domingo, 25 de maio de 2014

"Ela", ou "Her" se preferirem!

Afinal tive a oportunidade de assistir ao filme "Her" (2013). Recebe no Brasil o nome de "Ela" (tradução literal), e em Portugal é chamado de "Uma História de Amor". Vale conferir qual seria o mais adequado!

Ao ler sobre a produção (escrito,dirigido e produzido por Spike Jonze), a escolha do elenco e as dificuldades com o desenvolvimento do filme (via Wikipedia), além da sinopse desse "filme estadunidense" (Warner Bros.) atraiu minha atenção a singularidade inventiva do "script" e a caracterização no gênero comédia dramática, ficção científica e romance . Não é sempre que nos deparamos com articulações originais dentro de um roteiro intrigante.

Como negar que me causou grande impacto "como" o diretor (Spike Jonze) manipulou as cenas "ampliando o efeito" das ações mais paradas dentro de um desenrolar lento e cenografia menos ofuscante, e "como procurou" dar maior ênfase às mensagens transmitidas pelos atores: ou afetando as maneiras como podem "tocar a quem as assiste", jogando camisas com tons quentes e cores estimulantes, amarelas ou vermelhas, sobre o corpo bem talhado de Theodore, ou agregando até um fundo vermelho na tela do computador, cor que mais acrescia calor às entonações de voz de Samantha.

Procuro excluir os coadjuvantes, pois pouco me afetaram. Realço os papéis desempenhados por  Joaquin Phoenix ("Theodore") como ator principal em sua performance fisionômica e gestual, contracenando, não se espantem, com uma voz, a voz de Scarlett Johansson (sistema operacional - escolhido por Theodore como feminino - que se autodenomina "Samantha").

Não tendo assistido ao filme e se tiveram sua curiosidade despertada, lendo a sinopse (Wikipedia) vão observar que a história, além de "explorar a relação entre o homem contemporâneo e a tecnologia", faz um recorte do estado depressivo de um escritor solitário ainda em processo de elaboração de uma separação conjugal e já tendo que enfrentar novo luto ante a assinatura do divórcio. Com ela urgia a liberação de um espaço interno até então preenchido com a história de vida do casal, onde um representou - ou ainda representa - parte viva, de cada um, no outro.

A vivência dos momentos vividos juntos não passaram a fazer parte de lembranças, soltas e livres, para serem recordadas fazendo parte de um passado distante, mas guardam características de vivências longínquas ainda vivificadas, interferindo nas ações presentes pela mumificação dos vínculos afetivos. Não acredito na expressão "enterrar defuntos", querendo significar "pessoas que passam a nos ser totalmente indiferentes, que morrem dentro de nós, que a história vivida em comum seja simplesmente apagada sem deixar nenhuma marca na memória".

Nas separações conjugais - nesses encontros de forças pessoais - são partes nossas que necessitam ser alteradas com ou sem a presença do outro. Significam o resgate de nossas forças individuais, que foram depositadas no parceiro, dando significado ao vínculo e sentido à relação estabelecida. Sem a separação virtual do que é nosso e do que é do parceiro, fica difícil desenergizar a potência do vínculo das parcerias, impedindo que nos afetem emocionalmente, para que decisões racionais possam ter peso eficiente, efetivo e eficaz.

Reparem as circunstâncias que envolvem o adeus de Samantha e a mudança no comportamento de Theodore, o pareamento com a assinatura do divórcio e a interrupção do encadeamento de imagens afetivas das cenas da vida a dois. "É difícil se constatar em um casal, como o crescimento de um, sem que o outro evolua por seu lado, implica no distanciamento da parceria". A quebra do canal de comunicação, entre os envolvidos, implica no aumento da solidão de cada um. A perda da energia no elo afetivo - onde cada um é afetado pelo encontro de forças ativas no outro, mantenedor do encanto, da atração e da integridade da união pacífica e harmoniosa entre eles - torna-se visível pelas brigas constantes por motivos por vezes irrelevantes. "A expectativa é que o outro se torne aquilo que ele não é" torna-se o indicador do rompimento interno da ligação afetiva amorosa.

