segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Uma pausa para louvar Vinícius e o Amor

"O Amor por entre o Verde" 
Vinícius de Morais

"Não é sem frequência que, à tarde, chegando à janela, eu vejo um casalzinho de brotos que vem namorar sobre a pequenina ponte de balaustrada branca que há no parque. Ela é uma menina de uns treze anos, o corpo elástico metido num blue jeans e num suéter folgadão, os cabelos puxados para trás num rabinho de cavalo que está sempre a balançar para todos os lados; ele, um garoto de, no máximo, dezesseis, esguio, com pastas de cabelo a lhe tombar sobre a testa e um ar de quem descobriu a fórmula da vida. Uma coisa eu lhes asseguro: eles são lindos, e ficam montados, um em frente ao outro, no corrimão da colunata, os joelhos a se tocarem, os rostos a se buscarem a todo o momento para pequenos segredos, pequenos carinhos, pequenos beijos.

São, na sua extrema juventude, a coisa mais antiga que há no parque, incluindo velhas árvores que por ali espaçam sua sombra; e as momices (trejeitos, caretas) e brincadeiras que se fazem dariam para escrever todo um tratado sobre a arqueologia do amor, pois têm uma tal ancestralidade que nunca se há de saber a quantos milênios remontam.

Eu os observo por um minuto apenas para não perturbar-lhes os jogos de mão e misteriosos brinquedos mímicos com que se entretém, pois suspeito de que sabem de tudo o que se passa à sua volta. Às vezes para descansar de posição, encaixam-se os pescoços e repousam os rostos um sobre o ombro do outro, como dois cavalinhos carinhosos, e eu vejo então os olhos da menina percorrerem vagarosamente as coisas em torno, numa aceitação dos homens, das coisas e da natureza, enquanto os do rapaz mantêm-se fixos, como a perscrutar desígnios. Depois voltam à posição inicial e se olham nos olhos, e ela afasta com a mão os cabelos de sobre a fronte do namorado, para vê-lo melhor, e sente-se que eles se amam e dão suspiros de cortar o coração.

De repente o menino parte para uma brutalidade qualquer, torce-lhe o pulso até ela dizer-lhe o que ele quer ouvir, e ela agarra-o pelos cabelos, e termina tudo, quando não há passantes, num longo e meticuloso beijo.

Que será, pergunto-me em vão, dessas duas crianças que tão cedo começam a praticar os ritos do amor? Prosseguirão se amando, ou de súbito, na sua jovem incontinência, procurarão o contato de outras bocas, de outras mãos, de outros ombros?

Quem sabe se amanhã, quando eu chegar à janela, não verei um rapazinho moreno em lugar do louro, ou uma menina com a cabeleira solta em lugar dessa com os cabelos presos?

E se prosseguirem se amando, pergunto-me novamente em vão, será que um dia casarão e serão felizes? Quando, satisfeita a sua jovem sexualidade, se olharem nos olhos, será que correrão um para o outro e se darão um grande abraço de ternura? Ou será que desviarão o olhar, para pensar cada um consigo mesmo que ele não era exatamente aquilo que ela pensava e ela era menos bonita ou inteligente do que ele a tinha imaginado?

É um tal milagre encontrar, nesse infinito labirinto de desenganos amorosos, o ser verdadeiramente amado... Esqueço o casalzinho no parque para perder-me por um momento na observação triste, mas fria, desse estranho baile de desencontros, em que frequentemente aquela que devia ser daquele, acaba por bailar com outro, porque o esperado nunca chega; e este, no entanto, passou por ela sem que ela o soubesse, suas mãos sem querer se tocaram, eles olharam-se nos olhos por um instante e não se reconheceram. 

E é então que esqueço de tudo e vou olhar nos olhos de minha bem-amada, como se nunca a tivesse visto antes. É ela, Deus do céu, é ela! Como a encontrei, não sei. Como chegou até aqui, não vi. Mas é ela, eu sei que é ela porque há um rastro de luz quando ela passa, e quando ela me abre os braços eu me crucifico neles, banhado em lágrimas de ternura; e sei que mataria friamente quem quer que lhe causasse dano; e gostaria que morrêssemos juntos e fôssemos enterrados de mãos dadas, e nossos olhos indecomponíveis ficassem para sempre abertos mirando muito além das estrelas."

                                                 Para viver um grande amor - Crônicas e Poemas


Agora sou eu que me pergunto, quantos de vocês, que leram essa crônica, se permitiram sentir o tesão dos amantes, cavalgando nas ideias sensuais de Vinícius de Morais; embalando suas próprias sensualidades nas descrições do poeta sobre as movimentações dos corpos; entregando suas almas ao se mostrarem receptivos ao convite ao prazer transmitido pela expressão corporal e facial; soltos e livres à flutuarem na sincronia sexual sinalizada pela ternura dos gestos e olhares?

O que assusta são os encontrões na vida, onde nos deparamos, perplexos e fascinados, com esse fenômeno da sintonia de um encaixe amoroso. O que apavora é o aterrorizante dilema, dúvida atroz entre o encontro de olhares carinhosos e fogosos, ou o cruzar de olhos frios e investigativos! 

O que causa enorme tristeza é a possibilidade de constatação de estar ao lado de um estranho, do olhar não mais reconhecer o amado de antes; de se sentir impotente, sem saber nadar e ser obrigado a mergulhar no oceano das dúvidas e das incertezas sobre novos encontrões. 

O que remete a enorme sofrimento é a probabilidade da ameaça de se perceber, em momentos, dando braçadas contínuas, tímidas e desengonçadas, buscando apreender o ritmo certo, se garantindo por estar portando o colete salva-vidas do "-Será, talvez, que irá acontecer o encontro? E, então, o que é que eu faço?"; e em outros se deixando levar passivamente para o fundo desse oceano, só sendo obrigado, ao ser dragado por forças estranhas ao próprio querer, a observar a petrificação mortal do afundar da própria alma na certeza do "-Nunca mais!".

Aurora Gite

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