sexta-feira, 12 de abril de 2013

Relembrando um pouco de Nietzsche, sob nova vestimenta... Vem comigo?

Relembro como me senti estarrecida, quanto mais lia "Assim Falou Zaratustra"  de Nietzsche. Leitura difícil pela complexidade da linguagem empregada . Conforme ia me aprofundando, tentando acompanhar as ideias e as associações que o pensar de Nietzsche estabelecia, mais me sentia seduzida pelo autor. De repente, percebi que não era só pelo autor. 

O homem Nietzsche começou a me envolver, pela angústia do "ser só", traço marcante de muitos grandes pensadores, e pela consciência que tinha de ser incompreendido pela sociedade de sua época. Acredito que, por muitos, até os dias de hoje. Atroz é o sofrimento de constatar que as palavras pronunciadas não  ecoam, sua vibração sonante e seu significado não comovem. Como não encontravam a ressonância necessária a um vínculo comunicativo, Nietzsche não conseguiu se fazer ouvir em sua intenção de remexer a sociedade, em sua maioria acomodada em seu pensar por si mesma, preguiçosa em refletir sobre a qualidade de seu viver e realizar transformações condizentes ao alcance de um estado interior de bem estar.

A maioria das pessoas da sociedade de então, que circundava Nietzsche, estava  imersa no fetiche de salvação dos pecados em outras existências, na avidez por compra de ilusões caridosas e no aluguel de cabeças pensantes, à espera que outros assumissem a responsabilidade pelas tomadas de decisões que lhe caberiam, e dissessem o que lhes seria melhor fazer, para logo seguirem aliviados, sem se questionarem sobre a validade das diretrizes em suas vidas, inclusive, se permitindo ser arrebanhados, como cordeiros, em busca só de abrigo e alimento para sobreviver.

Nietzsche reconhecia sua grandeza pessoal e sua rejeição social. Tinha consciência do grau involutivo da sociedade da época, e seu impedimento a compreensão de suas pretensões evolutivas para os seres humanos. Minha imagem de Nietzsche foi a de uma fera enjaulada buscando atacar e ferir essa massa humana. que mais ameaçava sua integridade psíquica, por meio das palavras impetuosas que jorravam de sua boca. Logo, dentro de mim, outra imagem se sobrepõe a essa, a do homem grandioso além de sua época; de um ser humano livre, que se lançou a altos voos, atingiu a categoria de "super homem" e voltou ao mundo superficial da 'raça pensante inferior', segundo ele, tentando transmitir o caminho da sabedoria - alcançada por Zaratustra (personagem autobiográfica) - a seus contemporâneos. 

Como saber que vieram comigo nessa jornada? Como saber que acompanharam a angústia da impotência por perceber a tarefa inútil, objetivo de uma vida. Nietzsche sabia que os homens de sua época não estavam preparados para assimilar a verdade contida em suas palavras, seus ouvidos estavam surdos e seus olhos cegos para a compreensão da missão do homem em seu encontro marcado com o humano dentro de si. A clareza de sua loucura ofuscava o delírio social da pacífica e ilusória acomodação, que vedava qualquer aproximação com o real e sadio mundo interno que ele buscava iluminar. Não é fácil ao homem comum, atingir esse patamar, conseguido e concedido a poucos, ante seu grande esforço e muita coragem. É um movimento interno assustador por representar o encontro com o desconhecido, com o lado escuro da lua existente em cada ser humano, fantasia sombria, aparição volátil e fantasmagórica que importuna e se faz presente ao homem, até que a demanda para que seja descoberto, se torne consciente, seja atendida.

A falta de uma escuta compreensiva para o profundo significado de suas palavras e a, agora violenta, rejeição à sua pessoa, mais ainda o enclausuraram e o algemaram à dor da injustiça... cruel injustiça que dilacera a alma humana. Sentia que lhe acometiam os espasmos loucos provocados pela contenção do regurgitar do silêncio gritante, além das limitações impostas por males orgânicos.

No entanto, não lhe foi possível abarcar que era a resignação ante esse senso de "solitude", que lhe permitiria o acalanto tranquilizador para dominar seus conflitos internos e se embalar mais e mais nos breves instantes lúcidos de lampejos de serenidade, decorrentes do encontro com suas idéias superiores e da certeza de seu poder transformador da miséria da condição humana corrompida e submetida a autoridades referenciais outras que não a de seu mundo interno. No caso de Nietzsche, as dilacerantes dores de cabeça e a fraqueza física pela doença o consumiram antes que vivenciasse essa experiência do humano.

