sexta-feira, 5 de abril de 2013

"A palavra é mais que um instrumento, é uma verdadeira orquestra"

Gosto de acompanhar as articulações e os processos do pensamento de indivíduos que se diferenciam por suas criações pessoais e atuações na sociedade. Suas ideias originais, envolventes e comoventes, se propagam velozmente e contribuem para reflexões que podem ter efeito transformador na mente (alma) certa para recebê-las.

Com a fluência no lidar com seu fértil mundo de idéias e a espontaneidade de dedilhar as cadeias associativas e torrente de imagens que emergem, não se consegue explicar bem de onde, mas se reconhece ser do mundo psíquico, que pode então, mais além, ser observado nas contínuas configurações criativas do mundo caleidoscópico do indivíduo criador.

E, assim, surge uma criação de uma intuição, inexplicável ainda nos dias de hoje, ou remanejamentos de raciocínios lógicos ante simples mudanças do foco do olhar sobre "algo", pode até ser a visão do "nada". Outro prisma, outra perspectiva, servindo para o encadeamento de novas observações, outras associações e inovadoras operações mentais.

Não é só o artista, mas cada um de nós como meros espectadores ou leitores, que ao nos envolvermos com as criações em uma relação de cumplicidade, somos atingidos magicamente e arremessados a outras perspectivas, patamares de ideias e compreensões que nos surpreendem pelo impacto que podem nos causar, e pela maneira como interferem naquilo que nos cerca, intencionalmente ou não.

De repente, quando menos nos damos conta, estamos envoltos impotentes, sem vislumbres de saídas e nos debatendo em redemoinhos circunstanciais e imprevisíveis. E nos esquecemos, facilmente, que se nos permitirmos nos deixar levar em seu embalo turbulento, o mesmo pode ir se tornando em resignação aconchegante e se tornar fonte de inspiração para criações inesperadas. Da consciência da desordem emerge a lucidez da ordem!

Tudo fora de ordem no início do milênio, se pensarmos na certeza e segurança de ontem: tanta gente pensando por nós, sabendo o que é melhor para nós, antevendo nosso lugar na sociedade, prevendo nossa linha do tempo, escrevendo e direcionando nosso futuro. Enquadramento perfeito para nos adaptarmos e vivermos "felizes para sempre".

E agora?

É assustador o confronto com o peso de carregarmos nas costas tradições inadequadas, que mais nos trazem sofrimento psicológico, conflito e desordens mentais. Isso foi mantido e acumulado por anos e anos, até chegarmos ao caos atual.

É amedrontador reconhecer que estamos sozinhos no reconhecimento do que é bom para nosso bem-estar, e na tomada de decisões visando nossa ordem e harmonia interior, nosso equilíbrio e serenidade, nossa paz para uma  vida boa.

É aterrorizador percebermos que temos que contar com nossa autoconfiança reforçada continuamente, para bancarmos nossas constantes dúvidas e inseguranças ante tantas possibilidades e a necessidade de escolher uma. E, para obtermos presteza nas improvisações, só contarmos, nessa hora, com nossa faculdade de intuir e nossa vontade e agilidade para nos mobilizarmos e canalizarmos construtivamente nossas energias.

A intuição representa uma experiência nova para quem sempre viveu sob o "dogma do ver para crer".

É se aliar a uma certeza que vem da escuridão profunda de nosso ser. Como se por anos aprendemos a desconfiar das relações humanas e de nossa capacidade para sermos leais a nós mesmos?

É confiar sem ver, sem obter dados informativos que possibilitem ao nosso pensar lógico racional operar. Como se nos foi ensinado a contar com a razão acima de nossa sensibilidade? Razão intuitiva, escuta do lado sensitivo, nem pensar, aliás, desconsiderar mesmo!

É distinguir interiormente a voz do passado, do tradicional, do conhecido... das palavras silenciosas que, mudas, murmuram informações, e , vibrando energia, dão som a essa inteligência, comunicando por eco a escolha certa para nós, a que traz consigo a alegria da própria alma, a sensação de serenidade da profundeza do nosso ser, a grandeza da dignidade virtuosa da entidade e que expressa o nosso "humano".

Esse encontro após o breve momento único de estar só, que possibilita o alcance do "senso de solitude" que nada tem a ver com isolamento, muito pelo contrário, mobiliza uma integração holística lúcida com uma energia mais organizada, mais cósmica, se for considerado o significado de "ordem" da palavra grega "cosmos".

Um dos maiores aprendizados do milênio, acredito eu, é estarmos receptivos para a escuta dessa inteligência superior que também operacionaliza nossas funções mentais. "É crer, é se entregar, para ver".

Aliás não há outra saída ante tanta destruição de valores sociais e violência desregrada, desordem nas convivências pacíficas e caos nas relações diplomáticas humanas.

Nada milagroso, nada místico, nada sobrenatural como é o mais propagado.

É mais fácil se manter o controle manipulador sobre a raça humana estando ela circunscrita e envolta na escuridão da massa das crenças e superstições mágicas.

É mais vantajoso trazer o homem na redoma superficial de buscar o controle de reações inexoráveis atreladas à condição humana, aprisionando-o aos patamares da inveja, do ciúme, da posse, da ambição, da vaidade, da ganância, do apego a necessidades, valores e desejos inventados, do que lhe apontar horizontes onde, com esforço, conseguirá reverter a qualidade dessas energias, substituindo-as pela força do desapego, da liberdade, do amor (como o mais digno e mais lúcido dos sentimentos).

Tudo blá,blá,blá... tudo jogo de palavras? Palavras que esboçam conceitos abstratos, opacos e não transparentes, que mais fomentam o caos da Torre de Babel, com cada um atribuindo a uma mesma palavra o significado que quiser e a manipulando sofisticamente?

Palavras que servem à mentira, falsetes de verdades relativas, a provocar mais desordem nas difíceis relações humanas de nossa época, onde ninguém se entende, ninguém confia, ninguém consegue  mais se manter leal e fiel sem pagar alto custo por isso, ou seja, ser banido, excluído do social vigente?

Poderíamos passar horas e horas esgrimando com "as palavras".

Poderíamos untá-las com venenos mortais de significados que, ao penetrarem o psíquico humano, atingissem o alvo certo para ocasionar a desintegração mental e o desequilíbrio referencial daquele que as ouve, e se identifica simbioticamente com elas.

Poderíamos agir com mais honestidade, dando iguais condições aos contendores, empunhando argumentos afiados e precisos em retaliar o senso de "eu", usando a técnica da ironia e da desqualificação sutil, observando sadicamente o adversário - considerado inimigo - sangrar aos poucos, perder seu prumo até, sem forças psíquicas para encontrar argumentos certos, ser vencido pelo cansaço e desmaiar mentalmente, sem condições mais de pensar.

Poderíamos, com astuta crueldade, propiciar ao oponente - inimigo agora mortal - a total desintegração de seu mundo interior, fazendo com que tenha que combater até que não possa mais conviver com a ilogicidade das mensagens ambíguas, até que não se distancie mais da cegueira do real, até que se posicione imerso no mar de fatos ilusórios e imagens distorcidas criadas pelas palavras maldosas e criminosas.

Ofuscado pelo sangue provocado no psiquismo por palavras ferinas, que nele se propaga por palavras humilhantes e sarcásticas, por sua toxidade de rápido efeito contaminador e destrutivo, o adversário se perde dentro de si mesmo, fragmentado e com os sentimentos em frangalhos.

Em momentos de lucidez, tenta ainda se agarrar ao sentido de palavras que "não lhe bastam mais" pelas mensagens de insegurança, incerteza, desvalorização, sentimentos de inferioridade e incapacidade, infinitos medos e sensações de ameaças... que logo tomam conta de seu metabolismo psíquico e contaminam qualquer um que tente entrar no meio dessa luta de palavras. O diálogo agora transcorre só entre as partes de seu próprio mundo interno. Não há mais contato com um "outro" externo a si mesmo, para que o combate continue. As palavras sem sentido passaram a jorrar de seu mundo interno. Poucos são os momentos de lucidez para que os gritos de socorro se façam ouvir.

Podemos dar um salto quântico, adquirir nova compreensão pacífica, em outros patamares mais profundos de consciência, como nos primeiros parágrafos novamente?

Podemos nos afastar das emoções despertadas pelas imagens provocadas pelo pensamento perverso expresso por palavras destrutivas, que mostram o desmoronar gradual do bom senso em pessoas ingênuas e de boa fé?

Podemos controlar nosso emocional e direcionar nossa mente racional para conter exemplos de testemunhos vivos de como podemos reverter esse quadro interno? Qualquer um pode se aliando a sua razão, deixando de depender da razão dos outros, autoridades ilusórias para dar os rumos que só cabe a si mesmo conhecer, sua missão na "sua vida".

Comparem a montagem da cena anterior com o cenário pontuado pelo escritor José Saramago e tão bem colocado em "palavras pronunciadas" em sua palestra de maio de 1999.. Essa palestra se encontra disponível em vídeo, aliás, suas palavras estão distribuídas em 4 partes, todas contendo várias reflexões que resgatam com palavras a dignidade do ser humano. Os vídeos pode ser encontrados no canal Youtube, sob o título de "Especial: Homenagem aos 90 anos de José Saramago" Só como lembrete a morte física da Saramago ocorreu 18 em junho de 2010... suas ideias se disseminam, ainda hoje, mais vivas através da força de suas palavras, testemunhadas em seus escritos que não morrem.

Termino com as palavras de Saramago:

" O sentido da palavra que se diz, é diferente da palavra que se ouve. Essa "coisa mágica" que se produz por um efeito mecânico de uns quantos, de umas quantas coisas que chamamos cordas vocais, que chamamos língua, palato, dente, lábios. E como é que isto, que não é mais que matéria, que se move com uns quantos músculos... como foi possível termos nós, seres humanos, passados por grunhidos, rugidos, roncos, por sons primordiais à comunicação, para esta coisa verdadeiramente deslumbrante que é a palavra, o discurso".

" O escritor pode estar calado, ele só tem que escrever, as palavras são silenciosas, mas são para ele, quer dizer, nem sequer isso são. As palavras são um conjunto, um desenho, um desenho de letras, que formam palavras, que formam sentido, que formam conceitos e por aí... Portanto, ele não tem que falar. Mas o "verdadeiro destino das palavras" é isso, é serem ditas, é serem pronunciadas. A palavra só é realmente palavra quando é dita."

" Tive ocasião nesses últimos dias de assistir exatamente aquilo que se pode chamar a "epifania da palavra", ou sua manifestação divina: o momento em que a palavra se levanta - como se ela se levantasse - ganha corpo e, cada vez que soa uma palavra, é como se ela dissesse: - Aqui estou!"

" Sempre tive a noção de que a palavra é mais do que um instrumento. A palavra é uma verdadeira  orquestra. Por isso, enfim, a crítica reconhece nos meus livros um componente musical, que tem que ver com (...o tom) o ritmo (...do som), e não só com o ritmo... com o andamento, o andamento da frase, que chamo de compasso. Mas, também, (...com) este sentimento de que, tal como numa pauta musical, as notas estão todas ali e, portanto, pode-se dizer que a música está ali... também esta página, uma e outra, a página escrita e a pauta musical, necessitam do que é resultado da criação do homem."

"No caso da música, os instrumentos é que vão reproduzir aqueles sinais em sons, e no caso da palavra, a criação ou invenção ... por parte do homem ...é sua própria voz."

Vale assistir a essa palestra. Saramago tece considerações originais, não tinha refletido sob a perspectiva básica de suas reflexões sobre as expectativas do ouvinte em relação ao palestrista-escritor:
"O que ele espera ouvir, de mim, sobre mim?"
"O que ele quer conhecer de mim, que a leitura de meus livros não satisfez ?"

Palavras, conjunto de letras, sinais e símbolos, disponíveis para compreensão de quem lê e ouve.
Palavras, representação que contém um sentido para quem emite, nem sempre igual para quem recebe.
Fonte de desencontros, se o canal de comunicação entre as pessoas não for desbloqueado.
Mas, também, fonte de muitos encontros se houver receptividade, sintonia, sincronicidade de energias.


Aurora Gite




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