domingo, 2 de novembro de 2014

"Divergente", o filme!

Acabei de assistir ao filme "Divergente" (lançamento 2014). Acredito que vá caracterizar a nova época que vivemos, onde passam a imperar visões ecléticas, que agregam várias perspectivas e diversos pontos de vista; ações mais ponderadas e inteligentes, com preservação da autonomia e liberdade; uma amplitude irrestrita da inteligência, e com isso, a prontidão do encontro de soluções para quaisquer problemas - desistência e medo de desafios serão considerados fraqueza humana, em contraponto com superação e audácia nas tentativas de ultrapassá-los.

"Divergente" vale a pena ser visto. Produz profundas reflexões em um vasto campo de perspectivas. Retrata um mundo onde as pessoas são divididas em facções, buscando um viver coletivo com mais harmonia... mas... vejam o que ocorre, e para onde o enredo nos encaminha!

A escolha pessoal de pertencer a uma determinada facção é irreversível. Por si só já exclui a possibilidade de, ante a vontade de desistir de pertencer a esse grupo, ser incluído em alguma outra facção. Sendo assim a pessoa passa à categoria dos banidos, diferentes rejeitados, não pertencentes a nenhuma facção socialmente aceita.

Critérios seletivos e ordens para avaliação, quando de treinos desenvolvimentistas, podem ser alterados a bel prazer imediatista e imprevisível dos líderes. Quem ousar quebrar o poder supremo, sofre severas penalidades, pagando até com a própria vida. Não há autonomia e liberdade para sair ileso de contestações tidas como rebeldias, e muito menos de questionamentos, buscando justificações, tidos como afronta à liderança vigente.

No mundo dividido em distintas facções, os valores diferenciais para uns, tais como honestidade, amizade, generosidade, coragem, audácia... se tornam fonte de ódios, invejas, manipulações destruidoras até ataques mortais, para outros.

Em meio às facções surgem os "divergentes", com capacitações superiores, difíceis de serem superadas pelos colegas e, por isso, motivo de grande ameaça aos representantes dessas ordens inquestionáveis, previamente constituídas.

Os "divergentes" só querem espaço para ser quem são. Não se encontram ao pertencer só à facção da "abnegação", ou só na da "erudição", o mesmo se dando só na da "audácia"..."Só quero saber e ser quem eu sou, e só quero poder ser eu mesmo quando for descobrindo isso por mim!" "Tenho em mim um pouco do tudo!". Realmente a angústia e a solidão de ser um divergente são enormes, e isso é bem expresso no filme.

A meu ver, essa é a luta a ser travada no milênio. O diretor bem encaminhou a sequência das cenas do filme, tendo êxito nos recortes que mostram a fuga dos enquadramentos sociais e a busca pelo espaço singular do ser humano em sua unicidade.

Nesse "filme de ação, ficção científica e suspense norte americano", ele não se furta de representar a plenitude amorosa no encontro de pessoas, que se reconhecem com suas raras características de superação, se descobrem mesmo ante as tentativas de camuflar sua integridade e seus medos, visando suas sobrevivências em meio ao coletivo massificador predeterminado. Nesse espaço dado ao humano, demasiadamente humano, contrastando com o mundo árido de afetos não padronizados, também são destacados os efeitos das tentativas do uso irracional e abusivo do poder sobre a raça humana, controle parcial e total de sua vontade e sua inteligência.

E lá me pus eu a refletir e a divagar sobre as reações provocadas dentro de mim ao assistir a esse filme.

Não será talvez, o "Divergente", mais um alerta contra a mídia e o jogo de vigilância em um "público que está sendo adestrado" a confundir o mundo virtual com o mundo real; "treinado" a se tornar incapaz de usar sua inteligência para reconhecer em sua razão um poder transformador; "condicionado" para evitar ser um agente social mobilizador de mudanças, resposta que não ocorreria ante a percepção do aliciamento e submissão existencial a poderes abstratos, corruptores da liberdade e autonomia, direitos a serem preservados por méritos pessoais de cada indivíduo, em quaisquer grupos a que pertençam?

Não trará esse filme mais uma mensagem de S.O.S. contra o excesso de deturpação da proteção aconchegante, mais uma cortina para esconder a ocultação da invasão de privacidade em um "público que está sendo acostumado a conviver, cotidiana e naturalmente", com a ilusão de uma participação concreta na vida artificial montada nos reality shows e sites interativos?

Não buscará, o "Divergente", ativar a coragem para combater os medos, conquistar a consciência do potencial humano em cada ser vivente e se imbuir de audácia, para correr riscos e quebrar a cegueira humana advinda do século passado?

Não procurará esse filme mostrar a "falsidade do pensar que" o encontro consigo mesmo - com a pessoa que realmente se é, em meio a medos e fracassos, autorrealizações e sucessos - está atrelado ao pertencimento a "numeroso grupo de amigos": "anônimos desconhecidos idealizados em elos fictícios" como sinceros e eternos?

Não tentará clarificar o esquecimento de si mesmo e a repercussão desse abandono no mundo interno do  homem que adentrou o milênio, para que se torne consciente do processo de involução, em que foi lançado, ao cair nas armadilhas que encobrem:
- seu "real contato distante e por vezes mascarado com anônimos", assim mantidos para bem representar a ficção vivida no "palco da redes sociais";
- seu "envolvimento transitório, superficial e passageiro, com os outros atores, facilmente modificado por um aceitar ou deletar, por vezes impulsivos"; -
- sua  "falta de demanda de um desejo e ausência de preocupação com afetos profundos", com estabelecimento de vínculos leais e fiéis a um "ser humano especial", raro patamar alcançado por poucos que possibilitam que um outro se torne mais significativo e compartilhe de sua intimidade;
- sua "tediosa acomodação", que esconde o fato de que o autêntico afeto entre humanos vem sendo amordaçado e sobrepujado pelo grau de "espetacularização nos sites interativos", a nível da tensão mobilizada através de mensagens ocas e vazias, ou mesmo das imagens disformes, maquiadas habilmente para impressionar grandes platéias;
- o papel dos cenários montados para impressionar e deslumbrar os incautos que, por não pensar por si, se deixam levar por esses conteúdos artificiais?
Quantos têm presente o contato com a verdade dentro de si e com o que ocorre ao seu redor; e quantos buscam com ela interagir, descobrindo seu autêntico lugar nesse mundo real?

Associo "Divergente" a outros filmes de ficção, que já pontuavam muitas das transformações que a sociedade vive hoje e pode viver amanhã. Cito "Minority Report", "O Pagamento", "Inteligência Artificial" (A.I.), Blade Runner... entre outros.

Na vida real, cada vez mais, cérebros e órgãos passam a ser monitorados após a implantação de chips; iris dos olhos são escaneadas e dados coletados são cadastrados; aceleradamente se amplia o uso da biometria; recursos da técnica de visualização virtual facilitam distorcer e alterar as lembranças da memória...Observamos a criação de andróides humanos, e a robotização do homem, a despersonalização afetiva do humano com sua aproximação da banalização do mal e da cruel violência consentida.

Há tempo alerto para os perigos  - que os filmes mencionados acima já avisam -  do corpo humano estar passando a substituir um "token", ante identificações eletrônicas e introdução de chips. Chips em veículos facilitam localização em caso de roubo, sequestro, fuga indevida. Pode resultar num bom recurso em intercorrências policiais. "Sorria, você está sendo filmado": sensores e tecnologias monitorando o "espaçopúblicourbano" podem indicar mais do que vigilância preventiva, pode representar uma forma de controle social. E está formada a confusão entre controle, monitoramento e vigilância informais. E se o cadastramento cair em mãos erradas de pessoas de má fé inescrupulosas?

É interessante observar o diálogo, nos regimes totalitários, entre as "sociedades de controle" (Deleuze) e as "disciplinar-repressoras" (Foucault). Vale a pena sobrepor esses filmes de ficção e muitas teorias do gênero, descritivas ou especulativas, e verificar suas aplicações na compreensão do que ocorre nas sociedades atuais, onde os valores humanos são tão vilipendiados e os direitos sociais tão violentados.

Por que tanto ódio da "divergente raça humana"? - É a pergunta que não quer calar dentro de mim".

Aurora Gite




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