Lendo, ainda, "Assim falou Zaratustra", caiu-me às mãos "Humano Demasiado Humano", grandiosa obra desse autor, escrita na passagem de 1876 para 1877, ano em que completaria 33 anos. Foi publicada em l878. Tentei vislumbrar a época e o local da Europa em que foi escrita, seduzida pelo corajoso confronto social que manteve por anos e tentei colocar meu imaginário se alinhando à vivência de Nietzsche. Permiti-me permanecer a seu lado longas horas, numa leitura sôfrega, acompanhando seus pensamentos e seus sentimentos.
A entrada dolorosa de Nietzsche dentro de si mesmo é visível, bem como seu processo libertador; a observação do caminhar, que é único para cada um, e seu narrar os passos de Zaratustra, permite identificar a veracidade da experiência, semelhante a muitos seres humanos. Meu interesse e curiosidade se aguçavam ainda ao recordar; persistia dentro de mim a primeira impressão que tive sobre a pessoa Nietzsche ao ter contato com seus escritos, e isso muito me gratificava.
O enigma da liberação envolve a passagem solitária pelo deserto interno de nosso psiquismo, que propicia o encontro consigo mesmo após o sofrimento da morte de Deus que, tal qual o apresentavam as religiões institucionalizadas, via como representante mór das invenções para criar uma autoridade externa ao homem e obter sua submissão passiva, da quebra das ilusões e consequente desmistificação dos falsos valores impostos, guardados nos baús das tradições culturais e transmitidos como verdades absolutas a gerações e gerações. E isso ele bem descreveu em "Assim falou Zaratustra". Detalhou esse caminho sofrido por nos remeter ao depressivo "nada", a uma sofrida "negação da vida", a uma possível perda da integração psíquica, se não ousarmos, com coragem e sensibilidade, nos erguer e observar, com humildade e encantamento, o ser humano íntegro - um "sobre humano", bem além do homem comum em sua banalidade e superficialidade - ou um "super homem" como Nietzsche se orgulhava em denominar o homem que podemos vir a nos tornar.

Lembro que foi em um último dia do ano, que entrei em contato com "Aurora", outra obra de Nietzsche. Aceitando o "convite do autor para passar o 'reveillon' em sua companhia", degustei com prazer o alimento para minha alma, advindo de seu saber compartilhado. Saboreei cada instante a seu lado, fascinada pelo  turbilhão de sua mente, que não conseguia se livrar das algemas da imperiosa necessidade da aceitação de suas ideias pelos outros, da busca de que o ouvissem e reconhecessem seu papel social. Queria encontrar então, em sua história de vida, o que lhe faltou, que o impediu de cortar a dependência simbiótica com o social; qual seria o papel funcional em seu psiquismo dessa necessidade de reconhecimento pelo mundo exterior. 
Ao mesmo tempo, acompanhando a luta de Nietzsche mais valorizava o caminhar de um ser humano rumo à conquista de um "espírito livre e justo". Vieram comigo? Acompanharam em que a leitura das obras do autor tocou vocês como leitores? Como isso os afetou através das indagações pessoais que provocaram?  Particularmente, penso que "liberdade-justiça-dignidade" formaram o tripé que possibilitou com que me equilibrasse internamente e conseguisse trilhar o minado caminho para o encontro de uma humilde sabedoria que pudesse ser aplicada diariamente visando um bem viver interno. 

Essa postura se reflete no "vir ao mundo" nietzscheniano e no se capacitar e se superar continuamente para administrar a qualidade das pequenas vivências cotidianas para o alcance holístico de uma boa vida, que permite o olhar para trás, para o passado já vivido, sentir gratidão e orgulho pela configuração conseguida, e a leveza da presença do futuro por vir. Numa auto-avaliação, como ser humano, a visão imponente do tripé acima se destacou em todo esse trajeto e isso dá, a qualquer um que tenha vivenciado algo semelhante, muita força interna, reforça o centro autorreferencial. Por maiores que tivessem sido as desilusões amorosas, agruras familiares e limitações físicas pelas enfermidades que assolavam Nietzsche frequentemente, por que ele não conseguiu fortalecer seu centro de autorreferência?

