domingo, 31 de maio de 2015

A Psicologia Aplicada do Milênio

Interessante observar as configurações dos saberes que vão se delineando ante as transformações sentidas nesse novo milênio.

Disciplinas reducionistas sobre a condição humana estão se abrindo para agregar em seu bojo análises que incluem uma multiplicidade de perspectivas (saudades de Hannah Arendt, mas chegamos lá!).

Profissionais, de diversas áreas sobre a saúde mental, passaram a adotar posturas mais ecléticas, se permitindo usar interpretações compreensivas de várias escolas de pensamento sem tanto priorizar algumas de renome como a Psicanálise (que não deixa de continuar a ter seu valor), sem excluir com a arrogância de alguns pomposos psicanalistas que nada mais precisam conhecer e com a soberba de outros que não se dão ao trabalho de buscar saber o que novas teorias e recursos psicoterápicos podem oferecer ao quadro clínico, observado em seus pacientes (o principal é enquadrá-los nas molduras estruturais freudianas, a partir daí os procedimentos analista-paciente já estavam modulados, restando enquadrar o analista).

Muitos, que se aventuram a trilhar o caminho freudiano do autoconhecimento, permitindo-se inclusive conhecer recursos psicoterapêuticos de escolas divergentes (e esqueciam que seu objeto de estudo era o mesmo ser humano), e evoluir rumo ao processo de individuação junguiano mantendo contato com a função transcendente por Jung descrita com clareza, olharam ao redor e se espantaram com a dificuldade de lidar com os aspectos descobertos dentro de si. Tudo isso sou eu, mas como lidar com tudo isto nessa época de minha vida? O que fazer com quem eu sou?

O contato com muitas dessas vivências angustiantes de pessoas competentes me facultou constatar a falta de um espaço interno, o "holding" (acolhimento) -kleiniano e winnicottiano - aberto após boa internalização psíquica das funções maternas e paternas (nada a ver com a incorporação de figuras da mãe e pai biológicos). O como bem lidar com as descobertas sobre si mesmo pelo processo de autoconhecimento - que se estende pela vida a fora - depende desse espaço de acolhimento interno, condição indispensável para que uma boa autoestima se consolide; para o equilíbrio de pontos fracos e fortes, e para o bem viver uma vida boa que impulsione o processo contínuo da singular evolução de sua psique. E como é preciso nos dias atuais cheios de carência e pressões ter bem vivenciado os papéis de filhos, filhas, pais e mães para girar a contento a roda das gerações!

Acredito que o foco atual caia na adoção de uma Psicologia Aplicada, inclusive como parte de Programas Educacionais (curricular, por que não?) visando a discriminação de funções operacionais psíquicas eficientes na era digital, além do adestramento educacional para se atingir um desempenho adequado a uma inclusão aceitável nos papéis sociais... mas esse é tema para outra postagem.

Só adianto que a harmonia da convivência social vai depender não só de condições para que se estabeleça o respeito efetivo às diferenças entre as pessoas, mas também, e principalmente, do aprendizado e da eficácia da aplicação, na vida de relação, das funções de "automaternagem"(aceitação amorosa e empática) e "autopaternagem" (observância de limites e respeito às leis) -decorrentes da discriminação dos valores espontâneos próprios da essência de cada um, daqueles obrigatórios estabelecidos por regras e ordens morais impostas pelos papéis, muitas vezes conflitantes, que delimitam o lugar de cada um na sociedade, e o padrão a seguir que indica o que cada um deve fazer para se sentir feliz (?).

Eis como penso que venha a se constituir um "atendimento na era digital"- "batepapo terapêutico numa rede social?". Transcrevo com anuência dos envolvidos (uma psicóloga, supervisionada por mim, e sua filha - sérios problemas financeiros familiares) um caso que bem serve como exemplo do que digo acima:

" Terça 16:26 - Ok mãe, agradeço qualquer ajuda dada! E, se não puder mais ajudar, agradeço por tudo que fez tbm kk
  Terça 22:57 - Oi mãe, tudo bem?? Não se assuste por eu não ter ido. Mas agora é o ... que tá resfriado kk... não tem febre... , mas preferi prevenir
  Terça 22:58 - Oi filha, estranhei mesmo... achei q tinha piorado do quadro gripal... amanhã cedo reunião com a escrevente... tô juntando os documentos para levar e imprimindo boletos dos pagamentos de seu pai atrasados na Prefeitura... vendi ações ontem... agora tenho o dinheiro para o 71... o importante é q estou cobrindo tudo... nem acredito! seu pai liberado dos processos iptus da casa... e sua irmã vai ter o teto fixo. Meus netos não vão +ficar pulando de galho em galho, sem ter um teto deles desde bebês... vixe!
  Terça 23:00 - Nossa mãe, muito orgulho de vc
  Terça 23:00 - Nossa filha, eu tb tenho muito orgulho de mim nesse sentido..
  Terça 23:01 - Mas tenho muito orgulho de vc tbm, por pensar nos netos antes de vc própria... fico muito feliz por meus sobrinhos... acho que tenho que buscar minha filha na facu e depois nanar... amanhã ou depois estou por aí... bjsss boa noite com a consciência supertranquila... vc merece... seu travesseiro bem leve, vc vai ver...

