sexta-feira, 7 de junho de 2013

Lembram dessa frase: "O destino baralha as cartas, e nós jogamos" ?


Lembram dessa frase de Arthur Shopenhauer: "O destino baralha as cartas, e nós jogamos" ?

Há alguns anos apostei alto com o destino, não tinha como bancar seu jogo. Não contei que fosse misturar as cartas como o fez. Pegou pesado! E eu impotente pois não me facultou embaralhar uma vez sequer, por um bom tempo de jogo.

As regras éticas entre bons jogadores não foram respeitadas. Demorei a perceber que eu não mais podia ficar esperando que isso ocorresse, que teria que encontrar o centro de meu jogo, fortalecê-lo, e passar a dar algumas cartadas também.

Na época, a que me refiro, eu tinha a pretensão de saber jogar, e investi o que tinha. Não tinha o devido conhecimento de que o destino na posição da banca sempre mostrava quem comandava o jogo da vida e embaralhava as cartas, para que nós jogássemos, ainda mais se nos rebelássemos impensadamente contra seus desígnios.

Não posso deixar de recordar do filme "Julia" (1977, de Fred Zinnemann) e das impressões que me deixou. Lembro que foi interpretado por uma atriz, Jane Fonda, que pouco a pouco hoje passa a pertencer somente à calçada da fama tendo seu nome retirado dos letreiros das estrelas principais.Outro embaralhar das cartas para um novo jogo que começa ante a passagem do tempo. Poucos reconhecem a necessidade de que ele demanda nova aprendizagem, pois surgem novas regras limitadoras de ações.

E aqui me ponho a pensar no destino baralhando as cartas para nós jogarmos, como coloca Schopenhauer. Logo associo com o embaralhar das peças dos quebra-cabeças, à espera de nossa vontade e serenidade para ir montando suas peças e vislumbrando seu conjunto, como ocorre com as circunstâncias de nossa vida, onde não nos é permitido avaliar o cenário formado por nossas vivências, acertos e erros.

Não é por acaso que nesse encadeamento de recordações surgiu em minha mente o filme Júlia e com ele a certeza que sempre temos um pincel à mão para transformarmos as marcas da paisagem anterior com a vontade e representação de Schopenhauer. A moldura da tela já existe, o destino é responsável por ela, investiu nela e não deixa por menos, não temos condições de modificá-la. Mas somos responsáveis pela nova imagem da tela e só nós vamos poder nos lembrar do que cada novo traçado e pinceladas coloridas vão encobrir.

Ação semelhante ocorre com a montagem de um quebra-cabeça de muitas e muitas peças.Tantas peças todas misturadas esperando que, com atenção, sensibilidade e inteligência, possamos observar detalhes de formas e nuances de cores. Com habilidade e destreza, possamos buscar o encaixe adequado entre as mesmas para atingir o todo previamente configurado. Grande é a satisfação interna ante o alcance do prazer por atingir seu "todo", que implica no entendimento de sua sistematização e completude. Sendo assim essa compreensão só pode ser vislumbrada ante nossa perspicácia de perceber a conexão entre as peças, e ante nossa capacidade intuitiva aberta a visão abstrata do conjunto das mesmas.

Cada peça de um quebra-cabeça, ou cada evento de nossas vidas, depende da escolha acertada, possibilidade única entre tantas oportunidades com que nos deparamos. No entanto, como acertar ante tantas peças ocultas e embaralhadas no meio de tantas outras que lhe são semelhantes? Mais ainda, como distinguir o acerto das decisões, ante peças ainda não tão visíveis na parcialidade do cenário que se constroe gradativamente. Sua construção depende das relações entre elas e o contexto global, para que possamos obter a engrenagem perfeita, que lhe permita sua sustentabilidade, inclusive ante imprevistos que surgem quando menos esperamos.

Cada situação de vida representa uma vivência, cuja qualidade depende da forma que a assimilemos. Experiência positiva ou negativa, sempre fará parte de nossa vida, sempre terá seu espaço nesse quebra-cabeça. Nele não existe lacuna. O que poderia ser chamado de lacuna, ou espaço vazio, já se constitui numa peça a ser considerada como tal. A firmeza de um ponto central está atrelada a nossa qualidade de caráter auto-referencial, que permite conviver por um tempo com a ansiedade do vácuo inicial até a percepção da integração com a plenitude do todo.

Vamos nos imaginar montando o que nos parece um belo quebra-cabeça, de muitas e muitas peças. Particularmente eu gosto de montá-los e ver as imagens se delineando pouco a pouco. Demanda muita paciência e perseverança. Uma paradinha aqui, um cafezinho ali, uma leitura acolá, e uma nova aproximação da mesa onde as peças estão espalhadas. Sob novo prisma, como por encanto, no meio de tantas uma peça se sobressai dentre as demais. E eis o encaixe perfeito, imperceptível a nossos olhos até então focados atentamente e a toda nossa concentração mental, visando o controle sobre todo aquele contexto desmanchado e borrado. E com que orgulho ouvimos de nosso interior: "Puxa, até que enfim, consegui!" Nosso peito se enche pela auto-admiração com tão simples vitória.

Novamente em minha lembrança surgem  e se misturam as cenas nubladas pelo nevoeiro do cenário do filme. Quando retornam à minha mente - faz tempo que assisti ao filme -  ainda  tenho conservadas, e bem nítidas, as sensações que me despertaram logo no seu início: a solidão do barco, a tristeza do entardecer, a quietude do lago, a serenidade do contexto...De repente, o apagar dessa cena e a destreza do artista na busca de novas imagens para sua pintura, mais condizentes com seu aqui e agora, com o estado momentâneo de seu mundo interno. Determinado ele se esforça por encobrir a paisagem anterior. Porém na tela permanecem impressos os traços já delineados, por mais que somente a ele se tornem visíveis. Os demais poderão contemplar um belo trabalho, expressão de seu ser. Não imaginariam o que o mesmo encobre.

Como a vida nos prega uma peça. Anseios e aspirações, desejos e fantasias... Quantos sonhos e ideais imaginados! Quantas peças mal escolhidas, muitas tendo que ser desprezadas pois nas tentativas de encaixes acabam sendo deterioradas, de tal forma, que aquele quebra-cabeça não tem mais serventia.

Frustrações, raivas, brigas inúteis com a vida, aceitação do que nos impõe, tristeza profunda, resignação e sábia percepção de que na luta com a vida sempre saímos perdendo. A partir daí, "humildade" e "coragem" para novas negociações diplomáticas sobre "como viver"com a intensidade das rupturas bruscas e com o abandono das dolorosas perdas, sobre "como vislumbrar" novas formas prazerosas de vida, utilizando todas as experiências passadas. E eis que a vida nos brinda com um novo quebra-cabeça. E nos retorna a nossa capacidade de escolher montá-lo com alegria, ou ficar nos consumindo ante o que ela nos retirou e não tem retorno.

Paramos por aqui? Não!

A grandiosidade da vida é que após o término desse novo quebra-cabeça ou do jogo de cartas  nos possibilita apreciarmos tudo que aprendemos com o anterior. Seu jogo perverso é que o mesmo não perdura, qualquer esbarrão o desmonta ou baralha as cartas e demanda nova construção, testando nossas forças internas, valores e virtudes, na leitura e interpretação do que nos ocorre com os conhecimentos e sabedoria adquiridos.  

O presente da vida é a sábia vivência dando qualidade ao que nos ocorre no momento presente, sem nos prendermos ao que já foi, ou nos lançarmos avidamente ao que está por vir. Porém o desejoso desembrulhar desse "presente", não é tão simples, acarreta nova ultrapassagem, desvendando o "enigma das esfinges", para atingir o desconhecido dentro de nós mesmos, e reconhecer a validade do que recebemos da vida.

Por mais que tenhamos o relógio do tempo da vida como objeto de estimação, o mesmo não nos está disponível a nosso bel prazer, a espera de nossas opções de vida, mais ainda  - como no momento atual  - em que o percebemos acelerado e já ocorrem constatações de que tempo é "o movimento de vida", e ela não nos acompanha, coloca as oportunidades e segue adiante... 
A nós cabe aproveitá-las no presente, ou deixá-las para trás, para que passem a pertencer a nosso passado. A recordação do momento perdido será encoberta pelo que o futuro trouxer, quando for presente, mas não há esquecimento do que nos foi importante no jogo com a vida. 

Aurora Gite


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