domingo, 28 de junho de 2009

Reflexões sobre a abrangência de uma supervisão

Reflexões sobre esse tema me propiciaram retornar a um projeto de 1998, voltado a importância de uma supervisão em Psicologia em Hospital Geral, estando esse em processo de mudança, portanto, se constituindo em foco de ameaça e ataque entre os profissionais, nas mais diferentes funções, dentro dessa instituição. Insegurança e medo permeiam as fantasias, desequilibrando a rede de interações humanas e fortalecendo a emergência de conflitos desestruturantes do sistema produtivo.

Hoje em dia, é reconhecido que modificações estruturais numa organização, que visa transparência e boa administração de recursos humanos, sua mais valiosa matéria prima, ocorrem de uma maneira dialética, com trocas e alterações comportamentais (individuais e grupais). Focam a arte de dialogar e negociar, a capacidade de convencer e persuadir - e excluem imposições burocráticas e pressões hierárquicas. Considerando o movimento sistêmico organizacional, essas mudanças operacionais devem ser consideradas como processos funcionais complementares.

Uma organização é um organismo vivo, como o corpo humano, com seus elementos interagindo entre si e com o exterior. Sendo assim, qualquer preocupação logística não pode fugir de diagnósticos sob várias perspectivas e análises em termos integrativos e não exclusivistas.
Qualquer estratégica planejada sob o foco unilateral e manutenção do "status quo" da gerência administrativa, e não inclusão de uma gama representativa de colaboradores nas equipes, a longo prazo não conseguirão manter resultados eficientes e eficazes. A preocupação administrativa com a união desses aspectos atualmente já faz parte de qualquer processo logístico e planejamento estratégico, no entanto, são grandes as resistências para a implantação de projetos sob esse prisma, principalmente quando atinge benefícios pessoais e interesses outros que não os institucionais.

Ainda é pouco conhecida função do psicólogo hospitalar como agente unificador e suas intervenções propiciadoras de alívio de ansiedades, particularmente as oriundas desse período de instabilidade. O espaço de atuação de um psicólogo hospitalar vai além do desempenho de sua função clínica com pacientes, familiares e cuidadores. A rede de relações na instituição hospitalar também demanda por ajuda, devendo a própria organização ser observada e analisada como um grande grupo. As intervenções, nesse sentido, visam o grupo como um todo. Embora cada um atue, embasado numa teoria específica, de acordo com suas leituras e interpretações, suas características pessoais, possibilidades e formas de agir individuais, não se pode deixar de estar disponível para a compreensão holística do contexto hospitalar e para a interpretação da gama de motivações que mobilizam determinadas ações humanas.

Tal reflexão me traz à lembrança que contra fatos não há argumentos e, na época desse projeto, dentre cinquenta e três psicólogos, fui a única a defender a adoção de uma postura eclética em reuniões para definir o perfil do profissional na área hospitalar. Como conseqüência, grandes críticas, não às idéias que propunha, mas discriminação maciça, até assédio moral por desqualificações várias, buscando atingir minha credibilidade profissional e até mesmo pessoal. Tal fato deixava claro para mim o pouco amadurecimento e despreparo para o cargo da maioria das lideranças, e devidas assessorias, para enfrentar o tipo de gestão participativa que estava sendo implantada.

Durante os dezessete anos que atuei nessa Instituição, as cartas de pacientes , encaminhadas a Ouvidoria durante esse período, reconhecendo e agradecendo meu desempenho profissional, é que me serviram de grande incentivo e suporte a esses ataques pessoais anti-éticos e desumanos.

Hoje, o fato de ter bancado minha opinião e sobrevivido a uma perversa exclusão grupal, tornou-se para mim em motivo de orgulho, como ser humano e como profissional, pois é fato comprovado que uma visão abrangente e dinâmica é uma das características que define um empreendedor e inovador, colaborador tão procurado pelas organizações desenvolvimentistas desse novo milênio. Por outro lado, não há nada, dinheiro ou "status", que valha a perda da dignidade, da tranquilidade interna e do respeito próprio.

Isso vale como desabafo e aqueles que me perguntam o que ocorreu nesses anos, respondo que eu optei por me aposentar, para me livrar das pressões e assédios, e muitos cujos feitos foram citados acima, não sobreviveram dentro da instituição, ou do cargo que exerciam: não se enquadravam mais ao perfil de profissional dessa qualidade transparente de gestão.

Acredito que o obstáculo mais difícil , no momento, está na adaptação às normas institucionais dessa gestão participativa, que envolve maior engajamento individual e quebra de regras burocráticas irracionais, maior capacidade criativa, iniciativa, autocrítica e autonomia responsável.

Nesse sentido, um grande desafio na elaboração de um modelo de supervisão para um psicólogo hospitalar, que possa servir de modelo de referência, pode residir na divergência teórica e na necessidade da busca dos conceitos básicos comuns a esses profissionais, que lidam com o ser humano mais fragilizado pela condição hospitalar.

O linguajar psicanalítico restringe a comunicação e afasta a área médica. Muitas informações em reuniões multidisciplinares ficam prejudicadas em seu entendimento sobre a melhor forma de ajuda no aqui e agora do paciente. Por outro lado, só traria mérito a qualquer Divisão de Psicologia se os dirigentes pudessem fazer uma leitura psicanalítica da organização sistêmica aplicada em seu grupo específico. Muitos ficariam assustados com o resultado dessa análise e devida interpretação dentro dessa linha teórica. O que fazer quando no final de um processo seletivo vem a ordem: " A. passou, mas não se classificou; por ordem da direção, vai ter que ser aprovada, e sem contestação. É filha de diretora do setor ..." . Ou "O pai de fulana é médico, seus horários são flexíveis, bem como todos que fazem parte da diretoria, assessores e chefias." "Seu projeto está ótimo. Como coordenadora da equipe, vou apresentá-lo na próxima reunião de chefias." E aí, o que fariam?

Respondo aqui também a outro questionamento constante, que me fazem. Nesse período de transição social, analisando o grupo institucional, é fácil diagnosticar a patolologia sociopata ou psicopata por sua sintomatologia. A perversão é expressa na falta de auto-crítica e bom-senso; na ausência de limites e de auto-controle de impulsos; não observância de regras e preservação do coletivo; frieza ou faltas de vínculos afetivos onde predominam a indiferença e desinteresse pela pessoa do outro; sem auto-culpas, com violentas reações pessoais vingativas, do tipo "olho por olho, dente por dente". Daí decorrem: "Me aguarde para ver do que sou capaz!";"Ele me paga!", ou então "Ele é que se vire, vou tratar é de cuidar do meu"; diferente da submissão ao esquema do "Vejo tudo, mas preciso do emprego". Não é mais um "não saber lidar" com o impulso agressivo. Envolve uma dose de prazer ante a desdita alheia, até a manipulação perversa para a destruição da integridade psíquica e até física do outro, a "puxada de tapete " ou o controle que envolve coações e submissões humilhantes e desrespeitosas à pessoa do outro.

Quando me pedem para apontar a forma de enfrentar essa doença social, respondo com o exemplo trazido por um supervisor: - Durante um grupo de supervisão de profissionais graduados na área médica e afins, um residente, não obedecendo a um dos limites contratuais estabelecidos a priori, resolve atender seu celular interrompendo a sessão supervisiva, pois as atenções se voltaram para ele. Após breves respostas, desliga o celular e diz ao supervisor que, quando tocar o dele, ele poderá atender tal qual o fizera. E tem como resposta: "Eu? Não. Não sou eu que vou me rebaixar a você. Se quiser continuar no grupo, cresça profissionalmente e suba ao meu nível ético como ser humano, que preza o respeito entre as pessoas."

Um mapeamento de funções está sempre atrelado à investigação da expectativa do desempenho desse profissional dentro do quadro organizacional, com suas políticas e diretrizes específicas.
O que fazer quando essas mudanças culturais organizacionais envolvem resgates filosóficos e éticos, ensombrecidos por anos de operacionalização mecanicista?

A ênfase no valor profissional e humano, como fator preponderante no desenvolvimento e produtividade de uma instituição, é recente. O reconhecimento da importância de seu papel ainda não conseguiu sobrepujar o peso burocrático de regras funcionais e normas pré-estabelecidas, bem como a rigidez administrativa em sua hierarquia verticalizada e coercitiva.

É dupla a função da supervisão psicológica hospitalar, formativa e informativa. Podemos considerar como fazendo parte do ato de supervisionar as seguintes ações:
* propiciar ao supervisionando uma aplicação prática de teorias, que se supõe assimiladas em sua formação acadêmica;
* abrir espaço físico para uma aprendizagem prática;
* favorecer sua integração dentro de equipes multidisciplinares;
* orientar leituras pertinentes a atuações específicas, possibilitando a correlação e interação da teoria com a prática;
* supervisionar as atuações do estagiário no setor.

A supervisão, nesse sentido, deve contribuir para que o estagiário possa:
* amplificar sua capacidade de observação, independente da teoria professada;
* desenvolver um tipo de ação específica, uma escuta adequada ao paciente e à própria equipe;
* adquirir maior agilidade na percepção dos aspectos transferenciais e contra-transferencias que permeiam toda relação humana;
* melhor lidar com as inseguranças e angústias oriundas da atuação a nível hospitalar, onde a doença, a dor, o sofrimento, as deformações e a morte são fatores ansiógenos constantes.

Aqui já ocorre algo mais que o confronto com uma ética supervisiva, que envolve o respeito a divergências teóricas e a necessidade de obtenção de clareza e objetividade nos critérios referenciais para auxiliar a formação do psicólogo, que decide por essa área hospitalar de atuação.

O que mobilizou o estagiário para essa escolha vocacional?

Não deveria existir uma ética profissional atrelada a qualquer escolha vocacional e a mesma ser devidamente avaliada nos processos seletivos de um aprimoramento hospitalar?

Existem características éticas essenciais ao profissional psicólogo, que envolve sua decisão de atuar, em função do contexto hospitalar em que busca se inserir. Na prática tudo é tão diferente, e são muitas as variáveis que podem derrubar a ética humanista dentro de um sistema organizacional, ainda mais quando envolve uma área como a da saúde. O questionamento passa a recair não só na identidade profissional, mas em sua postura como ser humano.

Uma coisa é "saber-se" um psicólogo, outra coisa é "tornar-se um psicólogo hospitalar"- a diferença é muito grande. Acresce o fato de que a má postura do profissional pode desvalorizar a própria Psicologia e enfraquecer sua área de atuação.

Muitos "psicólogos psicanalíticos" preferem omitir sua primeira formação como psicólogos. Daqui decorrem dois grandes riscos: especialização em Psicanálise está aberta a pessoas de cursos superiores, das mais variadas profissões, que podem fazer parte do contexto hospitalar ou não; e consequentemente, pode ocorrer a invasão de outros profissionais, atuando em áreas restritas dos psicólogos, como a aplicação de testes e análises das devidas avaliações, ou mesmo em terapias breves, e tudo em prol das pesquisas (?).

