segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Orwell e seu "1984" tão atuais assim?

Impunidade e violência... impotência e desamparo... busca interior de valores humanos... maior mobilização de forças internas... reforço ao ideal de cidadania.

Esse foi o processo interno desencadeado pela visão desses arames farpados, semelhantes aos colocados em campos de concentração, agora também fazendo parte de minha residência. Quando mudei os dez metros de largura do terreno eram delimitados por portões baixos de alumínio. Depois tive que trocá-los por grades e portões de ferro altos e com lanças nas pontas superiores. Recentemente acima das lanças fui obrigada a colocar "concertinas", que em nada contribuem a um "conserto" social, mas que isolam um cidadão pacífico e o inserem na fragilidade e violência moral das ilhas humanas. Ainda me recuso a vedar total e eletronicamente meu contato com o mundo.

Tenho que me fazer acompanhar em meu "cooper" mental por Kant que, segundo Hannah Arendt, uniu a questão "Que devo fazer?" a duas questões metafísicas: "Que posso saber?" e "Que posso esperar?" ; forma encontrada por ele para não se perturbar tanto quanto Marx e Nietzsche. E sem querer voltei a me relacionar com a realidade relembrando depois a solução proposta por Hegel . Para ele , a reconciliação dos homens com a realidade dos problemas humanos envolvia o engajamento com coisas que devem sua existência exclusivamente aos homens.

Ao mesmo tempo trouxe para esse grupo George Orwell. A transformação da realidade é o tema principal de seu livro "1984". Foi escrito em "1948", mas por pressão dos editores teve seu título invertido. Pela época pode-se observar que é uma crítica às alianças políticas da época, principalmente ao pacto de Hitler e Stalin. No entanto, se observarmos o quadro atual das relações entre países como os EUA e os do Oriente Médio, não fugimos da comparação entre semelhantes "apoios logísticos e bélicos e fabricação de nações amigas ou inimigas, conforme interesses governamentais".

A estória de Orwell é uma ficção. Retrata uma sociedade, sob um regime totalitário, controlada por um Partido que, em sua fiscalização, se utiliza de "teletelas", que possibilitavam total domínio sobre as ações humanas. Um forte controle midiático exaltava repetitivamente o sistema de governo, não permitindo o esquecimento da onipresença e magnanimidade do Grande Irmão (do Big Brother). Parece um recurso atual do governo? Não, não é mera coincidência ter-me recordado dessa estória!

O livro traz a história de Winston Smith, funcionário do Partido, que, fazendo parte do "Ministério da Verdade", exerce função não diferente de alguns jornalistas e historiadores atuais. Fazia parte de seu ofício, reescrever e alterar dados, ou seja, transformar a realidade conforme o interesse partidário. Sendo assim, ele adulterava a própria história da época, chegando a jogar os comprovantes fatuais originais, que pudessem contradizer as "verdades do partido", em um incinerador chamado de "Buraco da Memória". No entanto, Winston sempre se questiona sobre a opressão que o Partido exercia sobre os cidadãos. Inicialmente o faz adotando uma postura silenciosa, solitária, e até medrosa pela grande ameaça partidária. Chega um momento, no entanto, em que suas críticas "à fabricação da verdade pela mídia e a manipulação para a ascensão e queda de ídolos de acordo com alguns interesses", são descobertas. É preso, torturado, drogado, passando por programas de adaptação ( que consiste em aprender, entender e aceitar ) e posterior estágio de reintegração.

Eterno processo pavloviano de condicionamento psicológico, onde suas respostas à vida e luta por uma autonomia e integridade psíquica deveriam ser extintas, gradualmente. Para isso foram empregados perversos reforços punitivos, ou represálias atrozes e aterrorizantes, torturas psíquicas provocadoras de reações internas angustiantes e desagregadoras do mundo mental, como o encostar de uma gaiola com roedores famintos em seu rosto, mais precisamente em seus olhos.

