terça-feira, 9 de junho de 2015

Lacan, Forbes e Gikovate

Jacques Lacan (1901-1981) é um autor de linguagem complexa, onde um emaranhado de ideias se chocam como as partículas quânticas assim o fazem no "Acelerador de Partículas" e propiciam a descoberta de novos meandros no mundo psíquico. Sua obra que contém a argúcia de suas perspectivas não possibilita fácil leitura compreensiva. Muitos, como eu, por vezes se utilizam dos olhos e ouvidos de outros leitores e estudiosos de seus "Seminários", para que lhe sirvam de lanternas clareando aos leigos, como nós, os confusos conceitos lacanianos e o encadeamento de seu raciocínio lógico.

Sem dúvida, Lacan em sua releitura da obra de Freud, abre o leque de novas perspectivas sobre os registros de suas descobertas. Mas, a meu ver, o que me foi fascinante, foi perceber o próprio Lacan, não mais encoberto pela genialidade de Freud, mas expondo a originalidade de seu próprio pensar ao esboçar a "Clínica do Real" ou "Segunda Clínica de Lacan", no final de sua vida. Aqui encontro extasiada a abrangência das ideias de Lacan sobre o que ocorre no psiquismo humano que implicam em novas perspectivas sobre a condição humana e novas formas de atuar clínicamente com os pacientes.

Segundo Cunha (in Psicanálise, a Clínica do Real, 2014. Jorge Forbes (Ed), cap.11, p.177): "Conhecido como 'o analista do significante', viveu pelo menos dois grandes períodos, bastante distintos, em sua relação com este. O primeiro, desdobramento da psicanálise freudiana, é o encaminhamento da escuta do paciente para a associação livre. É uma forma de lidar com o significante remetendo-o a um 'sentido a mais'. O trabalho analítico convida aquele que fala a dar atenção a um significante 'x' e a se lançar mais sobre aquela cena. O segundo modo utilizado por Lacan é o oposto. Trata-se de pegar um significante e retirá-lo do fluxo frasal. Em vez de convidar o paciente para interpretá-lo, agregando a ele mais sentidos, o analista o faz ressoar, busca gerar um curto-circuito para que ele toque diretamente o corpo sem passar pela compreensão racional."

Riolfi, no cap.10 (p.172) do mesmo livro, esclarece: "No Seminário 23 (2007) ministrado entre 1975 e 1976, Lacan enfatiza a palavra 'ressoar'. Ele o faz opondo 'sintoma' com 'sinthoma'. Se o primeiro é uma escrita, pode ser decifrado. O segundo, por sua vez, indica um modo singular da relação entre o sujeito e seu modo singular de satisfação e, por isso, permanece opaco, não passível de apreensão pela via do simbólico. Dizendo de outro modo, esvaziada da carga semântica, a palavra 'ressoa'... O analista, separando a palavra do discurso corrente atrás do qual se escondia, ...ao perceber a inconsistência do Outro, libera a pessoa do sofrimento gerado pela autoimposição de atender suas expectativas... O analisando não consegue pensar em alternativas para lidar nem com suas expectativas, nem com o seu desejo... [Como foi o caso de uma paciente que...] projetando seus altos ideais em seus semelhantes, sofria de culpa, transmudando-a em uma suposta rejeição alheia."

Continua Riolfi (p.175) "...uma palavra nomeia, mas não recobre os modos de uma pessoa viver... a mudança da relação da pessoa com a palavra diminui a dependência do imaginário na unidade corporal; mostra a necessidade de encontrar alternativas para o reconhecimento simbólico e, por esse motivo, proporciona a abertura para a surpresa do encontro... O analista tenta evitar que seu paciente se esconda dos desafios de inventar uma vida qualificada para si mesmo, aceitando que sua realidade subjetiva seja expressa por palavras." Aqui vale ser colocada a diferença entre a 'qualidade de vida', padronizada pela cultura atual para o alcance do bem viver coletivo, de uma 'vida qualificada' que se destaca pela sua singularidade.

O Real lacaniano não tem a ver com a 'realidade concreta', com o que se exibe a um social, buscando reconhecimento coletivo (ou não). O Real lacaniano tem a ver com o corte do outro com o Outro, do imaginário ao simbólico. O encontro com o Real (Segunda Clínica de Lacan) é a passagem ao registro da Responsabilidade. O símbolo tem que alcançar o Real, segundo Macedo (cap.6, p. 94) abandonando o que 'revestiu a significação' de algo. "A pessoa na análise quer comprar um saber maior sobre si mesma; vai para a análise 'querendo' se conhecer melhor... não é isso que vai ocorrer numa análise. Ela vai pagar um valor 'x' e não vai receber isso, o 'conhecer-se melhor'...A pessoa vai descobrir que está pagando por uma coisa que é da ordem do impossível... Ela quer encontrar um nome para isso e que o Outro a reconheça, com isso irá livrar-se da 'culpa', que é um 'elemento de expectativa' (culpa e dívida na língua alemã advém da mesma palavra ...)."

Na Segunda Clínica, Clínica do Real, Lacan muda sua forma de atuar com o paciente. Busca fazer com que o paciente se implique com o que está lhe ocorrendo e que seja responsável por seu 'mudar', ao perceber que o reconhecimento que o paciente almeja é o de seu Outro interno, seu inconsciente responsável.

Forbes questiona o 'mudar' em seu livro "Você quer o que deseja?" (2003) e Gikovate também o faz em "Mudar: Caminhos para a Transformação Verdadeira"(2015).

O psiquiatra Flávio Gikovate destaca, de seu livro 'Mudar: Caminhos para a Transformação Verdadeira', a frase: "A vaidade se alimenta do exibicionismo e do impacto que isso provoca nos outros. A autoestima depende do juízo que fazemos de nós mesmos."

Jorge Forbes, em seu livro "Inconsciente e Responsabilidade: Psicanálise do Século XXI (2012), : " ressalta [...] O inconsciente do qual vamos tratar é aquele que leva o ser falante a responsabilizar-se pela invenção de seu estilo singular de usufruir de seu corpo e de sua vida... No século XXI, o psicanalista que acredita no inconsciente irresponsável não trata o sintoma e não cura. É urgente considerar a responsabilidade pelo que é inconsciente... Também a clínica psicanalítica atravessa um novo momento, [...]"

"Freud mantinha um 'não saber' no cerne de suas interpretações...Diz ele, em seu texto 'Análise Terminável e Interminável' ( 1937ª/1975,p.256) que a resistência aparece, impedindo que qualquer mudança ocorra". Segundo Forbes, "Podemos, com Lacan, afirmar que visamos à "responsabilidade sobre o não saber" e não sobre o saber... Cabe a cada um colocar-se no mundo com a singularidade de seu desejo... Não basta render o desejo aos desejos dos outros, mas saber o que fazer com o seu desejo." (p.14)

Novamente cito Gikovate e seu livro "A Liberdade Possível" (2006, 2ª ed.), em que, como na maioria de seus livros, busca "fazer o leitor se voltar para dentro de si mesmo e refletir sobre temas para se conhecer melhor..."
" Cada um de nós deverá buscar encontrar por si mesmo seus caminhos, suas soluções para os problemas da existência - levando em conta suas propriedades psíquicas - suas aspirações materiais e intelectuais, sua capacidade de fazer concessões ao sistema social e econômico em que vive, e assim por diante. Ao nos conhecermos melhor, ganharemos força para pensarmos mais livremente acerca de nossa existência. " (p. 269)
"O autoconhecimento é o melhor instrumento para nos fortalecer e nos conduzir ao destino que pretendemos... ao nos tornarmos mais independentes do julgamento dos outros, conquistamos a liberdade... e podemos contribuir com a construção de uma sociedade mais justa."

Agora é articular o que nos é legado por esses "três pensadores Lacan-Forbes-Gikovate" sobre a condição humana, cujos conhecimentos - embasados por anos de vasta clínica e contínua autoanálise das próprias dinâmicas psíquicas - nos deixam registrados através de seus escritos.

Aurora Gite




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