Outro fato comprovado é a má formação acadêmica atual dos profissionais, que afetam a atuação dos profissionais que buscam essa área delicada e que exige controle adequado da própria saúde mental. Não se pode atribuir à supervisão a função de suprir essa carência. É o estagiário que deve se posicionar como autodidata e sanar essas lacunas. Não é fácil estimular a iniciativa, autônoma e responsável, ante tal grau de dependência e imaturidade de muitos recém formados.
No aproveitamento do período de estágio, um grande obstáculo está na expectativa e idealização do papel e dos limites de um supervisor. Muitas vezes, esse é colocado erroneamente, no lugar daquele que detém um saber absoluto, e o certo e o errado é buscado. Muitos estagiários, por aspectos intrínsecos de sua personalidade, adotam uma postura passiva, se impedindo de se instrumentalizar para desenvolver o próprio potencial, esperam encontrar modelos prontos, que possam ser copiados, esquecendo que os seres humanos são dinâmicos e interagem de acordo com sua unicidade e contexto relacional.

A imaturidade emocional do estudante, embora formado, remete a função do supervisor centrada inicialmente no ensino do"aprender a aprender", visando a aplicação dos conhecimentos teóricos na prática clínica; posteriormente ampliada ao ensino do "pensar como psicólogo" para "saber fazer acontecer" e atuar como tal.

Técnicas e métodos mudam, conforme o avanço tecnológico e a quebra de paradigmas que sustentam teorias. A maturidade profissional pode ser observada pela flexibilidade em não buscar enquadrar pacientes em molduras ideológicas disfuncionais ao ser humano em si, mas buscar a teoria que permita observar o fenômeno emocional e melhor ajudar o paciente a equilibrar suas ansiedades. Para tal, sua formação básica deve estar consolidada na auto-confiança, senso crítico e discernimento interno.

Esse encontro, ou reforço, da própria identidade profissional também deve ser propiciado pela supervisão clínica. A inserção valorizada do estagiário em sua função, abrangendo o âmbito científico, se une a motivação para um crescimento pessoal e profissional pós-estágio. Porém
aqui a supervisão hospitalar esbarra em seu ponto nodal: a grande barreira entre regras organizacionais e a responsabilidade de cada psicólogo por seus atos perante um paciente, ou mesmo perante a instituição de saúde voltada a prestar serviços a seres humanos debilitados e submetidos a normas irracionais de atendimento e regras burocráticas que retardam procedimentos terapêuticos. É grande o número de profissionais que se dirigem a outras áreas de atuação posteriormente.

Persiste a grande questão ética, que envolve a formação do ser humano livre e autônomo, com um sistema de valores subjetivos e sociais a serem respeitados, em prol da conquista da própria felicidade individual: "Como preservar a integridade interna, condição humana natural a ser alcançada dentro da vivência grupal, se ocorre a tentativa implacável de bloquear o julgamento valorativo; discriminar atuações individuais em prol de ações padronizadas mais fáceis de controle; hierarquizar ações pessoais interesseiras em detrimento de atitudes selecionadas pelo bom senso e reforçadas por uma capacidade crítica; abafar potenciais criativos e inovadores que não encontram meio de expressão dentro do organograma hierárquico do sistema organizacional?" Como existir uma ética supervisiva nesse quadro institucional que premia posturas perversas de atuação, ou estimula atitudes psicóticas discrepantes com a busca da integridade mental das equipes, mas necessárias à sobrevivência do profissional no sistema e no confronto com a onipotência de muitas autoridades operacionais?

Minha esperança vem de observar que as transformações desse quadro se aceleram ante a invasão arrasadora da cultura digital, com sua interatividade e interconexão imediatista, sua transparência e rapidez na disseminação de novas informações; seu deslocamento do poder de cargos e salários para a sabedoria de incorporação de um conhecimento funcional, sempre passível de reciclagem e novas atualizações, visando o momento presente e aplicações inovadoras voltadas para as sociedades como um todo.

Relembro as idéias de Prestes Motta e Bresser Pereira em seu livro "Introdução à Organização Burocrática": Será que podemos pensar em "utopia" como "projetos revolucionários que apontam o caminho da história" e não mais como "projetos distantes e irrealizáveis" ?
Que tal lhe parece essa idéia? Vamos acreditar, sonhar e concretizar nossos sonhos?
Aurora Gite

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