segunda-feira, 7 de abril de 2014

Um encontro, ou uma paciente, sempre especial!

Existem pacientes que com o tempo vão se tornando especiais. É lógico que guardamos essas impressões seletivas, mas não podemos conter a ansiedade pela expectativa dos novos contatos.
Experiências de vida semelhantes sempre nos reportam a observar, sob novo prisma, nossas próprias vivências. Esse é o campo fantástico que ocorre não só nas relações psicoterapêuticas, mas nos encontrões da vida, que acabam se tornando para cada um de nós, pela similaridade de vivências e das profundas marcas que as fortes impressões cunharam em nossa memória, em elos que possibilitam novas compreensões sobre nós mesmos, constituindo-se em verdadeiras experiências emocionais corretivas.

É o próprio viver ganhando vida própria, ao adquirir novo colorido, nova significação singular, novo sentido subjetivo, submetendo nossa liberdade e livre arbítrio à sua tutela sempre. Nesse trilhar não há como não se confrontar com grandes enigmas, que nos obrigam a escolhas que nada têm a ver com nossas reais vontades e desejos, mas que nos confrontam com grandes aprendizagens como as contidas nas lições "Com a vida não se briga, pois se perde sempre." e "Otimizar o tempo é torná-lo aliado, atento às oportunidades que nos oferece."; ou, ainda, "Envelhecer com galhardia, não é atribuir à vida os fracassos que nossas más escolhas propiciaram, mas observar que, se somos responsáveis por elas, somos também passíveis de possibilitar alquimias interiores e, de posse da jovialidade de vitórias, se imbuir de garra, para autorrealizações gratificantes, e cair na sensação indescritível de precisar de mais tempo de vida".

Esse é o estado interno em que se encontram alguns pacientes, em sua luta para ultrapassar o sofrimento de suas vivências, afastar as máculas das mágoas e ressentimentos, buscar sensações pacíficas de serenidade e harmonia internas, transformar a superação de obstáculos em incentivo à aquisição de uma auto-estima positiva e fonte mobilizadora de um saudável amor-próprio, inquebrantável ante qualquer ataque vindo do mundo social que os cerca. Como não deixar de admirar esses pacientes, e não alçá-los à categoria de especiais? Aprenderam a reconhecer os próprios limites, se resignar aos desígnios do destino (da vida?), selecionar vários focos de prazer para não se permitir serem dragados pelo poço das carências, administrar seus desejos e ir, com garra, em busca racional de suprir suas faltas...

Recordo de uma... que se me tornou especial. Chegou me dizendo como era difícil o mundo infantil e que pouco se lembrava desse período. Conforme avançou na terapia, mergulhou com coragem dentro de si mesmo, descortinou o véu da amnésia e as lembranças jorraram:

* Não sabia como agir com minha mãe, nunca soube na verdade, tentava acertar na relação com ela, mas parecia que errava sempre. Minha avó tinha problemas com as figuras femininas, minha mãe também as tinha. Era pequena quando ela me disse que tinha abortado, após meu nascimento e de meu irmão, por ter certeza que seria uma menina como eu; as meninas davam muito trabalho. Lembro de ter encolhido e me recolhido dentro de mim. Pouco antes dela morrer, ela me confessou que tinha tentado um aborto, também comigo, pela situação familiar estar complicada na época, mas não teve êxito. Para meu espanto, eu tenho a forte sensação na memória, a impressão sofrida de como feto estar encolhida num canto do útero me protegendo. Isso me assusta, mas a ciência tá avançando, não é? Algum dia vamos encontrar explicações sobre nossa memória.

* Não é fácil quando, além de termos que conviver com nossas próprias angústias e fantasias infantis, ainda temos que sustentar as dos pais. Minha mãe sempre depositou em mim a culpa do que lhe sucedia.Se minhas tias não lhe telefonavam, era porque eu, ou meu irmão menor, não buscávamos maior contato social com elas; se meu irmão quase morreu porque em uma de nossas brigas infantis peguei um pau que tinha um prego na ponta e bati com raiva nele, por ter estragado uma de minhas bonecas, eu era uma assassina (assim me senti, mesmo sabendo que não tive intenção -nem vi o prego enferrujado - e depois ele superara tudo); nossa, e no dia em que precisei tirar um raio-x do pulmão... sua angústia era dobrada, pois seu primo irmão, meu padrinho, morrera de tuberculose; ele era nosso vizinho de casa ... no trajeto todo de tanto ela me culpar por não comer direito, não me precaver no contato com ele - eu já era portadora da doença; imagine meu pavor ao realizar o exame!

* Sempre tivemos problemas financeiros. Muitas vezes meu pai perdia no jogo seus salários. Ela constantemente trazia à tona essa situação o culpando por nossas privações, sempre nos dizendo nos momentos de raiva, que era preferível que morresse, pois viveríamos bem com sua pensão. Na época que começamos a passar fome, eu e meu irmão fomos enviados para a chácara de tios. Se fosse só isso... mas quando meus pais iam nos ver nos finais de semana, ela não assumia a função materna comigo; a tudo que pedia me mandava pedir autorização a minha tia - meu sofrimento era de me sentir uma verdadeira órfã, nas mãos da tirania de uma tia que não tinha filhos. Minha tia me obrigava, cedo pela manhã, a esperar a caseira chegar, para só então ir ao banheiro, mesmo eu lhe dizendo que precisava ir, não aguentava mais esperar... escutava meu tio brigando com ela, e ela inflexível em seu rigor disciplinar! Muitas vezes nos dirigíamos a sua enorme dispensa para roubar uma lata de leite condensado, tanta era a vontade de comer um doce, e acabávamos curtindo a travessura, mas o saboreá-lo carregava a culpa pela transgressão indevida. Não gosto de lembrar quando me obrigou a tomar um prato de sopa, um tipo de creme de maçã salgado, de cor cinza... não suportei conter em meu estômago em meus 7 anos e botei tudo que consegui ingerir, à força, para fora, em golfadas e mais golfadas; e só recordo a voz de minha tia, frieza cortante em tom de reprovação, ordenando à caseira que providenciasse a limpeza de toda a minha sujeira - "eu" (pessoa) sumira do desagradável cenário.

* Nos momentos de raiva, minha mãe sempre apontava meus defeitos como apontava constantemente o fato de eu ser desafinada; sentia uma espécie prazer em me humilhar, diferente da proteção com que envolvia meu irmão. Era um suplício quando me obrigava a escolher de quem gostava mais, dela ou de meu pai. Dizia que eu tinha o 'sangue de barata' de meu pai, mas eu me amedrontava e tinha pavor de vir a ser impulsiva a troco de nada, muito menos ser agressiva e rancorosa como ela. Escolher entre pai e mãe é sempre um sacrifício, e muitas vezes a escolha afetiva contradiz a evidência de fatos reais e é contra quem mais cuida. Acho que a percepção da criança é mais sagaz do que se imagina. Não sabe nomear, mas saca e sente a dor da ambiguidade, insegurança e incerteza desde cedo.

E eu a refletir, posteriormente, como algumas pacientes conseguem ultrapassar tudo que passaram e reverter seus quadros patológicos?
Como crianças conseguem conviver e  administrar possíveis sequelas em sua socialização?
Alteram-se as configurações das sociedades, mas permanecem constantes as formas de relações familiares, onde predomina o medo da perda do amor. Pais ou cuidadores, em sua impulsividade patológica, não abrangem a extensão da "tortura psicológica" e os "efeitos na estrutura mental em formação na criança". Palavras ferinas podem se constituir em "dardos envenenados" direcionados ao mundo psíquico, se a vulnerabilidade de quem as ouvir impedir que estabeleça limites.

Quadros fóbicos (em nossa sociedade, "transtornos de ansiedade fóbicos" e mesmo casos mais regredidos de "paranóias" não predominam no meio dessa visível violência?) - se desenvolvem em crianças que vivem, desde tenra idade, sob o teto do "amor condicional": vivem sob o medo de amar e o pavor de serem amadas. Relações parentais que passam a mensagem "Amo você, se for bonzinho!", contaminam o mundo de fantasia infantil, permeado por fantasias destrutivas para lidar com a dor psíquica pelo desejo de morte de cuidadores,  pela desconfiança de proteções amorosas em que dizem, como algumas mães (e muitos cuidadores) o fazem "Sou sua melhor amiga, não vai encontrar outra como eu!" Assim falam categoricamente, embora demonstrem agir como maior inimiga. Não é difícil observar desde cedo os quadros de autossabotagens e psicossomatizações (alergias, problemas respiratórios como rinites, asmas...) que as cercam. As relações de troca do organismo gritam por socorro, quando o psiquismo luta por sustentar uma dor mental (angústia) sem tanto êxito.

Não é fácil ao terapeuta conter a ambiguidade do amor e ódio transferenciais e construir vínculos em que o paciente aprenda a amar e se aceitar. É importante realçar que fenômenos chamados "amor e ódio" são faces da mesma moeda: mais nefasto a um vínculo é a indiferença que significa a morte do amor. Excessiva vontade de controle e perfeição, ambição e conquista, vaidade e destaque, reação agressiva ao perder, podem encobrir mecanismos de "evitar ser rejeitado" e, ao serem trabalhados em terapia, quando as fantasias de cobranças e coerções, sensação de humilhação e desejos de vingança, vêm à tona e , desinvestidos da energia libidinal (afetiva), perdem sua força em prol do uso adequado da razão, os pacientes logo trazem a sensação de leveza e liberdade.

Sobre a paciente citada?

A frase abaixo, corroborou para me provar seu amadurecimento emocional, e me comprovou que ela assumiu a direção de sua vida, quando não mais se utilizou de "comparações com pessoas externas para mobilizar suas energias construtivas", retirando essa força de seu centro interno de referências revigorado e agora "curtido" (admirado):

"É uma pena que minha mãe não esteja aqui, para ver como fomos semelhantes em nossas divergências; sem sombra de dúvida, fortes como figuras femininas, sustentando a fraqueza e irresponsabilidade das figuras masculinas que nos cercaram. Ambas fomos marcadas por uma "rebeldia corajosa": lhe contei que minha mãe ficou poucos meses casada, presa aos ciúmes de um primeiro marido que a impedia até de visitar minha avó, e que, quando seu amor-próprio começou a ser abalado, providenciou a separação, voltando para a casa de minha avó, enfrentando todo o estigma da época em cima de pessoas separadas? Senti na pele por não poder ir para um famoso colégio de freiras, tradicional na época, por ser filha de segundo relacionamento de pais separados... mas isso é uma outra história, para um outro encontro (...especial, pensei eu). E assim continuou ela, confirmando nossa sintonia: "Ah, não fugindo de citar encontros imprevisíveis sempre especiais: meu pai e minha mãe se conheceram por ser ele designado para ser o advogado de separação de minha mãe. Mão do destino... mistério inexplicável de mais um dos enigmas da vida!"

Como não haver trocas, que mobilizem nossa evolução pessoal, no encontro com esses pacientes... que já deixaram esse lugar, não se enquadram mais nessa categoria?

Aurora Gite


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