domingo, 22 de junho de 2014

Não mais conflito de gerações, agora é abismo entre gerações!

Não há mais como negar a grande separação existente entre a geração que se forma no milênio e as que a precederam. O mundo de valores convencionais e das tradições, como rede de referências a serem seguidas, se desmontou. O abismo é enorme com a nova geração, cria da internet e do mundo globalizado, cujos parâmetros são muitas vezes incompreensíveis a quem os precede, e que carregam como referência o respeito autoritário gerado pela comunicação hierárquica. Hoje essas relações verticais instauram mais caos ao já inexistente diálogo, pelas cobranças e exigências padronizadas por modelos obsoletos, se pensarmos no que é válido para os dias atuais.

Comunicações verticais nas redes globalizadas que demandam por relações horizontais, não funcionam mais... Se é que funcionaram algum dia!
Valeram para a construção de gerações que conseguem vivenciar a plenitude feliz, do que hoje se intitula, um estilo de vida qualificada?
Não acredito pois, de seus sobreviventes, poucos entendem o destino que assumiram e não se sentem tão autorrealizados, livres e felizes. Nem sabem ao certo o que os conceitos liberdade e felicidade significam para eles. E, se buscarem refletir sobre eles em sua vida, são tomados de enorme angústia para além da existência.

Se viveram aprisionados nas rédeas dos preconceitos hierárquicos e das crenças inquestionáveis, como poderiam abrir espaço não só no social, mas principalmente dentro de si para almejar pensar e lutar por um estilo de vida pessoal,  alicerçado no bem estar social, na espontânea união familiar, no prazer de estar junto pelo convívio harmonioso, no cuidar do outro "por amor"; no aconchego sentido ao poder usufruir dessa qualidade na convivência com os que os cercam, movidos unicamente por uma "responsabilidade intrínseca autêntica" gerada por uma "ética-mor libertária", sem erros e acertos, culpas ou remorsos?

* Como não se sentirem amedrontados, inseguros e sem saber o que fazer com os filhos?
* Como ousarem agir ante vínculos mais significativos e amadurecidos, sem se acovardarem por se sentirem incapazes de lidar com as novas situações?
* Como se confrontarem com a estranheza dos comportamentos que vão exigir mudanças em seu modo de agir, se foram preparados para condutas rígidas e previstas, realizadas com facilidade?
* Como atuar com a nova geração que não mais aceita respostas fechadas, ou monólogos inflexíveis de donos da verdade, onde e os diálogos são dificeis de ocorrerem?

É visível que as relações, que envolvem gerações antecessoras, advindas do outro milênio , destoam totalmente das interações emergentes do século 21. É difícil, para os que fizeram parte delas, romper os efeitos e restaurar as sequelas decorrentes da educação repressiva a que foram submetidas. Viveram sob a égide de comandos paternais disciplinadores em excesso ou negligentes em demasia. Esses vínculos disfuncionais opressivos a que foram sujeitos, opressivos e repressivos onde por ser mãe ou pai outorgavam-se direitos sobre a vida e o próprio pensar dos filhos, não encontram mais espaço na rede afetiva horizontal. Mesmo instituídos por várias justificativas racionalizadas, não camuflam mais neste milênio o eco desconfortável da autoridade "que sabe mais", onde o falsete no "fiz por amor" exclui a resignação passiva ante qualquer ação superprotetora.

A mensagem "deixe de pensar", pois penso por você já que tenho mais experiência, ou "você é incapaz de pensar o melhor para você" então deixe que eu sei o que é melhor para você - são as mensagens por trás de frases como:
"- Faça, porque eu estou mandando! Sou sua mãe ( ou seu pai) e exijo que ..."
"- Por que não quer me ouvir? Tenho mais experiência que você."
"- Antigamente os mais velhos eram mais respeitados e melhor cuidados pelos filhos."
"- Não sei onde foi que eu errei na sua educação."
"- Você tem que me obedecer!"
"- Você me deve respeito e consideração!"
"- Você precisa... você deve... você me deve... você tem que..."

Não cabem mais numa sociedade participativa, solidária nas dificuldades e prazeres, compromissada por estar envolvida com a ordem e o progresso genuínos não corrompidos por interesses de pequenos grupos. Os papéis de liderança em uma relação não conferem mais o "status de poder sobre outro ser humano". O elo de comprometimento pessoal passou ao espaço afetivo conquistado dentro do vínculo interpessoal, cuja força amorosa precisa ser renovada constantemente, para que possa influenciar na vontade de crescer, evoluir e progredir, pilares para a produtividade individual e coletiva.

Ante tudo isso vale uma reflexão sobre as funções dos papéis envoltos nas interações básicas para o desenvolvimento humano: o que é ser pai? o que é ser mãe? o que é ser filho? o que é uma família? Essas funções sofreram profundas transformações ainda não assimiladas por muitos educadores não só familiares, mas de várias áreas sociais, aumentando o abismo entre as gerações.

É importante pontuar o abismo linguístico: tanto pelo surgimento de novos conceitos, neologismos alguns de difícil compreensão, como pelo acúmulo de informações, ante a rapidez com que se atropelam e se ultrapassam, sem tempo para serem incorporados aos códigos existentes e se tornarem conhecimentos úteis a serem aplicados no cotidiano de cada um.

Jorge Forbes (psicanalista) e Luc Ferry (filósofo) foram muito felizes, a meu ver, em suas reflexões sobre as transformações do século 21 e no perfil que traçaram sobre a geração que não demanda mais um "Você me entende, você me compreende?" mas busca nas interações saber "Tá ligado? Tá atento a mim e de que forma está sendo afetado pelo que eu digo?"

Forbes enfatiza a saída de uma sociedade padronizada com seus laços sociais verticais:verticalidade do pai, verticalidade do chefe, verticalidade da pátria na sociedade civil. sustentada de um lado pelo ser disciplinado e do outro pela rebeldia. A entrada na sociedade horizontal não tem um padrão como modelo, mas uma multiplicidade de comportamentos. Os conceitos antigos não dão mais conta de facultar a compreensão de sua dinâmica, muito menos encontrar, nesse período de transição, parâmetros que possibilitem estabelecer os valores sob os quais se erguerão os pilares das novas gerações.

Atualmente , segundo ele, não se pode dizer que os pais foram disciplinadores, nem suficientes, nem em excesso. Não adianta balizarmos nossas atuações focando os sonhos de um mundo anterior. É preciso que os educadores "percebam que cada criança, cada pessoa, vai ter que inventar a sua forma de ser, e que não é um inventar para ser qualquer coisa, é um inventar responsável". Continua Forbes, "eu diria que são as duas palavras do momento, invenção e responsabilidade, você tem que inventar e se responsabilizar por isso desde cedo na vida e o tempo inteiro; não há mais possibilidade de você fazer uma relação dependente, onde a responsabilidade é do outro. Com isso, a mudança na educação é muito grande. Como conseguir isso em meio a imensa crise na Educação como um todo? Como reconhecer padrões morais maiores e possibilitar ao educando diferenciar o que é consequente do que não é consequente?

A previsão de Forbes é ainda pessimista, nesse sentido. A seu ver, "nós não estamos preparados nesse novo laço social para dar um acolhimento à globalização". A isso acrescento que, sem dúvida, será muito custosa nossa adaptação e convivência harmônica, principalmente nesse período de passagem entre o mundo vertical com as certezas das claras referências, onde o outro e as tradições apontavam os caminhos a serem seguidos, para o mundo horizontal onde o ser humano é livre para decidir e se vê confrontado com várias alternativas para escolher, mas encontra-se mais vulnerável pela insegurança, indecisão e incerteza das circunstâncias que o cercam.

Embora tenha claro que, observando com a perspectiva de ontem, não se tenha mais a possibilidade real de uma avaliação da análise histórica do que ocorre no hoje, muito menos pode-se almejar o design do futuro ousando empreender visões prospectivas sobre as probabilidades, que poderão ocorrer no amanhã.

 Algumas inquietações são constantes entre os pensadores atuais. As perguntas que não querem calar, e inquietam a muitos, são:
* Como lidar com circunstâncias tão mutáveis, tão maleáveis, tão voláteis, que requerem constantes reorganizações eficientes e eficazes, em espaços de tempo tão rápidos pois logo suas estruturas se tornam novamente obsoletas para conter os acelerados avanços sociais e a superficialidade dos 'vínculos internetizados' facilmente deletados?
* Como lidar com o impacto da existência real de um abismo entre gerações?
* Como ainda resistir às mudanças, não desviando o foco de intervenções, continuando sob a perspectiva vertical de conflito de gerações, buscando culpados por erros na educação de pais e filhos, particularmente?"

Segundo Ferry, para dar conta dessas angústias, a pedagogia e a nova filosofia do milênio estariam voltadas à uma "Revolução por Amor", atreladas à emergência de um "novo humanismo, que não é o de Voltaire ou de Kant; do Iluminismo, que era o humanismo da Razão, do Direito do Homem ... Estamos no Humanismo do Amor, é o amor que dá sentido às nossas vidas... Uma nova História começa a ser escrita, sob uma espiritualidade laica, não atrelada a instituições, mas a um fonte criativa e inovadora advinda do interior espiritual e ético de cada ser humano.

Eis algumas de suas reflexões que mobilizaram suas propostas de nova pedagogia:
* "Não se pode ter o mundo de consumo desenfreado, para que as empresas ganhem e tenham lucro, e as crianças sejam bem criadas. Essa é a grande contradição do mundo atual e da educação".
* "Redes sociais são novidades, uma grande revolução. Facebook é como uma praça pública".
* "É a banalização das amizades? Eu desconfio desse falso calor humano".
* "A mim importa mais a luta em prol dos valores humanos".
* "A Internet é sensacional, porque a imprensa tradicional está aprisionada pelo poder político? Não é verdade! A Internet é muito mais o mundo do rumor, das intrigas, do boato - tudo escondido atrás do anonimato, sem correr riscos".
* "Para mim, a Internet é grande liberdade e grande horror. Não é possível ser ingênuo em relação a isso".

A meu ver, no esboço das novas pedagogias ante o mundo globalizado se uniram a Ortega y Gasset (1883-1955)- jornalista, docente e filósofo- com sua pedagogia vital e sua postura perante a existência , tão bem expressa em sua frase célebre : Eu sou "eu mais as circunstâncias" que me cercam. De acordo com esse pensador, "essa vida que nos é dada, nos é dada vazia, e o homem tem que ir preenchendo-a, ocupando-a".

Existir implica assumir a vida enquanto tarefa que envolvem escolhas, opções pela vida, que se constituem em possibilidades de "criar a sua própria história".
Como não citar, outra famosa frase de Gasset, como ativista político e palestrista, que também foi vida à fora: "Debaixo de toda vida contemporânea se encontra latente uma injustiça"?
E recordar o exemplo de sua historia de vida, que não deixou de o mobilizar para novas lutas visando transformações sociais em prol da coletividade: "O destino não consiste naquilo que temos vontade de fazer, mas se reconhece e mostra seu claro e rigoroso perfil na consciência de ter que fazer o que não está na nossa vontade".

Seu propósito pedagógico envolve uma concepção dinâmica do mundo e da vida humana dando primazia à razão vital. Criticava a formação dos professores porque ela estaria orientada para encaixar os alunos numa cultura rígida e previamente sistematizada. Dizia que "a escola tradicional educa para o ontem e não com vistas ao futuro, do mesmo modo que oferece um preparo individual, mas não para a vida em sociedade. Isso porque não leva em conta que cada aluno se articula, por uma rede de relações, as comunidades cada vez mais amplas".

Gasset propõe a existência de um "esforço pedagógico para evitar a rebelião das massas". O homem-massa gassetiano não se trata de uma classe, mas de uma forma de viver peculiar, como "homem esvaziado da própria história".
O homem, para esse pensador, passa a alcançar a dignidade do "homem-nobre" ao se lançar na existência e partilhar com os outros de um determinado contexto histórico... no contato com os outros é que vai elaborar o sentido de sua própria existência. Sendo assim, "o homem não tem outro remédio, senão fazer alguma coisa para manter-se na existência".

A Educação vira um instrumento para que cada um possa conscientizar-se de sua circunstância, relacionar-se com ela e superá-la.
Realça Gasset: "Se não a salvo, não me salvo eu".
Como não ter isso em mente, ante tantas dificuldade de superação para a integração no novo continuum do milênio?

Existem vários vídeos no Canal YouTube das palestras de Forbes e Ferry ministradas no programa Café Filosófico da TVCultura. Livros de Ortega Y Gasset como "Rebelião das Massas" e "El estudio sobre el amor" podem ser encontrados na Internet para download gratuitos, inclusive.

É grande minha admiração por profissionais, pensadores e escritores, que buscaram inovar com suas ideias, valorizaram sua obra, e se preocuparam em compartilhá-la com o mundo, através da criação de respectivas Fundações que carregam, em sua maioria, seus nomes. Sendo assim, vale uma visita à Fundação Ortega y Gasset.

Aurora Gite

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