Segundo as próprias palavras de Nietzsche, a missão do homem superior é "tomar o corpo e vir ao mundo", é " tornar-te senhor de ti, senhor de tuas próprias virtudes". Não há "realidades eternas", nem "verdades absolutas". Urge reconhecer o poder do ser humano consciente, e interromper os elos que o prendem a uma tradição obsoleta, a uma hierarquia religiosa autoritária e imposta, a uma moralidade corrompida a submeter os seres inferiores - como Nietzsche denomina os que não se utilizam da razão para discernir e lutar contra tudo o que possa bloquear sua evolução humana espiritual. Sua revolta era voltada tanto aos ardilosos, quanto aos que se permitiam servi-los sem pensar e sem lutar como homens, ocupando seu verdadeiro lugar no "mundo dos Homens".

É difícil descrever com palavras a sensação agradável de uma interação humana sintônica, onde afinidades fluem, onde compreensões sobre o outro, suas idéias e vivências afloram. São esses contatos que substituem a sensação de estranheza, que nos cerca em alguns momentos de solidão e não integração a um social inóspito a relações amorosas, que envolvem um cuidar recíproco.
O aconchego do encontrão com pessoas da família humana (não biológica simplesmente) é o que possibilita a sensação de não dormir com o inimigo, de encontrar campo para troca de ideias e diálogos gratificantes. A semelhança de ideais coletivos e lutas em prol de um mundo melhor, permite a inserção numa sociedade de iguais que valorizem o respeito aos limites impostos pelas diferenças individuais querendo resguardar e aprender com a unicidade da grandeza das individualidades. E eu continuava a questionar porque Nietzsche não teria em seus momentos de lucidez encontrado o conforto dessa sincronicidade.
Dentro de sua mente os pensamentos conflitantes predominaram ao longo de sua vida (1844-1900). Segundo ele : Como é fácil se criar um mundo falacioso por observações psicológicas superficiais - como bem coloca em seu "Humano Demasiado Humano" (p.64/66) - que unido ao fortalecimento de crenças religiosas e mitológicas errôneas sobre o amor e posturas não-egoístas, e à manutenção de uma pretensa moralidade dos costumes, estabelece padrões uniformizados de boas e más condutas, a serem seguidos por todos sem distinção, para sustentar uma sociedade culturalmente massificada, não pensante e oprimida, desrespeitosamente, em sua unicidade diferenciada de ser humano.

A esperança humilde da eclosão de um mundo melhor, onde as virtudes - forças energéticas superiores - e os valores éticos imperem nas convivências humanas, não acredito que seja uma utopia tão distante assim, principalmente para aqueles que mantiveram uma pureza e ingenuidade no coração, que lhes permite sair da frieza da logicidade do "ver para crer",  e adentrar ao mundo criativo, intuitivo, do "crer para ver", que implica no "se entregar" ao direcionamento de uma inteligência interna, ainda inexplicável, e "só então ver".

Esperando despertar a curiosidade para futura leitura da obra de Nietzsche, vou me permitir transcrever algumas frases retiradas do Prefácio de um de seus livros; considerações de Ciro Mioranza sobre "Aurora". Vale a pena ler esse livro - não tão complexo, quanto o citado anteriormente "Assim falou Zaratustra", mas igualmente de enorme profundidade - e resgatar seu autor para a humanidade. Confiram o que digo:

"Aurora anuncia um novo dia, um novo despertar para uma verdadeira vida - do homem e da humanidade inteira... Aurora significa o despertar de um nova moralidade. É a emancipação da razão diante da moral... Aurora quer romper essa maneira tradicional de agir e de avaliar. Portanto, à medida que o sentido da causalidade aumenta, diminui a extensão do domínio da moralidade... Aurora se configura na história da individualidade num contexto social. Um novo ser se desenha. Uma nova forma de pensar, de agir e de se comportar. Um novo ideal diante de si e diante do outro, um novo ideal de cada um diante da sociedade. Um novo tempo. Uma nova vida. É tudo o que o homem quer. Ser e ser ele próprio."

Aurora Gite

Recebi a indicação e agradeço.
Acabei de assistir ao vídeo sobre Nietzsche pelo canal Youtube (41') e gostei muito.

Compartilho a palestra:
Café Filosófico - Especial Nietzsche - Viviane Mosé (filósofa)

Vale a pena assistir.
Acabou sendo um bom complemento para esta postagem.


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