A única saída para situações como essa, reside na auto-traição, no abandono das próprias convicções e valores, na desqualificação desrespeitosa das próprias sensações. O foco era a substituição da capacidade de senso crítico e do suporte autoreferencial - básicos para a formação de uma identidade pessoal -por outro comportamento mais padronizado, submisso e automatizado, voltado mais para um "viver estando morto como pessoa, vivo como mais um dentro da massa social". O resultado foi atingido. A autoridade sobre si mesmo foi extinta e a aceitação da dependência ao Partido sem questionamentos foi assimilada.

A busca desse objetivo e o mau uso da autoridade não fogem muito da realidade atual. Não é só a tortura física que ameaça a nossa sociedade, mas a extensão do assédio moral por um lado e da depressiva impotência ou indiferença humana por outro são assustadores. A transformação social é visível, tanto quanto a robotização pode ser observada na frieza e falta de sentimentos humanos. Notícias diárias de brigas com socos e pontapés entre os homens, envolvendo mulheres, adolescentes e crianças - ou bicadas e mordidas até a morte entre animais - são presenciadas com tesão e prazer. Até onde irá essa "crise de identidade humana"?

Os clones robotizados já existem. Próteses com capacidade de reprodução facial de expressões humanas também. Vamos mesmo permitir situações semelhantes aos filmes "Eu, robô." ou "Inteligência Artificial"? Uma certeza eu carrego dentro de mim. Não sou um Winston Smith e não quero ser. Para isso fortaleço minha auto-estima, aumento meu cacife pessoal com as fichas de valores que me são significativas, e procuro me bancar em minhas apostas vivenciais. Como?

Posso dar algumas dicas de atitudes vivenciais que muito me ajudam. Trago sempre presente na memória reações situacionais das quais me orgulho e que reforçam minha valorização pessoal. Procuro sempre manter essas lembranças funcionais. Vou dar um exemplo. Há alguns anos, estive conhecendo os cassinos de Las Vegas (EUA). Foi uma experiência singular, única. Consigo revê-la com detalhes. Logo na entrada se é tomado por um estado de extase. Sente-se o entusiasmo tomar conta de todo o corpo. Como é fácil o se envolver com esse mundo artificial com suas máquinas viciadas e crupiês comandados, com a convivência de poder fantasiosa e inebriante através da vitória conseguida em um jogo fabricado, com a aproximação e beleza aparente e fugaz, com o contato com relações humanas superficiais e fictícias! A partir daí não é difícil se deixar levar pela fumaça embriagante de conquista de status e poder, que baixam nossa guarda sobre a vaidade e libertinagem de nossos impulsos. Por outro lado, como também são prazerosos tanto a difícil retomada do autocontrole, como o consequente retorno do autogerenciamento de nosso mundo interno. O tesão pela sensação de liberdade e bem-estar consigo mesmo é de uma grandiosidade única e inesquecível.

Abrir mão de benefícios e privilégios, fatuais e hipotéticos, não é tão simples ao ser humano, ainda mais quando sabe que existirão outras pessoas prontas a recebê-los em seu lugar, dando continuidade ao processo histórico corrompido; quando tem noção que sua passagem histórica será anulada e cairá no esquecimento; quando sabe que, se lutar para que o registro social de sua história de vida não seja apagado, poderá correr o risco de ter sua participação e integridade distorcidas. É ou usar máscaras para se proteger, ou se bancar ante a manipulação histórica. Nesse caso, recordações de como conseguimos manter nossa integridade psíquica, ante situações desequilibrantes, como em momentos de crises, têm um papel importante.

Qual é o sistema de governo interno que pretende aceitar dentro de seu mundo interno?

Qual é o campeão interno que quer construir e se orgulhar de si mesmo?

Como ser humano, a que tipo de grupo social você quer pertencer?

É tudo uma questão de escolha, até a opção de se permitir ser um "vivo-morto", um zumbi da vida.

Aurora Gite
( postado em 24/08/09 - às 22.10 h )

Um comentário:

mariatereza cichelli disse...

Aurora,

Bom Dia!!!

Ótimo post...

Li, mas voltarei pra reler. É um texto que tem que ser relido...

beijos