes de mudanças visando o bem estar social.

O perigo atual é caírem na tentação de escolherem se tornar um rosto a mais no anonimato do social do milênio globalizado e "internetizado", onde a fama e bajulação podem lhe dar contornos fictícios e transitórios de celebridade; onde o "quem sou eu?" ganha falso status ao depender de endereços de e-mail e do surpreendente séquito sem rosto de seguidores online.

Toque dos clarins anunciam o advento da era da liberdade responsável. Cada ser humano vai poder, se quiser, ser responsável por suas escolhas, assumir e se bancar em suas decisões. Fortalecido pelo autoconhecimento de seus limites, vai ter condições de se defender de ideologias e autoridades invasivas. Vai poder dar um basta à ação do outro de tentar subjugar, mesmo humilhar e tentar inferiorizá-lo, com as diversas formas de agressividade, do grito ameaçador ao dano físico, até a cruel violência psíquica, buscando a submissão culposa por meio de sutis chantagens emocionais.

O estrondoso grito em uníssono dos descendentes, que pertencem a esse milênio, se expande pelas ruas pouco iluminadas do social, ecoando bem dentro das pessoas, até então oprimidas com parte de sua razão desativada em sua capacidade de operar racionalmente com bom senso, e por seu pensar castrado:
- "Estou 'livre para ser livre', para expressar minha liberdade agora!  Meus pais são responsáveis pelas decisões que tomaram... não posso viver a vida deles! Ao grupo social cabe a avaliação da moral existente de acordo com princípios éticos que regem uma sociedade que almeja o status de humana ... não posso viver a vida do coletivo!"

Novo grito mais gutural denotando surpresa:
- "Sou livre! Tô acordando meu pensar agora, e me confrontando com a solidão de minha singularidade. Como fazer para mudar estilos de vida tão arraigados? Ainda não sei e tenho medo, muito medo de pensar por mim e arcar com possíveis erros de minhas decisões inadequadas. Esse é o preço da autonomia para uma vida independente, não é? O desconhecido contém uma gama enorme de riscos, que vai me obrigar a um constante autoavaliar, autocriticar e talvez reconsiderar minhas opções, mas com alegria por me sentir livre e poder atuar de acordo com a minha liberdade! Sou livre!"

Toques de clarins, agora em sons mais altos, toques com mais vigor, puxando mais da respiração mais potente, para expressar a alegria por entoar a contagiante música da liberdade. Cabeças se movimentam. Olhares se direcionam para o céu. Sensação do divino encontro com o compromisso ético? Na busca de contato com  a amplitude cósmica, agradecimento pela liberdade individual? Reconhecimento da responsabilidade sobre o universal, pela humilde sensação de pequenez ante a grandeza de um todo infinito do qual fazem parte?

Estrelas, que agora podem ser contempladas no céu, suavizam as expressões das marcas raivosas das mágoas, das amarguras guardadas no coração de uma geração, onde muitos receberam a alcunha de "filhos do divórcio", que tiveram que carregar vida a fora. Aliás, até a frieza burocrática os fazia constantemente lembrar de seu lugar na sociedade, que dizia respeitar e empunhar a bandeira dos direitos iluministas de igualdade, fraternidade e liberdade. Quanta dor pela injustiça incoerente e humilhação irracional! Por mais que buscassem explicações, nenhuma justificativa era acalentada ante a tamanha angústia que assolava o jovem e ferido coração.

Como apagar da memória as humilhações injustas de uma parte da sociedade, arrogante e vaidosa, que investia sobre os indefesos "filhos do divórcio", que até receberam esse codinome discriminatório? Os desumanos membros desse social tinham que procurar se sentir com poder e segurança atuando sobre os outros de forma autoritária, totalitária, ditadorial mesmo. Era a maneira com que forjavam dentro de si a força aparente de seus pseudo-seres humanos acolhedores das necessidades do próximo.

Chicotadas na alma deixaram sulcos profundos espalhados pelo corpo dos "filhos do divórcio", mas foi-se o tempo em que sangravam, banhando gerações futuras. O tempo cicatriza as feridas, mas não as apaga. Mesmo porque o enquadramento social não permite. O que impera ainda são os desenhos das antigas tradições a serem seguidas. Tantos lugares para o repouso de seus corpos físicos, mas nenhum onde conseguissem paz e sossego para repousar sua alma. Muitas pessoas estranhas, com poucos vínculos afetivos mais significativos, se cruzando no mesmo espaço chamado família. Foi-lhes tirado um bem precioso, a sensação de pertença, de fazer parte do grupo, logo substituída pela sensação de estranhamento... aquela não era mais a família idealizada. Como se inventar sem ideais impostos, criados pelo e para a manutenção do social vigente?

Como evitar se contaminar por idéias rancorosas e vingativas, tendo certeza de nada terem feito para sofrer tais castigos de exclusão e categorização especial, que os marcavam como gado e os obrigavam a pertencer a um estranho grupo social inferior, menosprezado e até hostilizado por boa parte do social, acéfalo e capenga, em seu pensar ético e sentir empático?

Como entender que, em nome de Deus, poucos "poderosos", que se outorgavam o status de porta-vozes de uma autoridade abstrata construída, e donos de um poder moralista, ainda se conservavam tão centralizadores na elaboração de leis inquestionáveis, mesmo se comprovando seu efeito nocivo e irracional sobre o ser humano?

Como acatar tudo, sem revolta contra a vigilância opressora sobre a adequação forçada ao seguimento de costumes irracionais e restrições a direitos humanos básicos, camuflados pelo manto fictício de tudo ocorrer para a manutenção da "raça pura religiosa" responsável pela harmonia da convivência social?

Como aceitar portas fechadas em colégios tradicionais ligados a instituições religiosas, mas movidos por preconceitos mesquinhos; ou recusas para a participação em atividades religiosas escolares por serem filhos de pais separados? Os "reis impostos" já estavam nus há décadas, mas o castigo da fogueira ainda operava implacável, e seus súditos sem culpas ou autocensuras continuavam a acender as tochas do fogo discriminador.

Existem resquícios dessas atitudes espalhadas pela sociedade do milênio, porém sem o poder de fogo destruidor da época anterior ao levante do homem como ser livre. O ser livre que se ergue no apagar das luzes dos "filhos do divórcio" busca sua liberdade dentro dos valores internos de seus princípios éticos, não mais sentindo o peso da moral dos costumes sobre suas costas, e a interferência em sua capacidade de decidir o que é melhor para si e para o coletivo..

Relato de recordações de um passado que já foi! É assim que ocorre agora a transmissão entre gerações, quando se permitem dialogar, no aqui e agora do presente. Sua comunicação também sofreu grandes perdas em seu quadro de disponibilidades de interações receptivas a um escutar ao outro e se colocar, confiante e desarmado, buscando trocas humanas afetivas.

Como conviver com essa parte da história da humanidade onde a maldade humana teve campo aberto para se expressar e reinar sobre inocentes? Os "filhos do divórcio" sofreram as repercussões pelos atos dos pais que ousaram, por coragem na luta para serem felizes, ou por negligente irresponsabilidade sem prévia avaliação das consequências a seus descendentes, enfrentar o arcabouço das normas religiosas e a masmorra da cultura moralista de uma época não tão gloriosa da história da evolução espiritual do ser humano.

Os traços delineadores do quadro dessa "época maldita" se apagam da tela, dando condições para que nova pintura ganhe espaço, novo desenho social possa surgir. É o que coube a essa geração dos "filhos do divórcio", que tiveram que conviver com o divórcio, não só dos pais mas de todas as tradições que poderiam lhes dar estabilidade e segurança para construírem sua identidade, uma maneira de ser autêntica e única, não mais extensão dos valores familiares. Muitos valores não constituem forças para suas vidas, foram assumidos por eles sem questionar se teriam efetiva validade para si.

Com o apagar das luzes sobre si, perderam a visão sobre os referenciais externos e foram jogados ao confronto com o "nada", com o vazio interno que teriam que preencher com um viver pleno de sentido, que sintam que valha a pena ser vivido por eles. São livres para criarem e conquistarem seus momentos felizes na vida; se reinventarem a cada minuto, sempre abertos a novas experiências.

Resta saber qual será o espaço que os filhos dessa geração vão ocupar no social que os cerca, sem os rótulos que os aprisionou; e como, se pudessem optar, gostariam de se tornar conhecidos e passarem para a História.

Particularmente, eu gostaria que o desejo da maioria fosse se tornar conhecida como a geração, exemplo de superação, em que cada um de seus filhos se tornou "herói para si mesmo", ao se tornar o "construtor de sua própria história de vida".

Que tal, acatam a minha sugestão ?

Aurora Gite


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