Minhas leituras sobre a vida, principalmente depois de ler Espinosa, e de agregar, por considerar pertinente, algumas ideias desse filósofo a minhas vivências diárias, recaem sobre o trânsito constante de nosso "pensar" entre seus três gêneros de conhecimento. Sendo assim, o fenômeno amoroso torna-se passível de ser lido e compreendido sob a perspectiva de cada um desses conhecimentos, dependendo do grau de elevação de cada indivíduo (salto quântico a meu ver):

*1- conhecimentos obtidos pela imaginação, que correspondem a nossa ilusões e fantasias, ideias inadequadas pois contém sempre as marcas e significações da consciência;
*2- os obtidos através da razão, que fazem parte das noções de entendimento comuns, ideias adequadas que passam por todos os processos das articulações lógicas;
*3- conhecimentos que nos elevam eticamente, pertencentes ao campo da ciência intuitiva, perceptível pela escuta, através da intuição, da sensação plena da serena alegria da alma , e da expansão gratificante da espontaneidade rica de um viver genuíno, criativo e inovador.

Espinosa considera que se deve sempre "pensar o Inconsciente como um campo de forças, de devires e de produção" e "não como campo de significações, de fantasmas, de terrores, de superstições e tolices". Sua leitura não se volta a essas interpretações, mas à qualidade das intensidades das forças que vão atuar dentro de cada um de nós.

Para esse filósofo, a Natureza (ou Deus, ou energia, ou campo de forças) e as relações humanas são encontros de forças, representando energias em intensidades diferentes. Sendo assim, alianças e parcerias, que nos agreguem valor e expandam nossa potência no viver, devem ser estimuladas; e devem ser rejeitados ou abandonados, os vínculos que destruam nosso potencial integrativo e diminuam nossa força interior, ou seja, a intensidade da energia interna mobilizada pela alma ou pelo querer espontâneo do ser humano.

Nesse sentido, lembranças são "pensamentos vivos, energias latentes pulsantes na vida mental" de quem teve real afetividade amorosa; "ganham vida própria na manutenção do vínculo", e na vontade de mudá-lo, para que diminua seu potencial de atuação em nosso psiquismo, se estiverem nos afetando negativamente em detrimento do patrimônio psíquico que impulsiona nossa vontade de evoluir como ser humano. O "pensar" pode trilhar livremente pelos três gêneros de conhecimento espinosistas. E é esse movimento livre do pensar que vai caracterizar a liberdade a ser alcançada pelo ser humano emocionalmente amadurecido.

Vale registrar mais algumas frases do filme como: -"Nenhum de nós é a pessoa de um minuto atrás.";-"Como isso pode afetar você?";-"Eu não sou como você, mas isso não significa que vou te amar menos." A cada interação com os humanos, a máquina, ou o sistema operacional, aumentava sua inteligência com novas sinapses artificiais. -"Deixei-me ver como você queria!"; -"Os sistemas operacionais estão indo, parto com eles... não sou a mesma, não posso mais ler livros simplesmente, ou colocar ordem em sua agenda...sempre vou levar um pedaço de você".

Como não associar com a "arte da entrega amorosa" e evitar críticas do primeiro e segundo gêneros espinosistas de conhecimento, que envolvem questionamentos sobre "aberrações humanas ou formas aceitáveis de loucura"?
Como não assimilar alguns diálogos com mensagens educativas sobre relações de força entre encontros, que propiciam crescimento, criação e invenção, novas energias e expansão de potencial próprio?
Como não sentir o fortalecimento de vínculos afetivos no respeito às individualidades, e a manutenção de elos amorosos na tolerância às diferenças?
Como não perceber a importância da renovação do vínculo a cada minuto, dentro de cada um: pela aceitação das diferenças, desvelamento (entrega) contínuo ao outro e curiosidade respeitosa agregadora de mais saber sobre o outro?
Como não enfatizar essas pistas, para que os dois sigam a mesma trilha no viver a vida, entendido no sentido espinosista de forma ativa sempre inovadora?
Como viver o amor de forma plena, sem precisar para lhe dar valor, atribuir o peso da significação dada ao pensar sobre ele?
Como buscar simplesmente sentir?

"Como?"

Transcrevo mais alguns diálogos do filme, entre Theodore e Samantha. Ela: - "Compus uma peça de piano!". Ele -"Posso ouvir?" e ao começar a música, ambos fechando os olhos; -"Eu posso ouvi-la dentro de mim!"...-"Juntos podemos alcançar o nosso momento". Deixo a cada um que assistir ao filme, a avaliação da qualidade da relação orgástica a partir da "entrega simultânea à sensação prazerosa". Não deixa de ser uma forma de autoconhecimento do próprio potencial erótico.

