quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Para onde foi minha paciente durante essa sessão?




















Pacientes passam por nosso consultório e deixam marcas inesquecíveis, como foi o caso dessa paciente em seus 23 anos na época,  sofrendo com quadros constantes de dor aguda (ATM). Percebendo sua capacidade criativa (figuras 1 e 2) e sua disponibilidade para expressar através de desenhos seu estado mental sempre deixava por perto materiais como papel, lápis preto e borracha, lápis coloridos em vários tons. Rica fonte para compreensão de sua dinâmica, não vou me prender à análise dos detalhes das representações pictóricas, pois essa postagem tem por objetivo outro foco. Também não vou me reportar à articulação de seu estado emocional com a sintomatologia que apresentava no momento  (bruxismo ou ranger dos dentes principalmente ao dormir; pressão excessiva no maxilar e fortes dores decorrentes das alterações temporo-maxilar)
Em sua história familiar se destacava a união quase simbiótica com a mãe que, desde que o pai as havia abandonado, a obrigara a assumir o lugar do mesmo, até a chamando para dormir em sua cama toda noite, embora a paciente tivesse seu quarto e, muitas vezes, por seus relatos, preferisse dormir nele. 

A paciente, como demonstram os desenhos em suas características histeriformes, era pessoa extremamente sedutora; não só por postura atraente, mas por gestos cativantes e seus olhares envolventes. Vários profissionais da saúde da equipe, inclusive, chegaram a convidá-la para lanches, quebrando o protocolo da instituição hospitalar. Ela buscava sempre ser o centro das atenções. Por meio dela ficava sabendo da postura antiética de profissionais da área médica, voltados a seus estudos sobre psicossomática, que durante o atendimento dessa paciente, mantinham à mão seu celular e o atendiam diversas vezes durante a sessão, na frente dela, que considerava tal atitude desrespeitosa a sua pessoa até como cliente. Esse fato desencadeava muita raiva na paciente, que, posteriormente, desabafava seu desapontamento e irritação na minha presença, encontrando nas sessões clima aconchegante para acolher, com meu silêncio ou intervenções pertinentes, suas angústias mais primitivas. Aspectos infantis explodiam em seus desenhos (Piaget que o diga sobre seu "animismo", infantilismo-ops, "artificialismo"-, "finalismo"), como era visível sua dificuldade de lidar com a agressividade (a descida na figura 3 era contornada por rabiscos e traços repetitivos fortes e desencontrados). 


O que não esperava foi na sessão anterior à cirurgia materna, ter presenciado uma descompensação de tal porte nessa paciente histeriforme e vê-la descer a níveis psicóticos, expressos de forma tão marcante nos desenhos. Esses perderam seu colorido, sua forma integrada, a lógica de seu raciocínio. Foram se fragmentando e perdendo seu significado. Os desenhos continuavam a expressar o que se passava em seu mundo mental psicotizante para, de repente, de maneira imprevisível e impactante, se reorganizarem. 

Surpresa e fascinada, como terapeuta, acompanhava a transformação da paciente "histérica", sua descida a núcleos psicóticos despertados pela angústia da possível perda da mãe ante a proximidade cirúrgica, seu resgate como "borderline" ao estado anterior, onde os desenhos voltaram a ter colorido esfuziante. Pétalas que haviam se soltado das flores retroagiam a seu lugar dando inteireza novamente a seus desenhos, ricos em detalhes e no uso de cores vibrantes (bem distante do preto, cinza, roxo que denotariam contextos psicóticos). Sem dúvida, seu próximo passo, foi se utilizar da linguagem verbal, e expressar seu estado emocional... e me reintroduzir ao seu mundinho particular novamente. 

Ao se recompor mentalmente, sem gestos bruscos afasta o papel e os lápis, e não faz menção à qualidade dos desenhos apresentados. Levanta-se e já na porta do consultório, muda o tom de voz. Pelas entrelinhas deixava transparecer, nesse término da sessão, sua raiva contra mim e a culpa por ter-se demorado na sessão, enquanto sua mãe em casa estava se preparando sozinha para a cirurgia da manhã seguinte.


E eu, durante essa sessão, atemporal para mim, pasmada na sua frente, tomada pela curiosidade  profissional inclusive, percebendo e querendo acompanhar toda essa dinâmica, e me indagando posteriormente: "Para onde estava indo essa paciente com toda sua verborragia sedutora, com seus gestos teatrais e cativantes, seu egocentrismo e sua capacidade criativa?". Outra pessoa se delineava na minha frente, que me excluíra de seu espaço inter-relacional por um bom tempo. Tempo que eu me permiti respeitar, aconchegando seu silêncio, durante toda a construção da cena fragmentada expressa na figura 3 e sua imediata integração após dar forma a algumas palavras (como cópia) como pode ser observada na figura 4. 


Para onde foi minha paciente durante essa sessão? Essa inquietude me fez debruçar com mais afinco sobre minha pesquisas envolvendo diferentes níveis de consciência no mundo mental dos seres humanos. Como esquecer essas experiências que nos marcam com ferro e fogo, durante terapias?

Aurora Gite

P.S: Indico um filme antigo mas muito rico para estudo da dinâmica psíquica: "Querem me enlouquecer!" com Barbra Streisand em uma interpretação, a meu ver, genial.
  




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