quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Esboço de Projeto sobre a dor e sua compreensão psicodinâmica

Remexendo baús, encontrei esse esboço, que compartilho por ter tido muito orgulho de ter elaborado esse protocolo de pesquisa, por volta de 2003, mas que conserva ainda seu status de atual. Talvez possa auxiliar, nesse milênio, a alguns profissionais da área de saúde mental a quebrar tabus e preconceitos.

Confiram por si e avaliem a repercussão que poderia ter tido há 10 anos!

Por sua extensão, divulgo em duas partes, sendo que "casuística e metodologia", para os que se interessarem pela linha de trabalho, estarão na próxima postagem.

" Lidar com a dor, aliviá-la ou saná-la, tem sido um desafio constante por parte de muitos profissionais da saúde. Extensa equipe transdisciplinar se agrega ao redor do paciente portador de um quadro doloroso, obrigado a conviver com angústias geradas pelas frustrações e impotência, decorrentes das frequentes limitações em seu agir. Alto investimento pessoal por parte da área médica, do paciente e de seus cuidadores, com pouco retorno e elevado ônus sócio-econômico, inclusive para os órgãos de saúde competentes, tornam-se fatores que justificam a importância e a emergência de programas voltados a minorizar os sintomas dolorosos e buscar a compreensão da psicodinâmica que envolve a manifestação da dor, sua perpetuação ou cronificação.

Os mecanismos biofisiológicos da nocicepção não são difíceis de serem detectados, bem como são facilmente catalogadas algumas estratégias de enfrentamento, ou condutas adotadas pelos pacientes ante a presença da dor. No entanto, o mesmo não ocorre ao se buscar intervir satisfatoriamente buscando alterar essa experiência emocional desprazerosa, na maioria das vezes limitante, que pode vir a se constituir em um vivência emocional cronificada e desproporcional, independente da presença ou não de danos teciduais. A complexidade desses quadros clínicos, transforma-se em grande obstáculo para a obtenção de diagnósticos precoces e consequentes prognósticos mais benéficos, justificando a liberação institucional dos pacientes.

A Fibromialgia ou Síndrome Dolorosa Muscular (SFM) corresponde a uma dessas entidades clínicas caracterizadas por uma dor muscular intensa, difusa e crônica. Os pontos dolorosos são múltiplos e de fácil apalpação em várias regiões específicas do corpo, sendo necessária a presença de, pelo menos 11, dos 18 pontos pertinentes à síndrome, fatores indicativos do grande desconforto, físico e psíquico, trazidos por esses pacientes.

A etiologia dessa patologia não decorre de inflamação tecidual, mas de disfunção do sistema nervoso central, acarretando o aumento da sensibilidade dolorosa e, portanto, a diminuição da tolerância do paciente à dor. Não há método complementar de radio-imagem ou laboratorial, que possa auxiliar no diagnóstico desses pacientes, sendo o mesmo obtido pelo 'exame clínico', realçada a importância dos 'dados coletados através de auto-relatos'.

Torna-se perceptível à área de saúde mental, a forte presença de interferências emocionais na eclosão e manutenção da dor e na exacerbação de muitos sintomas físicos, que acompanham o quadro, alterando a qualidade de vida dos pacientes e familiares. Ilustrando essa afirmação podemos citar alguns como: distúrbios do sono, parestesias, alterações gastrointestinais, síndrome da bexiga irritável, intolerância ao frio, síndrome dos pés irrequietos, disfunções cognitivas e afetivas.

Um quadro de dor mobiliza comportamentos regredidos, passivos e dependentes, contribuindo para condutas de isolamento e afastamento do convívio familiar e social. O desconforto imposto pela restrição dos movimentos e alterações de postura, bem como a raiva e a impotência a que remetem, tornam-se fatores iatrogênicos para a elevação do desequilíbrio a nível de saúde mental. Muitas vezes culminam com o afastamento do trabalho e todas as consequências que tal fato acarreta para o paciente e para a empresa, inclusive podendo chegar a desgastantes demandas trabalhistas, ocasionando novas descompensações em um campo mais amplo biopsicossocial e econômico. Mais angústias se agregam ao quadro da síndrome dolorosa, ligadas à vida prática e agora aos aspectos internos que envolvem, entre outros, a queda da valorização pessoal e da auto-estima, até pela diminuição da produtividade, a perda da autonomia e do crescimento pessoal, da independência e do controle sobre a própria vida, da vontade genuína de comunicação e participação ativa em grupos, indispensáveis para a integração no social.

Até o presente momento, no tratamento da SFM (Síndrome Dolorosa Muscular), têm sido enfatizadas medidas ligadas à dimensão orgânica e psíquica: uso de fármacos e terapias fisioterápicas, estratégias de enfrentamento ligadas à área cognitivo-comportamental, técnicas acupunturistas comprovadamente eficazes em sua função analgésica... A união da acupuntura à medicina tradicional, inclusive para tratamento de várias disfunções, data de período recente. O mesmo ocorre com programas educativos direcionados a esses respectivos pacientes.