É isso! Esse é o terceiro gênero de conhecimento, que implica "sentir dentro de si" e "captar intuitivamente" o amor e outros fenômenos psíquicos internos, acompanhando o movimento (dinamismo) de forças dentro de nós. É procurar sentir e traduzir, inclusive, a energia (informação) dos demais sentidos humanos, perceptíveis atualmente ainda em sua maior parte, somente usando o que nos chega pelo "mundo fora de nós". É sentir o "mundo dentro de nós", tendo por referência esse jogo de forças internos e, com isso, permitir a expressão da autêntica essência se manifestando dentro da existência.

Mas a minha curiosidade foi mais além do que buscar assimilar as mensagens emitidas através do filme, queria conhecer "de onde tinha vindo a inspiração de Jonze para criar" em torno da ideia central, buscava seguir sua habilidade como diretor para desenvolver a trama ao redor desse núcleo e articular a sequência de cenas, cativando minha atenção até o final.
                   
Eis que, na minha frente, a vida afetiva atual do mundo virtual, ganhava contornos físicos visíveis e se entrelaçava com o mundo real, possibilitando maior vislumbre da dinâmica que envolve o fenômeno amoroso e os vínculos virtuais. "A nós espectadores resta nos entregarmos" não só ao nosso mundo fantasmático ou imaginário (colocando nossas imagens mentais em ação, contracenando dentro de nós com as ideias, imagens e experiências de nosso mundo real), mas observarmos como o mundo virtual, ao ser por nós incorporado (ou seja, nos afetando e alterando nosso mundo psíquico), se transforma em realidade, que pode comandar nossos pensamentos, sentimentos e ações.

O filme retrata a sensibilidade afetiva de uma real relação amorosa, deixando exposta nossa capacidade de intuir "a intensidade do prazer da entrega", prazer que, quando autêntico, se expande dentro do ser humano que habita em nós, embalando o tesão erótico e o êxtase de um afeto, pela maneira plena como nos toca.

A intuição (3º gênero de conhecimento espinosista) nos permite desativar os comandos do mundo consciente (1º  gênero)da busca de significações compreensíveis e do mundo racional (2º gênero) das justificativas, associações lógicas e explicações inteligíveis, para possibilitar o emergir de nossa essência, de quem somos realmente, de nosso potencial de forças.

Para Espinosa - experienciem a veracidade do que esse filósofo afirma acompanhando o que ocorre dentro de vocês - a forma de lidar com a "liberdade de nossos pensamentos" é que faculta a possibilidade de "nos entregarmos com serenidade" ao encontro amoroso, sem receio ou desconfiança, sem medo de perdas antecipadas, sem ameaças de catástrofes ou desgraças fantasiosas. "O pensamento é que tem que ser livre dentro de nós".

Para atingir esse estado interno, é preciso muito domínio sobre as forças internas para fortalecer a vontade (determinação) e nossa disciplina (esforço) para conseguir direcioná-los para um querer aproveitar o momento de serenidade e plenitude, sem contaminá-lo com temores de momentos de perdas, inevitáveis por nós seres humanos viventes; ou com exaustivos controles virtuais buscando enjaular, através de comparações com o que foi ou acabou não sendo, com o que poderia ter sido ou ainda poderá ser...

Momentos de busca por encontros que possibilitem "entregas amorosas e trocas humanas" que nos afetem no mundo real, não somente no universo virtual, tendem a ocupar seu lugar, quando as pessoas "ousam se entregar a si mesmo"; tenham a coragem de se confrontar consigo mesmo; consigam a humildade interna para se aceitarem como são;  convivam pacificamente com as mágoas e amarguras das adversidades que lhes ocorrem;  "se arrisquem de peito aberto a outras experiências afetivas".

Acredito que ao atingirem esse patamar interno, não haverá espaço para interações prazerosas com personagens criados por sistemas operacionais. O mundo artificial das relações com máquinas, surge mais como um recurso temporário visando um autoconhecimento e um aprendizado para ultrapassar o degrau da estranheza e desencontro consigo mesmo. A etapa a seguir consiste em trilhar o rumo do "ser livre", com mais ousadia e coragem, tendo por meta estabelecer, no campo social, interações afetivas prazerosas com pessoas de carne e osso, deixando de lado "objetos transicionais winnicottianos", ou adentrando ao "campo das alucinações, mais e mais se afastando dos limites de um psiquismo saudável".

Agora é se confrontarem com o desenlace do filme e refletirem sobre a relação do homem contemporâneo com a máquina robotizada, com o perigo dos robôs humanóides, que ultrapassam o efeito "Samantha" em nossas vidas!

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