domingo, 9 de agosto de 2009

Remontagem do quebracabeça de uma vida

Sempre aspirei, olhando para trás entender o caminho por mim trilhado no labirinto de minha vida, buscando compreender a sucessão de fatos que ocorreram a minha volta, alguns envolvendo decisões minhas, outros em que fui envolvida por circunstancias alheias a minha vontade; alguns bem aceitos, outros só acatados com muita resignação. As peças do quebra-cabeça de minha vida se encaixaram, ante o passar dos anos e a eterna busca de autoconhecimento, que também minha profissão demanda. Agora queria a moldura de uma resignação feliz, que conduz a sábia serenidade em uma terceira idade.

Novamente me utilizo de dois autores, que aprendi a admirar. Suas idéias se entrelaçam com as minhas, muitas vezes. Nós seres humanos, a nível de vivências e aprendizagem, também podemos nos agrupar em categorias, cujas semelhanças propiciam o encontro de uma linguagem e compreensão comuns. Transmissões orais por outros (tradição) são importantes, mas registros escritos pelos próprios autores, são de uma riqueza infinita. Eu me recordo que, quando li "Zaratustra" de Friedrich Nietzsche e "A Condição Humana" de Hannah Arendt, me senti tão perto deles numa empatia grande por seus sofrimentos ante incompreensões, e lutas, como seres humanos pensantes - livres e independentes - em busca de uma sociedade menos alienada. Agora estou no final de "O Anticristo" de Nietzsche e de "Entre o Passado e o Futuro" de Arendt e sinto, outra vez, minhas idéias e visão de mundo se ampliarem ante as novas perspectivas que apontaram. Tudo escrito há tanto tempo, desconsiderado nas devidas épocas, e envolvendo situações e sensações tão cotidianas, persistentes ainda nos dias de hoje.

Análises históricas perdidas no tempo, mas envolvendo a intrincada rede de interações humanas com suas unicidades e intencionalidades direcionando ações individuais e reações sociais. Ações grupais sob uma perspectiva globalizada e unificada; sem visões parciais e rígidas de "ou são anjos ou são demônios"; sem julgamentos preconceituosos e inflexíveis do tipo "culpado ou inocente"; sem projeções e transferências de aspectos internos inaceitáveis a outros e a situações, pela fragilidade na contenção das próprias angústias e primitividade no uso das próprias funções mentais. E quantos autores, donos da história de sua vida, não carregaram o fardo de estigmas implacáveis, que talvez a amplitude de visão, nova interpretação e compreensão, ante os conhecimentos advindos com o novo milênio, possam aliviar. Como apagar a dor da solidão e da indiferença, da exclusão e da injustiça? A lembrança perdura, suportada pelo reconhecer-se "sobre-humano" ou "super-homem", e ter amor-próprio e admiração pelo "diferente" que se é, em relação aos humanos comuns que nos cercam.

No prefácio de "O Anticristo" Nietzsche assim se posiciona: " Este livro pertence aos homens mais raros. Talvez nenhum deles sequer esteja vivo. É possível que se encontrem entre aqueles que compreendem o meu "Zaratustra": como eu poderia misturar-me àqueles ( *se reporta aos detentores do poder e mau uso da ideologia do cristianismo e dízimos obtidos) aos quais se presta ouvidos atualmente? - Somente os dias vindouros me pertencem. Alguns homens nascem póstumos.

Assim continua: "As condições sob as quais sou compreendido, sob as quais sou necessariamente compreendido - conheço-as muito bem. Para suportar minha seriedade, minha paixão, é necessário possuir uma integridade intelectual levada aos limites extremos. Estar acostumado a viver no cimo das montanhas - e ver a imundície política e o nacionalismo abaixo de si. Ter-se tornado indiferente, nunca perguntar se a verdade será útil ou prejudicial... Possuir uma inclinação - nascida da força - para questões que ninguém possui coragem de enfrentar; ousadia para o proibido; predestinação para o labirinto. Uma experiência de sete solidões. Ouvidos novos para música nova. Olhos novos para o mais distante. Uma consciência nova para verdades que até agora permaneceram mudas. E um desejo de economia em grande estilo - acumular sua força, seu entusiasmo...Auto-reverência, amor-próprio, absoluta liberdade para consigo." Encerra com: " Muito bem! Apenas esses são os meus leitores, meus verdadeiros leitores, meus leitores predestinados; que importância tem o resto? - O resto é somente a humanidade - É preciso tornar-se superior à humanidade em poder, em grandeza de alma, em desprezo..."

Logo nos capítulos iniciais esclarece as idéias contidas nessas últimas afirmações. " ... A idiossincrasia moral-religiosa (é) muito menos inocente, quando se percebe a tendência à destruição da vida." (* Para quem não se recorda o termo "idiossincrasia" quer dizer " maneira própria de ver, sentir, reagir, de cada indivíduo, segundo o dic. Aurélio).

Ante as frases de Nietzsche que transcrevo a seguir, gostaria que, ao lê-las, seguissem internamente as sensações que transmitem, pois aposto que será de alívio e liberdade, leveza pela soltura do fardo de idéias moralmente impostas como verdades. "A compaixão ... instinto depressor e contagioso, opõe-se a todos os instintos que se empenham na preservação e aperfeiçoamento da vida... sua ação depressora e periculosidade contrariam inteiramente a lei de evolução, que é a lei de seleção natural... A humanidade ousou denominar a compaixão uma virtude (- em todo sistema de moral superior ela aparece como uma fraqueza -) ; indo mais adiante, chamaram-na "a" virtude, a origem e o fundamento de todas as outras virtudes." Não está mais perto de uma negação da vida, conforme Nietzsche alerta?

Analisem dentro de vocês se Verdade e Justiça tem a ver com "Compaixão"; se Liberdade e Responsabilidade, Amor-próprio e grandeza de alma, têm a ver com dó, piedade e culpa pelo não compadecimento, ou estão atreladas a uma confiança no livre-arbítrio do outro em tomar decisões mais sábias para si. Será que esses questionamentos não levarão a uma expressão mais autêntica de nosso ser, e a uma colocação de limites (leia-se agressividade) de forma menos impulsiva e culposa?

Cruzo então esses dados, com os que me chegam sob a perspectiva histórica de Arendt. O tema central de seu livro "A Condição Humana" foca o que estamos fazendo com nossas vidas e a compreensão da natureza da sociedade atual. A edição de 2007 equivale à 6ª edição. O original data de 1975. Quanto tempo perdido culminando no caos político e na alienação do homem atual, envolvido em tanta crise decorrente da falta de ética, perversidade e leniência. Será que não podemos unir os sentimentos de Arendt com os de Nietzsche, expressos nos parágrafos iniciais do prefácio de seu "O Anticristo"?

Ao abordar a Era Moderna, ela a situa entre os séculos 17 e 20, e se reporta a alienação atual do Mundo Moderno, uma era nova e desconhecida, decorrente do advento da automação. Na relação do homem com máquinas pensantes, a palavra humana perdeu poder, segundo ela. Podemos também constatar a grande distância entre a intenção e o discurso. E o discurso, com sua faculdade de persuasão e convencimento, com sua retórica, é que faz do homem um ser político, que atua no social, como agente transformador da história. Assim segue :" O que os homens fazem, pensam, ou experimentam só têm sentido (significado) na medida em que pode ser discutido."

Arendt diferencia a "condição humana" da "natureza humana". A primeira engloba "a soma das capacidades humanas em sua forma de "existência humana", produzida pelo próprio homem"; a segunda se reporta à sua "essência humana", levando a um pensamento metafísico. "A condição humana implica em sermos os mesmos sem sermos jamais iguais ao outro."

A complexidade de "ser" e de "existir" continua a ser retratada por ela. Destaques são dados "a singularidade da existência humana versus a pluralidade da espécie humana " e "a complementaridade entre a condição humana e a objetividade do mundo", pois é "pelo impacto da realidade do mundo sobre a existência humana que o homem se torna para si mesmo" .

Imaginem-se dentro da metáfora de Arendt, onde esse encontro "seria como um pular do homem sobre a própria sombra". Podem ter essa cumplicidade com vocês mesmos? Analisem também a repercussão dentro de vocês e a veracidade dessa afirmação: " Homens são seres condicionados (tudo torna-se condição de sua existência, independente do que façam), portanto, a existência humana seria impossível sem essa relação". E eis nossa história sendo montada por nós mesmos. "É o engajamento ativo nas coisas deste mundo que caracterizam os homens de ação, que se utiliza de sua liberdade e seu poder de decisão para delinear sua história de vida, sua condição humana".

É muito interessante, na abordagem sobre a convivência que estrutura a condição humana, seu ponto de vista sobre os problemas da irreversibilidade ( impossibilidade de se desfazer o que se fez, embora não se soubesse, nem se pudesse saber, o que se fazia), e da imprevisibilidade (caótica incerteza sobre o futuro). Arendt coloca como soluções para os mesmos o perdão (com sua capacidade de arrependimento, para desfazer atos do passado) , e a promessa ( contrato mútuo com um vínculo de obrigatoriedade, criando ilhas de segurança no oceano de incerteza do futuro) .

Continua que , no entanto, " Na solidão e no isolamento, o perdão e a promessa não chegam a ter realidade: são, no máximo, um papel que a pessoa encena para si mesma... O código moral inferido das faculdades de perdoar e de prometer, baseia-se em experiências nunca consigo mesmo e sempre na presença dos outros."

Mais uma perspectiva de Arendt para refletirmos: "O curso do pensamento, da recordação e da antecipação ( correspondem a um ) espaço intemporal, e a uma atividade do pensar ( fenômenos mentais onde forças colidem, uma vindo do passado e outra do futuro) - lacuna preenchida pela chamada tradição ( pois as imagens no âmbito do tempo histórico ou biográfico, ocorrem dentro de um movimento temporal e retilinear onde não existem lacunas no tempo). Resposta individual para a pergunta: "Qual é a sua condição humana atual?" Eis uma ajuda para você se situar no seu tempo e no seu espaço.

Encerro realçando a intuição de Franz Kafka, "de que é o futuro que remete a mente do homem de volta ao passado, até a mais remota antiguidade", citação de René Char incluída por Arendt em seu livro. Deixo com vocês a parábola de Kafka: " Ele tem dois adversários: o primeiro acossa-o por trás, da origem. O segundo bloqueia-lhe o caminho à frente. Ele luta com ambos. Na verdade, o primeiro ajuda-o na luta contra o segundo, pois que empurrá-lo para frente, e, do mesmo modo, o segundo o auxilia na luta contra o primeiro, uma vez que o empurra para trás. Mas isso é assim teoricamente. Pois não há ali apenas os dois adversários, mas também ele mesmo, que é quem sabe realmente de suas intenções?.. na escuridão do sonho, num momento imprevisto... "saltar fora da linha de combate e ser alçado, por conta de sua experiência de luta, à posição de juiz sobre os adversários que lutam entre si".

Agora é com vocês,
Aurora Gite
(postado às l4:59 com um Feliz Dia dos Pais para alguns leitores)

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