Segundo Yeng, Kasiyama e Teixeira (2001, p.105): "Em geral esta abordagem terapêutica (acima citada) procura abranger todos os fatores referidos pelo doente com fibromialgia: aumento da analgesia central e periférica, melhora do sono, redução dos distúrbios do humor e a melhora da circulação sanguínea em músculos e tecidos periféricos".

Yeng (2003) em sua tese de doutorado, descreve os benefícios advindos dos programas educativos com pacientes portadores de SFM, enfatizando os resultados encorajadores obtidos com a Escola de Fibromialgia, programa desenvolvido no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Amaral (2001, p.61-63), realça que, para a compreensão psicodinâmica da dor, haveria necessidade de se englobar "mais do que técnicas cognitivas e sensitivas". Segundo a mesma, o paciente deveria ser compreendido dentro de sua 'pluridimensionabilidade' física, mental e espiritual, sendo que as técnicas adotadas deveriam abarcar seu agir (condutas adotadas e atitudes internas), seu pensar (a nível de cognição e crenças ou informações preconceituosas disfuncionais), seu sentir (a nível de sua afetividade, ou de seu conteúdo 'ideoafetivo' e suas representações imaginárias), e seu intuir (a nível de sua espiritualidade responsável pela fé, esperança e vontade para poder transcender o momento existencial vivenciado).

Amaral observa que "Questionamentos existenciais, tão comuns em quadros de dor crônica, remetem a intervenções no eixo transcendental, na dimensão espiritual, onde o resgate do sentido da vida e da importância do viver, impelem o profissional a buscar novos instrumentos técnicos, e a trabalhar cada vez mais a qualidade das relações internas e externas desse pacientes."

Muitos autores como Lemgruber (...) relatam a qualidade corretiva advinda do campo vincular relacional, conferindo ao profissional da saúde o papel de agente terapêutico, na interação que denomina de "experiência emocional corretiva".

Portnoi (2001, p.176) refere as vantagens de atendimentos grupais no tratamento da dor crônica, citando a oportunidade de convivência com indivíduos em situação semelhante, a facilitação da produção de referenciais sociais capazes de atenuar sentimentos de isolamento e alienação, a possibilidade de compartilhar temas de interesses comuns... destacando a intervenção terapêutica voltada para os comportamentos que ocorrem no contexto social do grupo, não desprezando o interesse para a instituição, pois este tipo de atendimento representa um recurso mais econômico.

Segundo Tabone (1987) a Psicologia Transpessoal surgiu nos Estados Unidos em 1966, como um desdobramento da Psicologia Humanista. Considera a importância dos estados alterados de consciência, partindo do pressuposto de que a mente é uma espécie de campo que ultrapassa de longe o cérebro encontrando-se integrada a uma mente (fonte de energia) universal.

Pelegrini (apud Tabone, 1987) refere-se à Psicologia Transpessoal ( além da pessoa e da personalidade) como "filha direta do enfoque holístico da realidade, partindo de uma concepção sistêmica da vida e do mundo, baseada na consciência do estado de inter-relação e interdependência essencial de todos os fenômenos: físicos, biológicos, psicológicos, sociais, culturais e espirituais".

Dentro da perspectiva da psicoterapia transpessoal é reconhecido o potencial humano para experimentar uma ampla gama de estados alterados de consciência. "Tem como foco central a consciência, especialmente a auto-reflexiva e a vivência no aqui e agora. Utiliza-se de ensinamentos e práticas da Filosofia Oriental, unindo-os aos recursos próprios das psicoterapias em geral, visando o alívio dos sintomas e as mudanças de comportamento. Busca a integração da ciência ocidental à sabedoria oriental, para desenvolver uma nova ciência e um novo modo de experimentar o viver." (Tabone, 1987, p.106).

O presente trabalho foi estruturado sob esses referenciais. Parte da existência de níveis diferenciados de consciência, que possibilitam o "insight" cognitivo, tão importante quanto o "insight" afetivo. Considera a compreensão de ambos de grande relevância, tanto no que se refere a sua faixa de atuação, como, evolutivamente, para a construção da personalidade e a formação da identidade (senso de individualidade). Destaca, no entanto, que essa passagem de um "não-ser" para um "Ser", que caracteriza a existência humana do "Eu Pessoal", marca o acesso a novo trabalho interno, voltado para a essência humana com seus valores morais autônomos e auto-imperativos, dentro de grandezas éticas, forças (ou energias) específicas do "Self". Nesse sentido, as intervenções psicológicas voltam-se para o lado saudável dos pacientes, para o fortalecimento da força vital, que mobiliza o ser humano para o crescimento e evolução interna, para a "transpessoalidade", para o alcance de experiências místicas ou espirituais, de integração, plenitude e harmonia."


Aurora Gite

* Casuística e Metodologia serão abordadas na próxima postagem.

Nenhum comentário: