quinta-feira, 8 de março de 2012

O tédio: perda temporária do sujeito desejante

Considero o tédio a perda temporária do sujeito desejante que é quem envolve nosso ser psíquico no interesse por buscas prazerosas, visando algo que preenche uma falta, e o alcance de autorrealizações que nos satisfaçam e dêem sentido à nossa vida.

A dor psíquica da angústia do tédio, para muitos, vem num crescente. Por ser uma angústia livre de objeto é de difícil controle. A Gestalt com suas fantasias nos permite tomar consciência dessa dinâmica interna, possibilita contato com os sofrimentos psíquicos, sem afastá-los ou deles fugir camuflando a dor psíquica, ou ainda negar a sua existência numa brincadeira de "faz de conta que não é comigo que está ocorrendo".

Algumas pessoas, que tiveram uma infância convivendo com interações mais aconchegantes e respeitosas, estruturantes de uma personalidade mais autocentrada, constituíram uma maneira de ser mais saudável. Puderam defender e ocupar seus espaços como sujeitos desejantes, sem terem sido colocadas no lugar de realizadores do desejo do outro. para que ele se sentisse mais aliviado ou mais "feliz", afirmação que constitui um ledo engano.

Como se comunicar por conceitos pode se constituir em fonte de confusão, torna-se importante diferenciar a personalidade autocentrada que se constitui em centro de autorrefêrencia para o ser psíquico mais amadurecido, da maneira de ser autocentralizadora da condição de sujeito na postura narcísica. O narcisista se destaca por se coloca como centro de referência de perfeição e acertos, a ser reverenciado por outras pessoas, que devem girar ao redor de seu desejo e opiniões, de sua vaidade e orgulho. Arrogantes e desrespeitosos, não se apercebem do valor das diferenças humanas na pequenez do cenário onde observam unicamente sua imagem grandiosa refletida.

Nossa sociedade ainda cultiva um pensar voltado à razão concreta e padronizada, e incentiva uma disciplina pessoal mais rígida e criteriosa voltada a ordem e passividade da massa social. Empreendedorismo, criatividade, inovação, são muito estimulados desde que mantenham o "status quo" de quem usufrue de privilégios. Nessa categoria incluo os pais e familiares educadores.

Não causa pois espanto, a constatação de como tem se alastrado a sensação tediosa, o desinteresse necrosante do imaginário sonhador.

Impera o sentir-se perdido se tiver que usar o raciocínio abstrato, a imaginação e a criatividade, para permitir a eclosão do tesão de um desejo por um objeto, que permita nomear a falta causadora da angústia. Predomina a impotência e sentir-se enfraquecido por ter que suportar a enorme pressão da energia psíquica em processo de combustão pela antevisão alucinatória de um sonho ou do provável ganho prazeroso. Como conviver com o fracasso e a frustração, e voltar a estimular a vontade, em sua força enfraquecida, para voltar a expressar a singularidade de um desejo, enfatizando que ele é sempre pessoal e intransferível?

Desejo representa uma falta. E essa falta é única para cada ser humano. Não há educador que consiga fazer prevalecer na economia psíquica um mercado baseado em trocas de desejos: ofertas, advindas unicamente do mundo exterior, nunca vão conseguir suprir a prioridade de uma demanda pessoal. A via da frustração não aceita devoluções gratuitas. E toda reposição tem um preço psíquico. O importante é buscar o equilíbrio entre custos e benefícios posteriores.

Uma criança, ou um adulto imaturo emocionalmente, não tem condição de cruzar esses dados e processá-los mais harmoniosamente. A situação mais fácil é se colocar na dependência dos "cuidadores do pensar e melhor direcionar o desejo alheio". Ah, não tem condições de avaliar que a conta vai para o balancete econômico da energia psíquica do suposto "sujeito desejante"!

Pensem nisso ao calar a boca de uma criança que tenta expressar o que quer, ou o que tem vontade de ter. Querer não implica que se vá ter. Mas a preservação dessa capacidade é estruturante para a construção de uma personalidade forte e autocentrada, dona de si e boa gerenciadora de seus desejos. No administrar seu querer, como sujeito desejante, a criança vai ter que lidar a "satisfação de ter o que almeja", ou conviver com a "frustração do não ter o que quer" e tolerar o desconforto de continuar com a falta, postergar a obtenção desse prazer ou substituí-lo, se for importante para conseguir um estado interno de bem-estar. Esses são os passos para se conseguir o crescimento emocional.

A educação atual exibe uma dupla fachada, por um lado a de estar voltada para a formação ética de uma criança feliz, livre e empreendedora, e por outro a de ocultar a ação de mantê-la como humano robotizado e impotente dentro dessa sociedade amoral e violenta. Os curriculos institucionais e as interações familiares ainda buscam, em suas essências, adaptar as crianças aos "padrões sociais do certo e errado", "do seja bonzinho (ou boazinha) para ser aceito (a) e amado (a)".

Mais ainda e isso me preocupa muito, de maneira perversa, até pela não tomada de consciência sobre tal mecanismo repressor, por meio do qual incutem a culpa na criança, indefesa - pela fragilidade de seu aparelho psíquico operacionalizar sua angústia - em sua função de preservar a integração de seu mundo interno do maciço bombardeio desetruturante proveniente do mundo externo que a cerca, se houver , qualquer tentativa que seja, de se manifestar como pessoa que pensa e sente diferente dos educadores.

Esses exercem suas funções de cuidadores de forma ambivalente, ou seja, protetora e ameaçadora (gosto de você se...) . "Sorridentes castigam por amor", com rejeição, isolamento e constante ameaça de retirada de afeto, as crianças que ousam uma atitude reacional, considerada como confronto pessoal rebelde, contra as regras de condutas estipuladas por um social insalubre, sob o prisma da saúde mental.

O que mais me penaliza é observar como tantas crianças tentam ainda lutar por seu existir singular e por expressar sua autenticidade como indivíduos, sem serem "escutadas" nesse grito de socorro, visando a soberania de seu mundo psicológico.

O tédio pela vida é, a meu ver, um dos indícios angustiantes desse auto-abandono. Por mais que se tenha conquistado determinada autosuficiência, ele vai ser o preço dos anos de dependência psíquica com outras pessoas pensando pela criança, escolhendo o que é melhor para ela, desejando por ela, ou - o que é pior - estendendo seu desejo ao mundo psíquico dessa criança que passa a ter grandes dificuldades futuras até em dar sentido à sua vida, à sua liberdade.

Seus momentos felizes são, na maioria da vezes, sempre permeados pelo medo de perdas e até de ganhos. São assolados pelo medo do tédio no amar, pois sem ousar inovar para combater a mesmice e o desinteresse claudicante nas relações cotidianas e aprender a tolerar e conviver pacificamente com a instabilidade imprevisível da interação consigo mesmo, como se sentir seguro para a entrega amorosa?

Qualquer desvio é sentido como desintegrador. É preferível conservar-se sob rédeas curtas. assim é fácil, mantendo a disciplina, se organizar internamente, e não sentir a angústia que explode se tomar consciência do movimento de forças que mobilizam a energia em seu mundo interno.

Nosso psíquico se mantém vivo graças às colisões de oportunidades e possibilidades, de decisões incertas e contínuos processos de escolhas. Sendo assim, a educação desse milênio, não pode se voltar mais para modelagens de maneiras de ser, enclausuramento de potencialidades empreendedoras e inovadoras em quartos escuros mentais, cárcere privado do ser psíquico, que pode se tornar prisão perpétua conforme as circunstâncias da vida.

Muitos adultos vão ter que se resgatar e abrir seu espaço, mesmo com tanta defasagem pela formação insegura ante o desafeto que vivenciaram; vão ter que aprender a lidar com seus medos e receios de correr riscos; vão ter que enfrentar suas fobias sociais e angústias de exposição e críticas. O desafeto é como se fosse um veneno psíquico que contamina direto o senso crítico, já que a autocrítica rebaixada assim enraizada por anos é também distorcida no adulto que se defronta com a impossibilidade de buscar comprovações de autorrealizações com base na realidade, postura necessária para o fortalecimento da autoestima, valorização e alcance da maturidade emocional.

Para melhor propiciar a tomada de consciência de si mesmo, o contato com seu sentir e a coragem de se posicionar perante a vida, por mais marcas que possa trazer da infância, indico os experimentos de crescimento em gestalt-terapia contidos no livro "Tornar-se presente" de John O. Stevens, da Summus Editorial.

"Baseados em Gestalt-Terapia, e originalmente criados como parte da formação clínica de estudantes de psicologia, estes experimentos percorrem as principais áreas de funcionamento da personalidade em contato consigo mesma, com os outros, com o meio ambiente e com a corporeidade."

Transcrevo uma das vivências desse livro para ser experienciada como exemplo da ação desse instrumento. Através dele posso trabalhar o tédio, o desapego ao velho já conhecido e o se aventurar ao interesse pelo novo. É o encontro com o sujeito desejante que irá destronar a angústia do tédio.

Muitos preferem acionar as imagens em sua tela mental com os olhos fechados. Em algumas outras fantasias, existe essa necessidade para melhor focalização interna.
Direcione a história bem lentamente, dando tempo para que a imagem seja criada e observada detalhadamente, bem como o ouvinte (ou você mesmo) possa seguir o que ocorre em seu sentir nesse momento, tornando-se realmente presente em sua fantasia.
Na dinâmica, as imagens se movimentam por si, e muitas vezes, os cenários, que são montados mentalmente, surpreendem mesmo. Percebam o esforço que dispendem e tentem compreender o que significa em termos de resistência. O autêntico não demanda esforço para se expressar, faz parte de nossa psique em liberdade.

O livro de Stevens traz várias fantasias que podem ser adaptadas conforme o interesse pessoal e o foco das angústias ou do crescimento interno que se quer tomar consciência para melhor mobilizar a vontade de se transformar: desmontar velhas maneiras de ser e erigir novas formas de se posicionar perante a vida.

Ante o sofrimento pelo tédio, que tal se aventurar a caminhar comigo rumo à loja abandonada, depois à loja de trocas, para em seguida tornar-se você mesmo sem o tédio, e aprendendo a lidar futuramente com ele, quando se aproximar outra vez ( porque isso vai ocorrer, se fizer parte da formação estrutural de sua personalidade) ?

No caso dessa fantasia, o próprio autor escreve:
"Uma fantasia como esta, com uma cidade, é particularmente boa se se estiver num lugar onde haja ruídos de tráfego, etc. Estes ruídos perturbariam ou se introduziriam em algumas fantasias, mas a esta apenas acrescentarão algo, uma vez que são apropriados a uma cidade, e tornar-se-ão parte da experiência da fantasia, sem perturbá-la." (p.203)


Loja Abandonada e Loja de Trocas (p.202)


"Quero que você imagine que está andando pela cidade, à noite, na chuva. Você está bem agasalhado, e pode ver as luzes da cidade refletidas nas ruas molhadas. ... Ande por algum tempo e explore a sua cidade. ... O que você vê?... Como é a sua cidade?... O que acontece nela?... Como se sente ao andar nesta cidade?...

Logo adiante há uma ruela deserta. Caminhe por esta ruela e logo verá uma velha loja abandonada. ... A vitrine da frente está suja e salpicada pela chuva, mas olhando de perto você verá umas formas opacas atrás dela. ... O que foi abandonado nesta vitrina?... Chegue mais perto e tente ver o que há ali. ... Esfregue um pouco o vidro, de forma que possa ver mais claramente. ... Examine esta coisa mais de perto. ... Como é ela? ... Observe todos os detalhes. ...

Agora torne-se esta coisa abandonada dentro da loja. Como é a sua existência sendo este objeto abandonado? ... Poe que foi largado ali? ... E como se sente? ... Entre mais na experiência de ser esta coisa abandonada. ...

Agora torne-se você mesmo e olhe cuidadosamente a coisa abandonada na vitrina. ...Você observa algo que não tinha observado antes? ... Lentamente diga adeus a esta vitrina e ao que se encontra nela, e continue a andar pelas ruas da cidade. ... Continue explorando a sua cidade por algum tempo. ...

Mais adiante há outra ruela estranha. Ao caminhar por ela, você vê uma vitrina com uma variedade incrível de coisas: coisas novas, velhas, e muito antigas. Algumas não valem nada, outras são tesouros, e você nunca esperaria encontrar todas elas na mesma vitrina. ... Enquanto está parado aí fora, olhando as coisas da vitrina, um velhinho sai e o convida a entrar. Ele diz que esta não é uma loja comum. Dentro desta loja, aparentemente pequena, existe tudo que há no mundo. Qualquer um que encontre o caminho da loja, pode escolher algo e levar consigo. Você só pode levar uma coisa. Não pode pegar dinheiro e nem vender aquilo que pegar. Fora isso, você pode pegar qualquer coisa da loja. Demore algum tempo para olhar a loja e ver o que há nela. Há todos os tipos de cantinhos e quartos laterais, cheios de coisas que você gostaria de ter. ... Eventualmente você terá que decidir qual destas muitas coisas você quer levar consigo. ...

Quando você tiver decidido o que levar, dedique algum tempo para conhecer melhor esta coisa. ... Olhe para ela cuidadosamente e observe todos os seus detalhes. ... Toque-a com as mãos. ... manuseie, cheire. ... Como se sente em relação a esta coisa? ...

Quando você está saindo com a coisa escolhida, o lojista fala de novo com você e diz: "Você pode ficar com isto, como lhe disse antes. Existe apenas uma condição: você precisa me dar algo em troca. Pode ser qualquer coisa que tiver, e você não precisa estar com ela agora, mas tem que me dar algo em troca daquilo que pegou". O que você dará ao velho?... Demore algum tempo para se decidir. .. Agora diga ao velho o que dará a ele. ...

Saia pela porta e dê uma última olhada para a cidade. ... Lentamente diga adeus a ela. ... Agora volte a esta sala e traga consigo aquilo que decidiu pegar na loja. ...

Agora torne-se esta coisa que você encontrou na loja. ... Sendo esta coisa, como você é? ... Quais são as suas características? ... Como é a sua vida? ... O que se passa com você? ... Qual é a sua função ou sua utilidade? ... Tente entrar realmente nos detalhes da experiência de ser este objeto. ...

Agora torne-se você mesmo de novo e olhe mais uma vez para o objeto. ... Veja se consegue descobrir mais sobre ele. ... Você o compreende melhor agora? ... Vagarosamente diga adeus ao objeto e coloque-o em algum lugar da memória ... e agora descanse por algum tempo. ..."

No livro citado tem muitas outras fantasias.
Eis um treino válido: escolham o instrumento, conforme a necessidade observada em seus mundos internos, ou de seus pacientes.

Aurora Gite

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