Quarta 23:51 - Mamãe, meu orgulho, minha vida... Acho que vou aproveitar esses dois dias e tentar dar um jeito aqui... volto ao trabalho segunda... saudades de vc love muito... me sinto tão feliz por vc, espero que sinta o mesmo...bjssssss
~~~~depois de 6 horas ~~~~~~~~~~~~~~~~

Quinta (madrugada) - Meu Deus, mãe, hj me pego em muitos questionamentos... tenho 43 anos e de quem é a culpa pelas minhas frustrações? É claro que já bebi um pouco a mais, para poder soltar esse choro que me aperta, que me sufoca... e a pergunta que não cala dentro de mim... de quem é a culpa? Existe uma culpa ou é tudo ilusório? Meu pai, será?... meu pai que tampa o sol com a peneira de seu próprio fracasso e ainda assim tentando ser o mártir da família, como o pai dele, apesar das traições e machismo tentava ser, e minha avó assim o permitia...?
                               - Vc mãe, que sempre protegeu a figura do pai e de repente joga sobre a gente um monte de verdades ocultas, e talvez já sabidas por nós, mas preservada por vc, sabe (por que?) ... pelo marido... meu marido entrou de gaiato no navio kk ... achando que podia suprir a falta de um pai, ou que eu aceitasse as coisas como uma mãe... acho que diante de tudo a culpa menor seja dele, embora seja culpa... e o que dizer das irmãs?... a mais velha, querendo fazer o papel de mãe com a caçula (eu), mas tão perdida como qualquer outra - como alguém pode tentar compreender os outros se nem a si próprio entende ???... -, a segunda como culpar, por que?... se sempre tentou achar seu caminho em toda a história, demonstrando até fisicamente, em hospitais e pronto-socorros, com nenhum diagnóstico plausível, pra tanta carga emocional q depois explodiu... tudo junto, sem saber como reagir... terminando casamento e relacionamentos de uma carga emocional enorme, agora Graças a Deus se encontrando e relaxadamente podendo viver a vida que era pra ter vivido aos 26 anos. E o que falar da terceira ... ???... simplesmente nada... não a conheço realmente... mas talvez seja a mais certa, vivendo longe e preservada de tudo, tudo???? ... sua própria família?... se ela não tiver os apoios dos filhos, é claro que do marido não vai ter... mas sempre nós, irmãs, estaremos lá, pra qualquer coisa... mas e eu...
                              - Mas e eu... com depressão profunda, o marido tenta ajudar, mas nem ele entende o que se passa... uma filha tenta ajudar, até briga... a outra é indiferente, só cobra, quer dizer, não entende... o menor ainda, é melhor nem citar. Meu Deus, o que fazer ??? ... perco toda minha luta até hj, luta interna sozinha, desde os meus 8 anos... entrego os pontos e me decepciono mais uma vez, sabendo que não sou capaz de resolver tudo sozinha?
                               - Admito que bebi um pouco a mais e estou escrevendo um monte de asneiras??? -
                               - E aí mãe? ... ou deixo pra lá, rezo pra Deus me ajudar mais uma vez e acordo como se não houvesse nada errado comigo... Me aconselha mãe, o que eu faço,???... Minha vida parece uma tristeza sem fim - amo meu marido e meus filhos, é claro, mas acho que não me amo, sinto dó de mim, não tenho vontade de levantar da cama, mas sinto vontade de beijar meus filhos e acariciar meus filhos e ficar abraçada a meu marido, mas sei que nenhum deles pode entender minha carência...
                             - Lembro e sinto falta quando, de vez em quando, vc abria a porta pra eu deitar com vc... a segurança era tão boa... mas quando vc não abria e eu dormia no corredor era tão medonho. Meu Deus, mãe, me AJUDE, o que acontece comigo? ... as vezes sou tão forte, as vezes não sou nada... aí vc vai falar precisa de terapia... não, pq simplesmente nunca acreditei em terapeutas, psiquiatras talvez...mas vou me deixar dopar, enquanto tenho 3 filhos pra criar e que dependem muito de mim?
                             - Sabe, mãe, conversei muito com a mais velha ... quando o irmão (agora com 5) fizer 10 anos, talvez eu me interne e se ela não tomar responsabilidades até lá ou precisar de uma tutora kkk... além do pai ser responsável... claro... pq ele ama os 3 filhos acima de tudo, os 3... mas, se ela não criar jeito até lá, mando ele pra madrinha dele... as duas são maiores e ficam cuidando do pai... Nossa, mãe, como estou triste... que engraçado, não é falta de amor... meu marido e meus filhos me amam eu sei... mas não sei o que é isso... vem lá do fundo...
