segunda-feira, 28 de abril de 2014

Não estou cobrando, nem impondo... só pedindo!

Existem autores que nos marcam desde nossa adolescência. No meu caso, destaco o escritor russo Fiódor Dostoiévski. Não vou negar que, de tempos em tempos, me reporto a ele, e releio trechos de suas obras. É incrível como lançam novas luzes para a compreensão de algumas dinâmicas psíquicas entre pessoas que me cercam, clareando mesmo as angústias dos sofrimentos de alguns pacientes.

"Crime e Castigo" é um de seus livros, que considero, dos mais conhecidos; acredito que pela temática, que envolve a problemática da culpa, a dúvida do arrependimento, a submissão e resignação ao castigo como purificador. Mas hoje retiro da estante sua obra "O Idiota", relembrando como me encantou o mundo do Príncipe Michkin e o amar de Nastássia.

Talvez o tenha feito por associar à percepção da fragilidade física daquele palestrista, sua necessidade de maior esforço no comandar sua respiração, para emitir um tom de voz mais vibrante - mal intento pois seu cansaço físico transparecia em alguns momentos pela visível debilidade no som emitido, perceptível a um observador mais atento. Isso me fazia imaginar como suas relações de troca com o mundo não deviam estar se dando de forma tão suave, com mais equilíbrio e vivacidade. O corpo humano reage através da linguagem funcional expressa pelos órgãos específicos de nosso sistema orgânico. Nossas disfunções em vias respiratórias e vias excretoras como a urinária, responsáveis pelo filtro do que nos é impuro, do que pode nos intoxicar lentamente, dão sinais e mais sinais... alertas constantes para que prestemos atenção na qualidade de vida deficitária, que estamos nos permitindo ter. Logo, na sequência de sua fala, reforçando minha impressão, vinha uma frase (irônica?) alertando para o cansaço da velhice, para o pouco tempo que resta, para o estar se entregando ao poço dos idosos que desistem de lutar por manter suas almas vivas e jovens. Nossas almas não envelhecem acompanhando nosso corpo físico, se as nutrirmos de sonhos e idealizações constantes.

É fascinante a forma como Dostoiévski desenvolve a trama de seus romances e a agudeza com que nos conduz ao mundo psicológico, às almas mesmas, dos personagens. Ávida leitora, fui cativada pelo mundo sob a temática do dinheiro, poder, conquista, vícios, culpas, fraquezas humanas, trágicos desencontros e ... redenções, reencontros pelo resgate do humano nos seres descritos por esse autor.

Em "O Idiota", Dostoiévski retrata a problemática de um indivíduo puro em seu caráter superior, que acaba sendo, para a sociedade corrompida, um frágil idealista humanista inadaptado. Para quem busca entender os meandros da mente humana, Michkin , além da epilepsia e do físico franzino, portava grande vulnerabilidade psíquica. Seu mundo era entremeado por inseguranças, dúvidas e incertezas, inconstâncias e indecisões, que contaminavam e o torturavam em suas necessidades de fazer escolhas e tomar decisões.

Para meu espanto, a personagem Nastassia teve uma fantástica transformação ao amar Michkin, com tal grandeza de espírito, que o deixou livre. O autor a levou a preferir a renúncia do contato direto com o príncipe - em determinado momento do transcorrer da história do romance -  do que  conviver com a angústia da simples hipótese de pensar em ser responsável por lhe aumentar o sofrimento gerado nele por uma questão de escolhas entre desejos e deveres, probabilidades de erros e possíveis acertos dos quais não podia ter controle direto para se sentir mais seguro. A grandeza do "cuidar e soltar por amor" levaram Nastassia mais ao afastamento físico, do que a uma luta competitiva, em que tinha sua vitória quase como certa. Optou por manter sua presença ao acompanhar a vida de Michkin à distância. Depois o destino, nas mãos do autor, mostrou sua força, dando novos rumos aos personagens.

No momento atual de nossa sociedade, assolada por interações mórbidas e até fatais, envolvendo "ciúme e posse do outro", tratado como "mero objeto de desejos", é leitura suave, a meu ver.

Como boa leitora, sempre me dedico a ler atentamente prefácios e capítulos introdutórios, me inteirando sobre o autor e as circunstâncias em que as ideias contidas nas obras emergiram. A ideia de fazer um herói idiota teria vindo do folclore russo. "Idiotia": considerada uma "doença divina" pela inocência atribuída ao doente."Simplicidade, pureza, inocência possuem dons divinatórios por despojarem o homem dos preconceitos que encurtam a vida e envenenam a existência".

Eis-nos, novamente, jogados no labirinto dos significados das palavras e no confronto de emoções pelos paradoxos com que somos afetados por eles. De um lado, seu sentido agressivo, entendendo o termo idiota como imbecil, estúpido... e de outro, a compaixão ou a pena, se o compreendermos como pessoa simplória, inocente. "As palavras do 'Poverello di Dio', aplicam-se bem à idiotia do Príncipe Michkin, no quixotismo cristão do herói dostoievskiano", segundo as palavras de quem admira as obras do autor, reconhecendo seu valor e sua grandeza.

E eu me ponho a constatar quão distantes, os valores éticos e as grandezas de caráter, estão do nosso social de hoje, que não mobilizam as pessoas à paciência por ideais esperançosos e à transcendência interna por crescimentos éticos; mas que, pelo contrário, as remetem ao imediatismo e aos infernos interacionais, ao caos destruidor de convivências pacíficas, respeitosas e afetuosas, ante a ausência de regras morais de convivência e leis éticas unificadoras dos grupos humanos.

Vou mais adiante e me ponho a refletir sobre quantos de nós somos capazes de reconhecer qual é o seu peso (valor) e a sua altura (grandeza), na construção ética da história de sua própria vida, no cenário atual de deterioração e desestruturação social, onde temos que abrir nosso espaço como indivíduos, com coragem, ousadia e, mais ainda, com a galhardia da dignidade pessoal conquistada a duras penas?

Pergunto a você se consegue bancar sua alma viva e jovem, cheia de sonhos e esperanças, buscando inseri-la nas críticas circunstâncias sociais, que cercam esse mundo de crises? Indago se em todo caminho que tente trilhar, vai se esforçar por não cair no pântano do desânimo e do tédio, nem propiciar que o pessimismo e a preguiça ociosa a envelheçam?

Poderia me prometer, e se comprometer, a fazer tudo que estiver a seu alcance - com as limitações por que passa - para impedir que sua alma perca a fé e autoconfiança, indispensáveis para que possa ter um envolvimento efetivo e uma participação ativa na qualidade que você possa imprimir a seu viver?

Conseguirá impedir que "sua razão lhe pregue uma peça", que seu "querer seja amordaçado" e que sua "vontade perca o impulso vital inato" - fundamental para ela inocular a energia necessária em seu organismo físico e psíquico?

Conseguirá fortalecer sua alma e manter atuante sua juventude dentro de um corpo aparentemente envelhecido, até que o sopro da vida persista em seu peito?

Não morra em vida! É pedir muito? Não estou cobrando, nem impondo... só pedindo!

Aurora Gite


Nenhum comentário: