terça-feira, 21 de maio de 2013

"Quem me roubou de mim?"

Li, ansiosa com o desfecho, o conto "Um pássaro em sua gaiola" de Lima Neto, sua última postagem em www.lugardaspalavras.blogspot.com.br
Quanta gente engaiolada no mundo!
Mas há sempre o momento certo, até para ser livre e voar, não é?

Logo associei ao livro "Quem me roubou de mim?" (Melo, 2008), que me afetou profundamente quando o li, e ainda toca, minha alma e minha razão, ao recordar seu conteúdo.

Melo aborda as dificuldades das relações humanas, nos convidando a um mergulho em nossa subjetividade "a fim de nos fazer conhecer a nós mesmos e a descobrir como viver e conviver melhor não só com as pessoas que nos cercam, mas com todos que passam pelo nosso caminho".

O autor destaca a capacidade do ser humano de ser singular dentro da pluralidade do mosaico de sua vida. "Ao nos juntarmos aos outros para compor o todo, não deveríamos deixar de ser o que somos"... mas não é bem assim que os encontros se sucedem em nosso cotidiano.

Toda relação, segundo ele, é um encontro de subjetividades. A vida é feita desses encontros. Mas como viver "a dinâmica de um mundo que é plural, sem que nossa subjetividade corra o risco de ser sufocada, sequestrada"?

Ou como ocorre, e atualmente cada vez mais,  roubada e aprisionada em verdadeiros "cativeiros" - talvez "gaiolas" soe melhor socialmente, talvez "jaulas" seja a preferência dos que reconhecem sua raivosidade animalesca - e com nossa plena anuência de feras feridas isoladas.

Melo chama nossa atenção para como "é fácil se perder na pluralidade do mundo, perder a liga existencial (cordão que nos costura a nós mesmos), entrar nos cativeiros de relações sociais (que nos subjugam, nos sequestram e nos lançam, temerosos e mais inseguros, nas prisões sutis da dependência e escravidão". Vai mais além e nos confronta com a nossa facilidade para entrarmos cegos nos "cativeiros dos que nos idealizam, nos esmagam, nos desconsideram, pensam que nos amam, nos viciam, pensam por nós".

A preservação da subjetividade implica no fortalecimento de nossa identidade e no exercício de uma liberdade interna, que nos faculta a posse de nós mesmos. Sendo assim, quando Melo se refere a um sequestro da subjetividade, fala sobre a consequente perda de referenciais identificatórios e da inteireza que nos torna um sujeito particular, apto a realizar escolhas, livre para tomar decisões por si e ser responsável por elas, independente dos resultados que provoquem.

De acordo com o autor, "sentir-se privado de ser você mesmo equivale ao afastamento de seu mundo particular de significados e representações", sendo o cativeiro a "negação do direito de ser e estar, e com o tempo o esquecimento de ser o que você é - forma de aniquilamento de nossa condição primeira que chamamos de identidade e perda, então, do centro interno dos próprios referenciais".

Sendo assim, "o cativeiro mina nosso amor-próprio e nossa auto-estima, nos faz perder de vista a sacralidade da condição humana". "Tornar-se pessoa", equivale dispor de si ("ser de si", "ter posse do que se é") e ir mais além ao estar disponível para si e se voltar para o elo da relação, ao se permitir receber a visita do outro em sua vida.

Para Melo, a presença dos outros em nossas vidas vai não só nos indicar o que somos, mas também abrir nossa percepção de que, após descobrirmos quem somos, ainda precisamos entrar num processo contínuo de nos conquistarmos: "Cada pessoa é uma propriedade já entregue, isto é, dada a si mesma, mas ainda precisa ser conquistada... Eu já sou meu, mas preciso me conquistar". Isso significa me curtir e valorizar, para me colocar no mundo.

Essa jornada parece tão simples, não é? É "só" passar pelas etapas da personalização, da socialização, da individuação, da subjetivação, da espiritualização... É "só" esse caminhar que nos possibilita ser donos de nós mesmos. É simples? Tem como ponto de partida a condição de "só" não existir de qualquer jeito, "dizer não" à massificação e à superficialidade de uma vida artificial.

"Só?". Tente chegar ao terceiro patamar, o da individuação e vai ver como é preciso coragem e determinação, como vai requerer esforço e empenho, disciplina e tolerância; muita paciência para conviver com os fantasmas dos nossos próprios medos, interagindo dentro da rede imaginária, com os medos dos que nos cercam, e dos que são fabricados pela manipulação do social no qual estamos mergulhados, quando não atolados.

Continua Melo, "O medo nos priva de inteligência, ainda que temporariamente. Paralisados pelo medo é estarmos privados de nós mesmos... A perda da coragem de lutarmos por nós mesmos, implica nos alienarmos, depositando nas mãos de estranhos o poder de decidir o desfecho de nossa existência". É a rendição à convicção de que "o outro decidirá o destino de nossas vidas, e com isso a autoridade que subjuga vai se tornando o centro de decisões e além de mais fragilizar, passa a ter cada vez mais controle sobre o vitimado". O que se coloca como vítima mais se priva de lutar com autonomia "por sensações que lhe são agradáveis e o fazem feliz, pois a rendição envolve o acorrentamento de sua alma (vontade, liberdade, desejo)". Cada vez aumenta mais o abismo e se coloca mais distante sua possibilidade de devolver-se a si mesmo.

E o círculo fechado ao redor do sequestrado, vai se apertando e, mais e mais, aumenta sua pressão sobre ele. Quanto mais encapsulado na condição de vítima, no mundo do "tanto faz", perdendo a capacidade de dizer "não", e com maior perda de autonomia caindo na insegurança  seguida pela indiferença do "não sei se...", mais reforça o consentimento  a "uma espécie de invasão de sua vida", passaporte para a "violência velada sobre si" que, comodamente, tem sua responsabilidade atribuída "só ao outro".

Raivas são acumuladas - sob a conotação e maquiagem social de mágoas e ressentimentos - e são represadas, mal sustentando uma auto-violência, grande potencial agressivo prestes a implodir através de ações autodestrutivas, ou a explodir em agressões projetadas, voltadas a ferir quem estiver ao redor.

Interessante as perspectivas de Melo sobre identificação e diferenciação."Sou isso", implica uma negação e renúncia, visto que "Não sou aquilo". A identidade, estabelecendo limites à realidade, delimita nosso encontro conosco mesmo, legitimando nossa natureza. Nesse sentido, "aprender a conhecer os limites que se tem é um jeito interessante de potencializar as qualidades que nos são próprias".

O perigo está em que ao negarmos nossa identidade, nossa forma de ser e de existir, "todas as potencialidades ficam fragilizadas pela confusão entre o que a pessoa pode e o que ela não pode  inclusive, ... nessa desumanização ela perde seu horizonte de sentido, sua subjetividade deixa de ter valor... como ser humano fragilizado fica vulnerável e, acrítico, facilmente é roubado de si mesmo."

Como o sequestrado não se dá valor como pessoa, o outro, que o submete tornando-o dependente de si, vai tratá-lo como um "bem útil". Sendo visto como um "isso", um objeto, passa a ser coisa nas mãos de quem o desconsidera. Alguém colocado na condição de "algo" vive a "negação de sua dignidade", analisa Melo.

Qualquer relação amorosa, que vier a acontecer nessa condição, é fonte de grande ameaça e temor, pois ela comporta o risco de se perder no outro, por não ser ainda dono de si. Mais ainda, se o afeto envolver relações que sequestram, um "eu" vai sempre tentar sufocar o "tu", pois o outro "não é visto em sua alteridade, mas como extensão das necessidades de quem o enxerga". Nesse sentido, o "eu" em solidão, sem interação, não poderá crescer e "amar não vai pertencer a essa relação", não tem campo para o amor se desenvolver dentro desse tipo de relação, onde ambos se autodestroem.

Segundo Melo, por um lado, "amar não é fazer do outro nossa propriedade, ninguém é tão completo que seja capaz de preencher totalmente as necessidades do outro"; por outro lado, "sempre que alguém chega à nossa vida, nunca vem sozinho, traz o seu horizonte de sentido, possui um histórico que necessita ser respeitado". Quem ama é evidenciado por cuidar da preservação da liberdade do outro na relação.

Melo cita Martim Buber e seu processo de "relações eu-tu", destacando: " Amar é o encontro de duas subjetividades, duas partes que se complementam porque se respeitam. E no ato de se respeitarem ampliam o mundo um do outro...Trazem o desejo de fazer crescer, melhorar, avançar aqueles que encontram, e a si mesmos...O processo de tornar-se pessoa é contagiante."

Acredito não ser preciso justificar o porquê da associação do livro de Melo com o conto de Lima Neto. O que mais dizer e sobre o que mais refletir?
Isso sim é fácil!

* Nada vale mais do que a liberdade. Ser livre sem voar, é rastejar e morrer aos poucos fora da gaiola, até ser subjugado e devorado pelos mais fortes, seguindo a lei da própria evolução física, que não permite aos fracos sobreviverem por muito tempo. A vida não abre espaço para os que querem permanecer paralisados, estanques em sua solidão e dependência, tendo suas asas já crescidas para voar por si. Oportunidades surgem, são percebidas e aproveitadas pelos que se capacitaram para a conquista da autonomia física e psíquica, e para o alcance do prazer de cuidar de si e de seu espaço na vivência de uma prática cotidiana, solidária e respeitosa com o espaço da subjetividade do outro.

* Nada pode ser mais gratificante do que a busca e o encontro de relações onde exista um alguém que  ame realmente, que não vai se permitir entrar no rol de "Quem me roubou de mim", pois seu prazer é cultivar sua relação consigo mesmo e, por amor, ter enorme satisfação em conviver com a singularidade da existência do amado, diferencial unificador que só tende a agregar maior grandeza valorativa a uma rara relação amorosa de duas pessoas, que se reconhecem na relação como sendo "especiais" para si e para o outro.

Não desisto!
Aurora Gite

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