                          - Uma vez perguntei a vc se me culpava por não ter sido menino ... vc disse que não, lembra???... mas meu pai disse que ele não, mas vc ficou triste por eu ter sido menina... que engraçado, mãe, me sinto perdida aos 43 anos... me sinto cada vez mais vazia... a medida que meus filhos crescem eu não sei mais quem sou... queria poder engravidar agora, é tão supremo... adorooo... criar uma vida dentro de mim, me faz tão bem... sou tão completa quando estou grávida kkk ... sou até completa com dois de meus filhos, um é tão individualista, como o pai...
                        - É claro que bebi um pouco a mais, se não teria ido dormir e não teria falado nada disso, mas mais cedo ou mais tarde isso ía surgir... Mãe, por favor, quero voltar pro seu colo e dormir na sua cama... não sou ninguém sem vc... se eu pudesse voltar atrás, casaria com o mesmo homem e teria os mesmos filhos, mas mudaria quem eu sou... é isso que eu não entendo... sou tão satisfeita com tudo que tenho... mas infeliz comigo ao mesmo tempo... talvez só esperando a morte pra me dar outra opção de mim...
                       - Mãe fala comigo, já tá na hora de vc acordar... mãe por favor fala comigo... parece quando eu era pequena e pedia pra vc abrir a porta pra eu deita com vc... mãe posso não ter sido menino, mas só vc me dá segurança... mãe abre a porta deixa eu deita com vc... por favor mãe... eu tenho medo... afff o que tá acontecendo? ... mãe, vou ficar qui no corredor, abre a porta pra mim... eu não tenho culpa... mãe acorda, abre a porta pra mim... o corredor é tão frio... mãe quero dormir com vc, não me deixe aqui sozinha... MÃE MÃE SOU ADULTA AGORA, MAS TÃO SOZINHA... mãe mãe, mãe... eu não tenho culpa... mãe desculpe... mãe fala comigo... mãe mãe... por favor... to tão triste... será que se eu fosse um menino vc e meu pai teriam ficado junto? ... mãe fala comigo, mãe to sozinha, pode falar... será que essa culpa interior que levo comigo é isso?... se eu tivesse sido menino vcs não tinham se separado? ... mãe respondeeeeee...
                        - O dia vai clarear, vcs vão acordar... minha bebedeira vai passar... mas tudo que escrevi tá aí... Mãe quero ser filha, me deixe dormir com vc... mãe por favor eu não tenho culpa de ser menina, me acolhe por favor... eu não quero ter responsabilidade... quero ser sua filha... apesar de querer ter um menino... abre a porta mãe deixa eu deitar com vc... sem hr ne compromisso pra acordar... mãe abre a porta... é muito frio aqui... mãe tó sózinha... por favor tá frio... mãe não me deixe aqui no corredor... mamãezinha eu te amo abre a porta... mãe abre a porta por favor... quero ficar com vc... mãe o corredor é frio... abre a porta... mãe acorda... mãe... mãe... "

Resposta 1 dia após, quando foi lida a mensagem pela mãe (psicóloga)

" - Filha... tava caindo na depressão há tempos, mas agora é sério. Acredito que precise da dupla psiquiatra e psicóloga. Sem medicamento não consegue sair dessa crise. De meu lado, como te disse outro dia 'To de braços abertos, mas com tantas limitações... por estar fazendo parte desse seu cenário de dor  e sofrimento, sem poder ser de ajuda efetiva.' Ajuda financeira nada representa nesse quadro depressivo, pois acredito envolver aspectos orgânicos também.

Estou muito preocupada agora, sofrida e grata por ter me permitido acompanhar sua descida depressiva. É de uma dor intensa, fundo do poço mesmo. Só posso reforçar que estou por aqui, reforçando sua proteção nessa descida infernal para dentro de si mesmo, da parte insana dentro de cada um nós. O importante é que se agarre a seu lado saudável e procure, nas pequenas coisas ao seu redor, resgatar do que você é capaz... fortalecer esse lado, se prendendo à realidade externa, não à realidade interna desestruturante, nesse momento depressivo, de sua força.

Estou aqui, filha, estou por perto... pela falta de minha presença não tenha medo... e acredito na sua força interna atuando novamente com a parte química de seu organismo equilibrada por medicamentos apropriados ao quadro depressivo. Estou perto, como estive quando não podia enxergar após o acidente de carro, correndo o risco de permanecer na escuridão da cegueira, se o coágulo não fosse incorporado pelo seu organismo, não se dissolvesse... lembra?

Estou perto... se prenda ao real à sua volta quando vier essa angústia toda...
Sinta o meu amor e aconchego...
Preencha sua mente com minha imagem de mãe, de braços abertos para te acolher e proteger até aliviar a angústia... ela é passageira, mas a dor é infernal... nesses momentos o importante é tirar o foco mental dela, senão como sereia ela nos puxa para sua profundeza e a dor rasga o peito da gente mesmo.

Não contando com remédios para aliviar o quadro, vai ter que fazer esse "parto interno" e resgatar seu lado psíquico saudável do lado sombrio que, no momento depressivo, nos remete ao mar de dúvidas sobre quem somos, com cobranças e acusações nos desqualificando, nos jogando na cara um quadro irreal de menos valia... nada valemos em meio ao fracasso sentido nos picos da depressão... e de nada valem palavras outras otimistas tentando levantar nosso ânimo. Nada nos tira da areia movediça da angústia que consome, a não ser uma aliança com a própria angústia depressiva, buscar estabelecer um diálogo e tentar descobrir e compreender o que tenta nos dizer, onde a pressão atual se acumulou... aí podemos tentar alterar o quadro.

Tô aqui para te dar força e te acompanhar... até a possibilidade de mais um profissional da área da psiquiatria e da psicologia se agregar a nós. Você toma fluoxetina, segundo disse, prescrita pela endócrino, cuja dose você mesma aumentou para dois comprimidos diários... e não aceita psicoterapia. O uso e dosagem desses medicamentos tem que ser controlados em consultas periódicas a um psiquiatra, até estabilizar o quadro. Sendo inadequados pioram o quadro dos pacientes, ainda mais se tiver seu potencial alterado com o uso contínuo e excessivo de álcool.

Poucas pessoas conseguem acompanhar a dinâmica (movimento) da energia psíquica como você faz, e têm facilidade para descrevê-la de forma clara. Após a crise, lendo e refletindo já tem algumas pistas de onde começar a mudar. O álcool só ajuda a tornar tudo nebuloso e amortecido por um tempo... não é o caminho, aliás é o seu pior aliado nesse momento, pois o sofrimento interno passando seus efeitos, fantasmas infantis de culpas que nos assolam e fantasias mobilizadas por ilusões retornam com maior força. Precisa de terapia, filha, para elaborar, incorporar e dissolver tudo isso que machuca ainda dentro de você ... e como, quando da época do acidente de carro... estou por perto e de braços abertos para lhe dar abrigo quando precisar... e estiver disponível internamente para acolher a menininha que você foi, que dormia no frio do corredor... essa é você mesma que pode dar acolhimento agora... é a sua criança interna pedindo colo de sua maternagem interna..."

RE - Resposta da filha ao ler esse retorno da mãe...

"- Oi mãe. Estou triste. Muito triste e nem sei pq, mas ..."
No dia seguinte: "Que engraçado, mãe, hj estou bem, muito bem... aff parece que estou sempre numa montanha russa..."

Prefiro encerrar por aqui por falta de palavras, não saberia o lugar delas... mas acredito em grandes transformações nos aparatos das psicoterapias, vínculos terapêuticos e "settings"... Já podemos constatar, por um lado, quedas de teorias que envolvem o psiquismo e o apressar do apagar do crepúsculo de ídolos fabricados ... e por outro lado, o nascer de novas formas de atendimento (como as online), e esplendorosas auroras compreensivas no campo da psique (alma).
Aurora Gite

P.S.: Andrea faleceu em 12 de julho de 2015, por volta das 9 horas da manhã de um domingo. Marido jogando futebol, seus 3 filhos aboletados em sua cama. Forte dor de cabeça, desmaio, infarto fulminante. Seus filhos apoiaram sua cabeça, enquanto seus sinais vitais estavam definhando.

Como ouvi de sua mãe: "Como não agradecer o tapete vermelho que estenderam para receber a energia de minha filha. Só posso ter gratidão, em 23 de março de 1972, despertaram a centelha que a fez nascer e a colocaram sob meus cuidados. Da mesma forma, em 12 de julho de 2015, interromperam sua vida a meu lado. Sinto muita tristeza, mas muita tranquilidade interna pois demos nosso melhor uma à outra. Vivo persiste a qualidade de nosso vínculo amoroso (sem culpas a resgatar) me dando força pela minha vida à fora."



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