domingo, 7 de agosto de 2011

Gerações perdem o "olhar da ternura"?

Outro dia folheando a revista Psique me deparo com uma crônica de Rubem Alves, que logo me despertou o interesse. Como sempre faço, procurei saber quem era: escritor, educador e psicanalista. Depois busquei ler outras crônicas do autor, para verificar se o impacto se repetia em mim como leitora. Senti o mesmo prazer, o mesmo gozo ante a observação de uma sincronicidade de idéias. Senti meu coração alegre, ao me ver comovida por uma sensação de felicidade, ante a constatação de sua grandiosa simplicidade poética, sua facilidade de expressá-la e sua coragem de se expor.

Esses são os encontrões significativos da vida. Sincronicidade de idéias e vivências aproximando duas pessoas físicamente distantes e estranhas. Duas mentes que se entrelaçam no mundo abstrato e invisível do pensamento, na metamorfose do momento pelo dinamismo da energia emitida por um escritor e captada por um leitor, aberto à leitura e assimilação da mensagem expressa em palavras. Ops! Não sou uma mera leitora, busco o mundo de significações atrás desses símbolos gráficos e estabelecer uma vinculação afetiva, com quem escreve, pelo sentido oculto pelas representações.

A primeira crônica que li desse autor me fez escrever esse tweet:
"A troca de vivências com significados semelhantes é um dos fatores que traz proximidade e aconchego nas interações humanas".

Alves abordava a errônea expectativa que avós e pais depositam em ser compreendidos, esquecendo que novas gerações farão recortes, leituras e interpretações diferentes das deles. Por mais que recebam educação familiar semelhante, o desenvolvimento de seu potencial inato depende das interações com os grupos sociais e das aprendizagens históricas advindas da cultura e época vivida.

Ah, mal-estar da civilização! Quanta barreira, enjaulando a espontaneidade e autenticidade!
Ah, atual avanço tecnológico e rapidez na velocidade das informações, afastando ainda mais as gerações e dificultando a inserção de pais e avós no mundo digital e robotizado dos jovens!
Ah, como está cada vez mais difícil o encontro da sensibilidade do poeta, da coragem do herói para saber se expressar e ser reconhecido, correndo o risco de ousar se expor num mundo que lhe é adverso, como império da racionalidade padronizada de "logísticas estrategistas"!

E, de repente, surge um desconhecido em suas crônicas, que nos diz ao ouvido como num sussurro, assim preferimos escutar suas palavras, para que o vento não as leve no mundo descartável de hoje:

"Vou falar mal do telefone celular. Faz tempo, comprei um, daqueles pesadões, hoje elefantes se comparados aos mais modernos, pequenos beija-flores que se seguram delicadamente com o indicador e o polegar. Sinto-me humilhado pela comparação. (...) O meu, neste momento em que escrevo, não sei onde está. Também não adianta. Está sempre desligado. Acho que não quero ser encontrado. Psicanalista, tenho o costume de ficar interpretando os objetos. (...) O simples ato de atender ao pequeno aparelho pode ser, na visão psicanalista, a expressão que a pessoa faz do seu próprio poder"... muitas se colocando desrespeitosamente "no centro de sua bolha narcísica" ao atender e conversar em meio a palestras, por exemplo.

Os valores e limites racionais entre as gerações estão cada vez mais caóticos. Está cada vez mais difícil de se encontrar um sentido humano na linguagem expressa pelo social atual, com o aumento da violência e a banalização da vida, com o mérito atribuído à competitividade não digna e à submissão destrutiva do outro para abrir um espaço nessa "selva de pedra".

E, de repente, um psicanalista que se diz sensível, a ler fascinado metáforas, que envolvem ternura e "tanta alegria, tanta saudade, uma eternidade inteira num grão de areia", as transformando em crônicas:

"O amor dos dois surgira na adolescência.(...) Aconteceu com a jovem o que seus pais sugeriram: ela se casou. E ele também se casou (...) Quando ele tinha 76 anos ficou viúvo. Quando ela tinha 76 anos e ele 79, ela ficou viúva.(...) Ela não resistiu. Foi à sua procura. Encontraram-se. Resolveram se casar. Os filhos protestaram. Os filhos, todos os filhos, não suportam a ideia de que os velhos também amem. (...) Viveram um ano de amor intenso que provocou metamorfoses: ele se descobriu poeta, começou a escrever poesia."

Acham estranho ou bizarro? Talvez esse juízo surja nos que Alves chama de "analfabetos no olhar". Ele relembra Nietzsche que dizia que a "primeira tarefa da educação é ensinar a ver". Na crônica "A Arte de Viajar" escreve: "Quem sabe ver está sempre viajando, mesmo que não saía de casa. (...) Não é necessário escolher o destino certo, desde que se saiba apreciar o momento."

É se permitir sentir a "pureza singular da ternura" que, segundo Alves, flerta entre as dores do amor e a ardência sexual da paixão. O amor começa quando colocamos uma metáfora poética no rosto do amado ( da mulher amada)... quando observamos olhos, que nos fitam e dizem: "Como é bom que você existe..." Não há tédio, ou egoísmo depressivo, que resista a esse chamado, se não houver clausura voluntária no egocentrismo.

Cito outra crônica de Rubem Alves intitulada "A Ternura". Que pena que essa geração de interações digitais, marcadas pela distância interpessoal e mascarada pelo biombo da tela de um computador, nem saiba o que é cativar.

Termino com a resposta de Rubem Alves sobre o que é cativar, que cita uma de minhas obras favoritas "O Pequeno Príncipe" de Saint Exupéry ( e, para quem não leu ainda, indico A Arte de Amar, de Erich Fromm):

A raposa pediu que o Pequeno Príncipe a cativasse.
"- O que é cativar?" perguntou o Pequeno Príncipe.
" - Cativar é assim", explicou a raposa. "Eu me assento lá longe e você se assenta aqui. Eu olho para você e você olha para mim. No dia seguinte nos assentamos mais perto. Eu olho para você e você olha para mim. Até que nos assentamos juntos. Se você me cativar eu pensarei em você, conhecerei o ruído dos seus passos e sairei da minha toca quando você chegar..."
Aconteceu então que o Pequeno Príncipe cativou a raposa. O tempo passou e chegou um dia em que ele disse à raposa:
"- Preciso ir..."
A raposa disse: " - Vou chorar..."
" - Não é culpa minha. Eu não queria cativar você. E agora você vai chorar... O que é que ganhou com isso?"
" - Ganhei os campos de trigo", disse a raposa.
Antes os campos de trigo não comoviam a raposa. Agora, como são dourados como os cabelos do Pequeno Príncipe ganharam um significado.
"- ... quando o vento bater nos campos de trigo eu me lembrarei de você e sorrirei".
O rosto do Pequeno Príncipe estava gravado no trigal. Mas isso só o apaixonado vê." (...)

E assim encerra Alves: "É o olhar do apaixonado que torna o outro belo. Porque não vemos o que vemos; vemos o que somos. Uma mulher é bela quando nos vemos belos ao olhar nos seus olhos."

Com tristeza constatamos que, cada vez mais, essa geração perde essa grandeza do encontro da ternura e da beleza desse olhar terno, que nos contagia e ajuda a pacificar nossos conflitos e domesticar nossas intolerâncias.

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