segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Mais uma crise ou a única?

Qual seria a leitura de tantas crises repetitivas no mundo moderno?
Crises econômicas?
Crises sócio-políticas-históricas?
Crises de lideranças?
Crises que agora se espalham para áreas pré-políticas, como a criação dos filhos e a educação, e que nos permitem uma visão de seu afunilamento e o surgimento de novas indagações, muito mais profundas.

Vou me permitir agregar a essas associações, novamente, as idéias de Hannah Arendt, companheira constante das últimas semanas, dedicadas à leitura , e estudo mesmo, de seus livros. A força mental advinda das perspectivas de Arendt sempre me permitem visões mais abrangentes e esperançosas.

Segundo ela, uma "crise de autoridade" acompanhou o desenvolvimento do mundo moderno desde o começo do século - uma crise constante, crescente, cada vez mais profunda, e que se alastra com enorme velocidade, sendo oculta pelas demais que se posicionaram em primeiro plano.

Suas reflexões sobre a "autoridade" em si ("Entre o Passado e o Futuro") se voltam para duas questões fundamentais: " O que foi a autoridade, historicamente?" e " Quais suas fontes de força e significação?" Acredito que esse seja o caminho para melhor compreensão da violência atual , e possível enfrentamento desse mal social, visto a violência preencher a mesma função que a autoridade, qual seja : "fazer com que as pessoas obedeçam", conforme coloca Arendt.

Mas por que as pessoas necessitam desse tipo de relação?
O que lhes falta internamente, que não buscam a serenidade mas aquisições ambiciosas, materiais ou não ?
Por que não conseguem, por si mesmas, o preenchimento de seus vazios interiores?

Onde está sua autoridade consigo mesmo?
Como está sua forma de gerenciamento interno?
Por que se permitem a, conscientemente, viverem uma vida de má qualidade?

Por que desativam seu livre arbítrio e seu senso crítico? Por que não se permitem ser o senhor de suas vidas?

Como autoridade envolve colocação de limites, por que tanta dificuldade em enfrentarem o lado positivo do impulso agressivo. Ele é o que mobiliza o agir e a delimitação de fronteiras entre o "mim" e o "outro"? Por que não se propõem a direcionar melhor seu potencial agressivo, em vez de o negarem?

Nesse sentido, como pano de fundo das crises, acrescento a "crise de identidade como ser humano", visível na falta de sentido para a própria vida humana.

Achei muito interessante a abordagem de Arendt sobre esse tema. Lembrou-me muito da forma de abordagem socrática. Realça a dificuldade em definir autoridade ou conceitos abstratos pela falta de distinção entre muitos deles e enfatiza o que isso representa em termos de uma análise retrospectiva da História. "Distinções tendem a ser negligenciadas quando falamos demasiado indiscriminadamente da crise de nossa época": "a autoridade e seu problema afim, a liberdade, que desde o século XIX têm sido tratadas no âmbito de Política por escritores sejam conservadores, sejam liberais."

De acordo com sua perspectiva, nos aproxima da visão platônica de obediência voluntária advinda da meritocracia. O reconhecimento e aceitação da autoridade do outro por seu mérito e conquistas é o que possibilita estabelecer esse elo de relação pacifica, sem inveja ou submissão humilhante. Em suas reflexões sobre autoridade, realça alguns ítens:

  • A autoridade é uma relação onde um é que manda e o outro obedece, mas a liberdade de cada um é preservada. Sempre exige obediência, daí ser confundida com alguma forma de poder ou violência. Contudo, ela exclui a utilização de meios externos de coerção. Onde a força (e não é só física) é usada, a autoridade em si mesmo fracassou. Portanto, ela se contrapõe à coerção pela força.
  • A autoridade é incompatível com a persuasão. Persuasão pressupõe igualdade, e opera mediante um processo de argumentação. E onde se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso. Portanto, ela se contrapõe à persuasão através de argumentos, onde se busca impor algo ao outro.
  • A autoridade pressupõe uma ordem hierárquica. O direito e a legitimidade dessa hierarquia é reconhecida por ambas as partes, pois é o que lhes permite seu lugar estável predeterminado. Esse ponto, para Arendt, é de importância histórica para a compreensão do quadro de insegurança e desamparo humano no mundo atual.

" A perda de autoridade é meramente a fase final decisiva de um processo, que durante séculos, solapou a religião e a tradição. Dentre elas, a autoridade se mostrou o elemento mais estável."

  • a perda da tradição no mundo moderno ( o que é inegável) não acarreta uma perda do passado. Tradição e passado não são a mesma coisa.
  • sem uma tradição ancorada, toda a dimensão do passado foi também posta em perigo: a ameaça do esquecimento, a perda de conteúdos humanos, a falta do que recordar e memorizar, e com isso a privação de uma dimensão da existência humana.
  • algo análogo ocorre com a perda de religião.
  • a perda de religião não implica necessariamente em uma crise de fé, pois, religião e fé, crença e fé, não são de modo algum a mesma coisa.
  • somente a crença possui uma inerente afinidade com a dúvida, e é constantemente exposta a ela.
  • a fé , atitude interna, também é ameaçada, mas se mantém.
  • os dogmas e suas diversas operacionalizações pelas "religiões institucionais" são questionados, e abalam crenças. Portanto não se pode negar que as ameaças advém de crise na religião institucional, e não na atitude religiosa ou na religião em si mesma.

Fazendo um parêntese nessas associações e articulações, fiquei espantada de assistir ontem a uma entrevista na qual a "religião" foi apontada, por um formador de opinião e de seguidores na sua fé, como o "grande mal" de nossa civilização. Uma briga de poder entre duas emissoras televisivas, e respectivos desdobramentos políticos e religiosos, procurando se embasar em argumentos tão falaciosos. Passam a constituir-se em boa fonte para observarmos como o passado pode ser reescrito, mediante interesses específicos de grandes grupos, que muitas vezes não envolvem o bem-estar coletivo.

Retorno a Arendt: " A atual crise mundial trouxe a perda da permanência e segurança no mundo - que, políticamente, é idêntica à perda de autoridade. Necessariamente, não deveria acarretar a perda da capacidade humana de construir, presevar e cuidar de um mundo, que nos pode sobreviver, e permanecer um lugar adequado à vida, para os que vêm após."

Encerro por aqui com essa assertiva que me soa positiva para o "resgate do humano" que nos é inato, porém com a desagradável sensação ante as indagações:

"Que autoridade podem ter essas autoridades assim instituídas?"

"Por que os Winston Smith ( Orwell, "1984") ainda se permitem serem moldados?"

"Por que ante tanto desenvolvimento tecnológico, se contrapõe tamanho retrocesso humano?"

Encerro expressando, o que acredito seja, um dos grandes perigos da humanidade, através do artigo: "Corpos de robôs, mentes humanas: O futuro das próteses" , de Jaime Prata - de Madri, Espanha . Site:notícias.uol.com.br/midiaglobal/elpaís/2009/08/16/ult581u3428.jhtm

Aurora Gite

(postado dia 17/08/09, às l6:20h)

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